*Comitiva de Getúlio Vargas (ao centro) em passagem por Itararé a caminho do Rio de Janeiro durante a Revolução de 1930, fotografada por Claro Jansson.
Mais farda no poder – Golpes e contra-golpes iriam suceder-se desde os anos 30 até à deposição de Vargas em 29 de outubro de 1945. Nesse período estabeleceu-se o recesso do Congresso Nacional mesmo tendo este Poder colaborado com afinco para o fortalecimento do autoritarismo ao lado da cúpula do Poder Judiciário que, desde a proclamação da República, nunca se antepôs ao arbítrio no Brasil.
Por Sergio Victor Tamer*
O Brasil havia redescoberto, na frase de Barão de Lucena, o homem forte do Governo Deodoro, que a corda arrebenta pelo lado mais fraco, incorporando, assim, na sua cultura política e nas relações de poder, a preponderância da força.
Mas retornemos ao início do governo provisório de Getúlio Vargas que iria provocar a ruptura da ordem política e institucional então vigente e instalar no país uma nova fase republicana. Ruptura, diga-se, considerada mais profunda que a de 1889.
A “Segunda República”: funda-se o chamado “governo provisório” (1930 – 1937) – Com a dissolução do Congresso Nacional, Vargas instalou-se no Catete com considerável apoio popular. Os principais temas de seu iniciante governo foram o combate à corrupção, a reforma do ensino e a ampliação das leis trabalhistas. Foram criados os ministérios da Educação e Saúde, e o do Trabalho. Nos Estados os tenentes assumiram o governo e aliaram-se contra o domínio dos grandes fazendeiros. Vargas desempenhava uma espécie de poder moderador, entre as pressões dos governos estaduais e membros do seu ministério, de um lado – e as investidas das diversas oligarquias e dos oficiais do Exército, de outro, que se opunham ao ingresso dos militares na atividade política.
Com a alternância das elites surgem novos atores políticos na cena nacional: as Forças Armadas, melhor organizadas, a burguesia industrial e o operariado.
Em 9 de julho de 1932 um movimento armado é logo sufocado em São Paulo[1]. Com a nova lei eleitoral, surge o voto feminino, o voto secreto, a representação proporcional dos partidos, a justiça eleitoral e a representação classista, eleita pelos sindicatos. A nova constituição republicana estava por vir: em 15 de novembro de 1933 reuniram-se 250 deputados eleitos pelo povo e 50 eleitos pelas representações de classe com o objetivo de escrever a nova constituição, promulgada somente em julho de 1934, a qual não passou de um “adesivo democrático” necessário para embrulhar um governo excessivamente autocrático. Alguns desses constituintes, durante os debates, ousaram tratar da liberdade de muitos cidadãos brasileiros que estavam presos, sem julgamento, somente por ordem de delegados e outros agentes policiais ligados a órgãos de repressão. Falando em nome do Governo o ministro da Fazenda advertiu, demonstrando surpresa, que “a matéria nada tinha a ver com a Assembleia Constituinte, cuja única função era votar a Constituição.” Ao prosseguir na sua admoestação ao Congresso, disse o ministro lamentar que a Assembleia estivesse se ocupando de “matérias tão insignificantes como as liberdades pessoais, e a liberdade dos cidadãos”, para em seguida arrematar com a empáfia própria dos ditadores: “Se o Governo prende, é porque o Governo julga necessário prender!”. Nada mais falou a Assembleia sobre o assunto, baixando a cabeça perante o representante do Executivo. A imprensa é censurada e jornais são fechados. A “Segunda República” ou “República Nova” inaugura a eleição por voto indireto ao eleger Getúlio Vargas para presidente.
O Estado Novo (1937 – 1945) – Percebe-se, à luz da história, que a “Intentona Comunista” de 1935[2] fortaleceu a extrema-direita dando pretexto ao governo Vargas para decretar o estado de sítio, concedido até fins de 1936 com apoio de todas as bancadas, quando um instrumento ainda mais forte, o estado de guerra, veio substituí-lo. Após sufocar o movimento comunista, Getúlio inicia o combate aos grupos oligárquicos, liderados por São Paulo. Em 10 de novembro de 1937 tropas do Exército cercaram o Congresso ao tempo em que cópias de uma nova constituição eram distribuídas, especialmente para a imprensa. Dirigindo-se pelo rádio à nação, Vargas procura justificar a instituição do novo regime, o chamado Estado Novo, que passa a integrar o ciclo da “ditadura Vargas” (1930 – 1945) como necessário “para reajustar o organismo político às necessidades econômicas do país e assegurar a unidade da pátria.” O parágrafo único do art. 96 daquela Constituição assim dispunha: “No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa do interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.” Por sua semelhança com a constituição fascista da Polônia, logo a carta constitucional brasileira foi apelidada de “polaca”, enquanto que as leis do trabalho, consolidadas, tiveram inspiração na Carta del lavoro do regime fascista imposto na Itália por Mussolini. [3]
A hipertrofia no seu grau mais elevado – a ditadura Vargas montou um sistema de interventores, em cada Estado e promoveu um rígido controle da máquina estatal através do DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público. Os meios de comunicação eram manipulados e cerceados através do poderoso DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda. Por sua vez, o Tribunal de Segurança Nacional desestimulava qualquer ação contestatária. A hipertrofia do Executivo atingia, então, o seu grau mais elevado na fase republicana. Enquanto isso, Vargas conquistava o apoio das massas com a criação da Justiça do Trabalho, vinculava a organização sindical ao Ministério do Trabalho (por intermédio do imposto sindical), instituía o salário mínimo e criava uma legislação trabalhista que permitia ajustar a mão-de-obra oriunda do meio rural às condições urbanas. A instalação da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN, de capital nacional e público, no município de Volta Redonda, RJ, com funcionamento a partir de 1946, permitiu a formação de uma infraestrutura propícia ao desenvolvimento do nosso nascente parque industrial. Como bem observou PENNA [4], “… a fragilidade política e ideológica do empresariado brasileiro e a pouca densidade política das lideranças sindicais permitiram ao Estado ocupar um papel mais decisivo ainda, hipertrofiando sua função histórica num contexto no qual essa tendência prosperava indistintamente.”
Põem e depõem – Os militares pressionavam para o retorno à normalidade democrática, especialmente após a vitória dos aliados na 2ª Guerra Mundial. As eleições foram marcadas para 2 de dezembro de 1945 e os partidos, que então se formaram, lançaram seus candidatos à presidência: UDN – União Democrática Nacional, com a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes; PSD – Partido Social Democrático, da situação, lançou o ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra; Vargas, porém, depois de manifestar-se favorável à candidatura do seu ministro da Guerra, retira esse apoio em junho de 1945 e lança-se candidato pelo PTB, certo de que o julgamento político-eleitoral do Estado Novo lhe seria favorável.
Todavia, as manobras continuístas de Vargas foram pressentidas e uma intervenção militar, em 29 de outubro de 1945, quase 15 anos depois da derrubada do governo de Washington Luís, iria, desta vez, retirar o próprio Getúlio Vargas da presidência da República, pondo fim ao chamado Estado Novo. Assume interinamente o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Linhares, que iria ficar no cargo até 31 de janeiro de 1946 quando transfere a faixa presidencial ao candidato eleito Eurico Gaspar Dutra.
No próximo artigo (VII): Segue-se o governo autoritário de Eurico Dutra e o retorno de Vargas, populista, em outubro de 1950 que governaria até a sua morte em 1954. A presidência com os civis Café Filho, Juscelino, Jânio e João Goulart não retirou do Executivo a enorme influência que havia adquirido bem como a pressão permanente que exercia sobre o Legislativo e Judiciário.
Sergio Victor Tamer (69) é mestre em Direito Público pela UFPe, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca e pós doutor pela Universidade Portucalense. Professor e advogado – possui as seguintes obras publicadas sobre o tema: “Fundamentos do Estado Democrático e a Hipertrofia do Executivo no Brasil” – Ed. Fabris, RS,2002; “Atos Políticos e Direitos Sociais nas Democracias” – Ed. Fabris, RS, 2005; “Legitimidad Judicial en la Garantía de los Derechos Sociales”, Ed. Ratio Legis, Salamanca, ES, 2013.
[1] Revolução Constitucionalista de 1932, também conhecida como Revolução de 1932 ou Guerra Paulista, foi o movimento armado ocorrido nos estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, entre julho e outubro de 1932, que tinha por objetivo derrubar o governo provisório de Getúlio Vargas e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte. Ver, entre outros, CALMON, Pedro, O movimento constitucionalista. In: “História do Brasil”. 2a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. v. 6, cap. 37.
[2] Intentona Comunista, também conhecida como Revolta Vermelha de 35, Revolta Comunista de 35, Levante Comunista – foi uma tentativa de golpe contra o governo de Getúlio Vargas realizado em 27 de novembro de 1935 por militares, em nome da Aliança Nacional Libertadora, com apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB), na época denominado como Partido Comunista do Brasil, e do Comintern. No início de 1936, tentando encontrar responsáveis pelo fracasso do levante, Prestes mandou matar a moça de 18 anos Elza Fernandes, namorada do secretário-geral do PCB. Prestes suspeitava que ela fosse informante da polícia, o que mais tarde provou-se um engano. O jornalista William Waack alegou que Olga não se opôs à decisão.
A repressão ao movimento permitiu que o Congresso Nacional decretasse o Estado de Guerra, com uma erosão decisiva nas liberdades e garantias individuais liberais-democráticas, o que preparou o caminho para que Getúlio Vargas decretasse o Estado Novo em 1937, reforçado pelo chamado Plano Cohen. Vide Hélio Silva (1969). O Ciclo de Vargas – Volume VIII. 1935 – A Revolta Vermelha. [S.l.]: Civilização Brasileira. 476 páginas.
[3] É dito que a “Carta del Lavoro” foi usada como inspiração pelo presidente brasileiro Getúlio Vargas para a criação da Consolidação das Leis Trabalhistas em 1943, porém esta última é muito maior e mais detalhada que a Carta del Lavoro. Segundo este documento, todos deveriam seguir as orientações e o interesse do Estado. À sociedade, permitia-se organizar em corporações, isto é, entidades como associações patronais e sindicatos que representassem não a diversidade de interesses, mas a coletividade. Este modelo ficou para a história sob a designação de Corporativismo. Contudo,o momento em que Vargas se aproxima de Mussolini é quando se trata do tema dos sindicatos e do combate das articulações socialistas. Isso porque, assim como na Itália, a articulação do ditador com os sindicatos e as leis trabalhistas no Brasil se pautava no esforço de impedir a autonomia de luta das unidades de organização dos trabalhadores e a redução dos movimentos sob a tutela do Estado. Nessa lógica, a sociedade é como um corpo, em que há uma cabeça, mais importante e com legitimo poder de mando, e há outras partes, de braços até dedos, que devem trabalhar de acordo com seus lugares na organicidade social pelo bem de seu funcionamento. Dedos que agem fora de suas diretrizes, que querem mudar a ordem das coisas e impedir o mando que a cabeça tem sobre os dedos, devem ser eliminados por sua toxidade. Para isso, os trabalhadores devem estar articulados diretamente com o Estado. A essa lógica se dá o nome de corporativismo. https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/clt-brasileira-nao-era-uma-simples-copia-da-carta-del-lavoro-de-mussolini.phtml (acesso em 22.7.2020)
[4] PENNA, Lincoln de Abreu: República Brasileira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. ISBN: 9788520910160