VII COLÓQUIO INTERNACIONAL – DIÁLOGOS SOBRE O CÁRCERE – 18.11.2020
Realização: UNIFACS, MP da Bahia
PALESTRA ON LINE
Por Sergio Victor Tamer
A prevenção de potenciais delitos e a repressão àqueles que estejam a ocorrer, fazem parte da preocupação sempre crescente das sociedades nos tempos modernos, em especial no Brasil, onde os índices de violência homicida desafiam os estudos dos mais argutos especialistas em políticas públicas de segurança. Violência essa que golpeia e fustiga diariamente o cidadão comum em sua faina diária. Mas a tentativa sempre frustrada de reduzir essa persistente violência urbana não é, seguramente, uma tarefa a ser exercida exclusivamente pelas forças policiais.
Esta apresentação, portanto, intenta demonstrar a importância da garantia dos direitos sociais para reduzir a criminalidade, em especial a violência homicida nas grandes cidades.
Hassemer e Muñoz Conde ao estabelecerem as linhas de atuação da criminologia afirmam que ela não somente se ocupa do saber empírico sobre a criminalidade (e de seus protagonistas) bem como de seu controle, mas por igual das formas de reação social e jurídica. Seu objeto, portanto, é mais amplo que o Direito Penal, pois o centro de seu interesse são os diversos fatores, etiológicos, individuais e sociais, da criminalidade e das diversas formas de controle, formais e informais.
Por sua vez a Política criminal consiste em um conjunto de diretrizes e decisões que determinam a criação de instrumentos jurídicos para controlar a criminalidade, preveni-la e reprimi-la. Trata-se, em última análise, de políticas públicas a serem definidas no âmbito do Legislativo e da Administração (Executivo). Isso talvez explique, em grande parte, a política demagógica de “endurecimento das penas”, geralmente contraproducentes, como resposta ao clamor popular por mais segurança. Para os autores aqui citados, a melhor Política criminal será sempre uma boa Política social, considerando-se certas variáveis.
É que para Hassemer e Muñoz Conde, “[…] ni el género, ni la raza, ni la constitución física, ni la herencia genética, ni la enfermedad mental, ni las alteraciones psicológicas son por sí solas factores suficientes para explicar de un modo general las causas de la criminalidad.” E acrescentam: “[…] en el análisis empírico de las causas de la criminalidad deben tenerse también en cuenta todos los factores de carácter social, externos al individuo, que hacen comprensible su conducta y permiten su valoración en un contexto más amplio de lo que es su propia individualidad”.
De fato, desde o início dos anos 20, quando se desenvolveu a chamada “Escola de Chicago” que se destacou a influência do entorno urbano na conduta humana, e com ele o termo “ecológico”. Esse contexto social urbano onde surge a delinquência, sobretudo a juvenil, estaria situado geograficamente em determinadas zonas da cidade – fato que permitiria uma melhor observação e investigação empírica. Essa teoria fez um contraponto às teorias bioantropológicas que haviam isolado o indivíduo, como objeto de investigação, das demais pessoas atuantes em seu entorno e que não eram levadas em conta como fatores criminógenos.
Na questão desigualdade social o Brasil é um caso típico: é a 10ª economia global e o 79º no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH (0,761). Em termos de desigualdade social, está entre os 10 mais desiguais do mundo. Esse dado estatístico talvez possa explicar, em parte, o aumento da criminalidade, nela inserida a violência homicida no país cuja taxa gira em torno de 30,5 homicídios a cada 100 mil pessoas.
Nesse tema o historiador José Murilo de Carvalho faz oportuna referência à pressão da classe média brasileira por medidas mais efetivas de combate à violência urbana, como o endurecimento das penas e outras normas tidas como “salvadoras”. Mas, ao analisar a relação eventualmente existente entre pobreza e criminalidade, ele concorda com o enfoque sociológico que diz não ser a pobreza condição necessária nem suficiente para a violência, a exemplo da Índia onde a miséria é muito grande, mas não há registro de violência semelhante à do Brasil. Sob outro enfoque, e contrastando com o que se sucede nas grandes cidades, mais precisamente em comunidades onde não haja fosso social entre as diversas famílias, a violência urbana tende a ser menor. E revela que há, também, violência sem pobreza em inúmeros países. Mas no caso brasileiro Carvalho afirma que seria ingênuo sustentar a tese de que a pobreza, principalmente a urbana, não tem ligação com a violência. Ele aduz que há uma fórmula explosiva na sociedade brasileira: “uma sociedade de consumo e extremamente desigual, aliada à presença do tráfico”.
Dessa forma, nem pobreza nem riqueza, isoladamente, mas a desigualdade social poderia ser, então, a raiz do aumento da criminalidade numa sociedade de contexto social despadronizado, vale dizer, com uma diversidade de padrões comportamentais jamais vista. No tocante, pois, à desigualdade, o caso da Inglaterra, nos anos 90, é bem exemplificativo: com o desemprego à época no nível mais baixo em 25 anos e a economia crescendo, cresceram também os índices de violência. O Governo deu, então, uma explicação inusitada: pela versão oficial inglesa, “com mais dinheiro no bolso os jovens saem mais, bebem muito e acabam arrumando confusão”. Em análise feita de Londres por Ricardo Grinbaum esse argumento, todavia, não explicava um crescimento de 26,1% no número de roubos. Ao ouvir o professor Paul Rock da London School of Economics, Grinnbaum informa que para alguns especialistas há um problema social alimentando as estatísticas. Diz Rock: “Embora o desemprego estivesse caindo, a desigualdade social está aumentando. A desigualdade aumenta a tensão social porque as pessoas querem ter acesso às mesmas oportunidades e poder consumir como os outros.” Segundo dados do Departamento de Previdência Social do governo britânico, àquela época, a renda dos mais ricos crescia numa velocidade três vezes mais acelerada do que a dos mais pobres, aumentando, assim, a diferença no padrão de vida, embora essa diferença não seja tão contrastante como no Brasil.
O elementar, nesse caso, precisa ser visto: a polícia faz parte de um sistema e como tal é apenas um dos seus componentes. Isso significa que a desejada segurança pública só será conquistada se conseguirmos concretizar políticas públicas que possibilitem o funcionamento de todo um sistema comunitário.
Bem analisados os fatos, verificamos que a questão da elevada criminalidade passa, necessariamente, pela compreensão de três planos distintos de políticas públicas: 1. Ações governamentais na área social; 2. Atuação do aparato policial e da justiça; e, 3. Atuação do sistema prisional.
Vamos observar, assim, que nesse primeiro plano, onde se acham as ações do governo, tem sido elas, por um lado, insuficientes, e por outro, inadequadas quando não ausentes – especialmente as que se referem às políticas voltadas para a educação, saúde, geração de empregos, distribuição de renda e infraestrutura urbana e rural, enfim, tudo o que se pode chamar de um ‘mínimo de dignidade’. Essas políticas também resultam naquilo que o jornalista Gilberto Dimenstein chama de “capital social”, ou seja, a riqueza formada pela rede de relacionamentos pessoais e que bem explicam por que comunidades pobres, mas com relações estáveis, possuem baixas taxas de violência. Aliás, o município é peça fundamental nesse processo e não poderá haver segurança pública eficiente sem a participação dos organismos municipais.
De igual modo, o sistema penal deve aplicar penas mais justas, desburocratizando o processo e proporcionando à população desassistida acesso mais rápido e menos oneroso à Justiça. A ampliação dos mecanismos de assistência jurídica da Defensoria Pública, nesse contexto, seria, também, um passo extremamente importante.
Dessa maneira, prometer o ‘endurecimento’ e mais eficiência do aparelho repressivo, por meio de contratações e aumento da força policial, sem atentar-se para esses três planos interligados de políticas públicas –, tem o condão de transmitir tão somente uma ilusão de segurança, sem, contudo, conseguir esconder o fato de que o populismo quer tomar o lugar de políticas sérias e mais condizentes com a realidade.
A Política criminal deve, assim, ser indissociável da Política social, sendo desejável um entrelaçamento íntimo entre uma e outra na formulação e execução de suas ações. Por esse critério, a segurança pública se afigura entre as maiores questões da atualidade pelo fato de termos no Brasil, de um lado, índices crescentes de violência e de outro, um aparelho policial que dá mostras visíveis de sua impotência para, isoladamente, combater o bom combate, pois as suas ações se encontram apartadas de uma efetiva política social que deveria envolver, inclusive, as administrações municipais.
MELHOR IDH, MENOR TAXA DE CRIMINALIDADE
Para o criminologista Luiz Flávio Gomes, o Brasil é um dos países mais violentos do planeta porque somos um dos mais desiguais:
[…] quanto mais elevado o desenvolvimento humano (IDH) menos desigualdade existe e quanto menos desigualdade menos violência acontece (e vice-versa: quanto menos desenvolvimento humano mais desigualdade e quanto mais desigualdade mais violência). O índice de Desenvolvimento Humano da ONU (IDH) que serve de parâmetro para se aferir o grau de desenvolvimento de cada país, possui quatro grandes grupos: (a) desenvolvimento humano muito elevado, (b) elevado, (c) médio e (d) baixo. Para GOMES, há um dado objetivo irrefutável: “os quatro grupos contam, respectivamente, com a seguinte taxa média de homicídios: (a) 1,8 mortes no primeiro grupo; (b) 10,7 no segundo; (c) 11,7 no terceiro e, (d) 13,9 no quarto.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) trata-se de violência epidêmica a que é igual ou superior a 10 mortes para cada 100 mil pessoas. Ou seja: apenas o primeiro grupo não conta com violência epidêmica. O Brasil, só para recordar, tem o nono maior índice de homicídios do mundo. Dados publicados em 2018 pela OMS revelam ainda que as taxas brasileiras são cinco vezes a média mundial de homicídios. De acordo com os dados produzidos de forma independente pela agência da ONU, as mortes no Brasil atingiram 31,1 pessoas a cada 100 mil habitantes. A taxa coloca o país como um dos mais violentos do mundo. Esses números, considerados globalmente, nos autorizam estabelecer uma relação direta entre IDH, desigualdades e homicídios, afirma Luiz Flávio Gomes.
Mas, contrastando com o que se sucede nas grandes capitais e outros conglomerados urbanos –, naquelas cidades que inexiste fosso social entre as diversas famílias (onde praticamente todas estão niveladas com a mesma renda), a violência urbana tende a ser menor e até irrelevante estatisticamente, inclusive nas vilas muito pobres. Portanto, o fator desigualdade social – e não a pobreza – tem sido um potente propulsor da criminalidade violenta nas principais cidades brasileiras.
Nesse campo, vimos diagnosticando erroneamente as causas dos nossos males e, como consequência, desperdiçamos muitos recursos na vã tentativa de debelá-los. Não por outra razão a política brasileira de combate à violência nos centros urbanos das maiores cidades, em sua maioria, não vem dando certo. Uma das causas apontadas por Luís Flavio Gomes é que estamos transformando o direito penal em mero instrumento da política criminal e não no seu limite –, motivo pelo qual a população está sendo iludida com a adoção de penas mais severas como resposta à criminalidade. E aduz: para BECCARIA a pena não precisa ser severa, fundamental é que a ameaça se concretize infalivelmente (o mais importante é a certeza do castigo, ainda que seja o mais suave possível). Ou seja: mais leis, mais castigos, mais juízes, mais policiais (como diz Jeffery, citado por García-Pablo de Molina) não significam necessariamente menos crimes. Nesse mesmo sentido a doutrina de Fábio da Silva Bozza que discorre sobre a proibição de excesso como limites à expansão penal.
Outro dado importante ressalta o fato de que os países que combinam a prevenção social com a certeza do castigo apresentam números mais baixos de homicídio. São denominados por Gomes de “escandinavizados”, dentre os quais estão: Suécia, Noruega, Coreia do Sul, Japão, Alemanha, Nova Zelândia, Austrália, Islândia e Finlândia, dentre outros. Neles, não é a severidade da pena que conta, mas sim, a certeza do castigo (ou seja: a burocracia criminal funciona bem) combinada com uma excelente política social (alto nível de escolaridade e com elevada renda per capita). É a política criminal que mais se aproxima do modelo desenhado por Beccaria, em 1764. Resultado: (1) um assassinato em média para cada 100 mil pessoas.”
Há, contudo, os países que confiam mais na severidade da pena e contam com boa eficácia na certeza do castigo embora tenham grandes falhas na prevenção social, distinguindo-se, ainda, pela desigualdade extrema, violações massivas aos direitos humanos e encarceramento massivo, a exemplo de EUA e China. Resultado: 5 assassinatos para cada 100 mil pessoas.
Em relação ao enigma da redução da criminalidade (nos EUA), Gomes diz que na realidade não há uma explicação plausível em teorias simplistas. E cita o criminólogo Franklin Zimring, para quem a grande redução da criminalidade norte-americana, “não decorreu da resolução das patologias profundas que obsessionam a direita (encarceramento massivo dos superpredadores, redução das mães solteiras, o fim da cultura do bem-estar social) ou a esquerda (injustiça social, discriminação, pobreza); nem tampouco da generalização do aborto, nem de mudanças radicais na situação econômica do povo, nem alteração étnica, nem na alteração da educação, nem na tolerância zero: foram pequenos atos de engenharia social desenvolvidos para impedir o delito que funcionaram (mais policiamento nos lugares “quentes”; não prisões alopradas de pequenos delitos nos lugares seguros); blitz generalizada (“os pobres pagaram mais, mas ganharam mais”) etc.”
Sabendo-se que “o ato delitivo é uma questão de oportunidade”, seja para os ricos, seja para os pobres (quanto mais obstáculos, menos delitos), os EUA desenvolveram uma estratégia de muita prevenção e alta certeza do castigo (frente aos delinquentes, sejam marginalizados, sejam os de colarinho branco). Assim, sem alterar suas profundas patologias sociais, os EUA conseguiram diminuir a criminalidade.
Já os países considerados por Gomes como político-criminalmente fracassados (Brasil, por exemplo), são os que não praticam nenhum tipo de prevenção social (melhoria substancial das condições de vida da população mais educação de qualidade) e tampouco contam com estrutura burocrática eficiente para garantir a certeza do castigo (ou seja: o império da lei repressiva). Razão pela qual esses países iludem a população com o primeiro modelo, o da severidade da pena, que se caracteriza: (a) pela instauração do clima de guerra e de medo, (b) pela predisposição da população inculta e desesperada a apoiar inclusive as medidas irracionais dos governantes (a barbárie), (c) pela edição aloprada de penas novas mais severas (legislação simbólica), (d) pelo encarceramento massivo sem critério adequado, (e) pelo afrouxamento do controle das instituições repressivas, (f) pela cultura da violação massiva dos direitos humanos e (g) pelo desrespeito ao devido processo legal e proporcional.
Resultado: 30 assassinatos para cada 100 mil pessoas, 15º país mais violento do planeta, tem 16 das 50 cidades mais violentas do mundo, e 53 mil homicídios por ano.
Sob esse enfoque, a hipótese em que trabalhamos foi no sentido de que, quanto melhor destacado o país no IDH e na sua renda per capita, mais reduzidos são os índices de criminalidade violenta – e para tanto, os direitos sociais são imprescindíveis.
Dessa forma, demonstrada a estreita vinculação da renda per capita e do IDH dos países, em suas áreas urbanas e densamente povoadas, com o menor e o maior índice de criminalidade violenta, sobressai a importância de a Política Criminal adotar políticas públicas eficientes e eficazes para a concretização dos direitos sociais.
[1]Sergio Victor Tamer é advogado, mestre em Direito Público (UFPe) e doutor em Direito Constitucional (USAL). É autor de diversos livros jurídicos. Ex-secretário de Direitos Humanos do Estado do Maranhão (2009-2010) e ex-secretário de Justiça e Administração Penitenciária (2011-2012). É presidente do CECGP – Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública e da SVT Faculdade.