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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

A pureza do direito kelseniana – por Lenio Luiz Streck

“A preocupação do pesquisador do Direito não deve pretender, contudo, dar conta dos problemas sistemáticos que envolvem o projeto kelseniano de ciência jurídica, mas, sim, explorar e enfrentar o problema lançado por Kelsen e que perdura de modo difuso e, por vezes, inconsciente no imaginário dos juristas: a ideia de discricionariedade do intérprete ou do decisionismo presente na metáfora da “moldura da norma”….”

por Lenio Luiz Streck

Hans Kelsen

Este é um texto que trata sobre a perspectiva teórica de Kelsen, sobre a pureza do direito kelseniana. Para compreender adequadamente esse conceito, é necessário insistir em um ponto: em Kelsen, há uma cisão entre Direito e Ciência do Direito que irá determinar, de maneira crucial, seu conceito de interpretação. A “pureza”, em Kelsen, é da Ciência do Direito e não do Direito. Por isso, a interpretação, em Kelsen, será fruto de uma cisão: interpretação como ato de vontade e interpretação como ato de conhecimento. A interpretação como ato de vontade produz, no momento de sua “aplicação”, normas. Já a descrição das normas jurídicas deve ser feita de forma objetiva e neutral, a que Kelsen chamará de ato de conhecimento, a que produz proposições.

Devido à característica relativista da moral kelseniana, as normas — que exsurgem de um ato de vontade (do legislador e do juiz na sentença) — terão sempre um espaço de mobilidade sob o qual se movimentará o intérprete. Esse espaço de movimentação é derivado, exatamente, do problema semântico que existe na aplicação de um signo linguístico — por meio do qual a norma superior se manifesta — aos objetos do mundo concreto, que serão afetados pela criação de uma nova norma.

Por outro lado, a interpretação como ato de conhecimento — que descreve, no plano de uma metalinguagem, as normas produzidas pelas autoridades jurídicas — produz proposições que se inter-relacionam de maneira estritamente lógico-formal. Vale dizer: a relação entre as proposições é, essa sim, meramente sintática. A preocupação do pesquisador do Direito não deve pretender, contudo, dar conta dos problemas sistemáticos que envolvem o projeto kelseniano de ciência jurídica, mas, sim, explorar e enfrentar o problema lançado por Kelsen e que perdura de modo difuso e, por vezes, inconsciente no imaginário dos juristas: a ideia de discricionariedade do intérprete ou do decisionismo presente na metáfora da “moldura da norma”.

É nesse sentido que posso afirmar que, no que tange à interpretação do Direito, Kelsen amplia os problemas semânticos da interpretação, acabando por ser picado fatalmente pelo “aguilhão semântico” de que fala Ronald Dworkin. No fundo, Kelsen estava convicto de que não era possível fazer ciência sobre uma casuística razão prática. Desse modo, todas as questões que exsurgem dos problemas práticos que envolvem a cotidianidade do Direito são menosprezados por sua teoria na perspectiva de extrair da produção desse manancial jurídico algo que possa ser cientificamente analisado. Aqui reside o ponto fulcral, cujas consequências podem ser sentidas mesmo em “tempos pós-positivistas”: um dos fenômenos relegados a esta espécie de “segundo nível” foi exatamente o problema da aplicação judicial do Direito. Não há uma preocupação de Kelsen nem com a interpretação, nem com a aplicação do Direito.

Com efeito, não é sem razão que a interpretação judicial é tratada como um apêndice em sua Teoria Pura do Direito, no oitavo capítulo, é apenas apresentado o interesse para auxiliar a diferenciação entre a interpretação que o cientista do Direito realiza e aquela que os órgãos jurídicos proferem em suas decisões. Daí as conclusões de todos conhecidas: a interpretação dos órgãos jurídicos (dos tribunais, por exemplo) é um problema de vontade (interpretação como ato de vontade), no qual o intérprete sempre possui um espaço que poderá preencher no momento da aplicação da norma (é a chamada “moldura da norma”, que, no limite, pode até ser ultrapassada); mas a interpretação que o cientista do Direito realiza é um ato de conhecimento que pergunta — logicamente — pela validade dos enunciados jurídicos.

É nesse segundo nível, o da aplicação, que reside o cerne do paradigma da filosofia da consciência. É também nesse nível — o da aplicação a ser feita pelos juízes — que faz morada a discricionariedade positivista. Kelsen jamais negou que a interpretação do Direito (e não da ciência do Direito) está eivada de subjetivismos provenientes de uma razão prática solipsista. Para ele, esse “desvio” era impossível de ser corrigido. O único modo de corrigir essa inevitável indeterminação do sentido do Direito somente poderia ser realizado a partir de uma terapia lógica — da ordem do a priori — que garantisse que o Direito se movimentasse em um solo lógico rigoroso. Esse campo seria o lugar da Teoria do Direito ou, em termos kelsenianos, da ciência do Direito. E isso possui uma relação direta com os resultados das pesquisas levadas a cabo pelo Círculo de Viena.

Kelsen tem um tributo epistemológico principalmente com Rudolf Carnap e isso fica muito claro quando escolhe fazer ciência apenas na ordem das proposições jurídicas (ciência), deixando de lado o espaço da “realização concreta do Direito”. Com efeito, para Carnap, apenas a sintaxe e a semântica eram as dimensões da linguagem que interessavam ao labor filosófico. A pragmática, lócus dos valores e da ideologia, estava excluída da filosofia. Kelsen, portanto, privilegiou, em seus esforços teóricos, as dimensões semânticas e sintáticas dos enunciados jurídicos, deixando a pragmática para um segundo plano: o da discricionariedade do intérprete.

Esse ponto é fundamental para podermos compreender o positivismo que se desenvolveu no século XX. Trata-se de chamar a atenção desse positivismo normativista, não de um exegetismo que já havia dado sinais de exaustão no início do século passado.

Indubitavelmente, Kelsen já havia superado o positivismo exegético, mas abandonou o principal problema do Direito: a interpretação concreta, no nível da “aplicação”. E nisso reside a “maldição” de sua tese. Não foi bem entendido quando ainda hoje se pensa que, para ele, o juiz deve fazer uma interpretação “pura da lei”. Esta, talvez, seja a parte mais mal compreendida da Teoria Pura do Direito (TPD). A sua pureza nunca esteve na lei e, sim, na ciência descritiva do Direito.

Na verdade, Kelsen é o corifeu radical do normativismo jurídico, porque concebe o Direito como um conjunto de normas jurídicas. Eleva a imputação ao seu mais alto grau. Reelabora, desse modo, a tradição positivista dominante até então. O Direito não está composto somente de leis (normas), mas é um conceito mais amplo. Por isso ele faz uma concessão, deixando de lado a preocupação com a interpretação e com a decisão, rendendo-se ao fato de que o juiz também produz normas. Na teoria kelseniana, isso se torna lógico e evidente: para manter a separação entre Direito e Ciência do Direito, ele tem de aceitar que a aplicação do Direito é um ato de política jurídica, envolvendo moral, política, ideologia, enfim, admitindo que, no plano da aplicação, o juiz realiza um ato de vontade.

Leonel Severo Rocha acentua que Kelsen, ao contrário do que pensam seus leitores desavisados, por filiar-se à tradição alemã da Teoria do Conhecimento, assume como inevitável a complexidade do mundo em si. Para Kelsen, o social (e o Direito) são devidos às suas heteróclitas manifestações, constituídos por aspectos políticos, éticos, religiosos, psicológicos, históricos etc. A partir dessa constatação é que Kelsen vai procurar, assim como Kant, depurar essa complexidade elaborando um topos científico de inteligibilidade do Direito: uma coisa é o Direito, outra bem distinta é a ciência do Direito. O Direito é a linguagem-objeto, a ciência do Direito a metalinguagem: dois planos distintos e incomunicáveis.

É preciso compreender, em síntese, que, enquanto as demais teorias positivistas tratavam diretamente da lei, Kelsen deu um salto e preferiu tratar do discurso científico sobre a lei e o Direito. E isso só foi possível com os pressupostos neopositivistas, reconhecidos por autores como Luiz Alberto Warat e Norberto Bobbio. Nessa construção da ciência como metalinguagem reside a diferença fulcral de sua teoria em relação aos demais positivismos.

No plano de um estudo metaético, Kelsen pode ser considerado um não cognitivista no nível da política jurídica (nível da aplicação do Direito pelos juízes, em que se coloca no nível similar ao empirismo jurídico). Isto porque, no ato de interpretação de um órgão aplicador, a definição de sentido vincula-se a um ato de vontade suspenso no espaço e no tempo. Essa definição, diz Kelsen, é produto de um ato de vontade. E Ferraz Jr. complementa: Trata-se de um “eu quero” e não de um “eu sei”. E sua força vinculante, a capacidade de o sentido definido ser aceito por todos, repousa na competência do órgão (que pode ser o juiz, o próprio legislador quando interpreta o conteúdo de uma norma constitucional, as partes contratantes, quando num contrato interpretam a lei etc.). Havendo dúvidas sobre o sentido estabelecido, recorre- se a uma autoridade superior até que uma última e decisiva competência o estabeleça definitivamente. A sequência é de um ato de vontade para outro de competência superior.

Já no nível da ciência jurídica, ele é um cognitivista epistêmico, porque acredita na possibilidade de conhecermos aquilo que as normas jurídicas prescrevem. Entretanto, por não acreditar que elas são boas ou ruins, justas ou injustas, Kelsen acaba sendo um não cognitivista ético no nível da ciência jurídica também. Observe-se que norma jurídica, para Kelsen, é o sentido objetivo de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem. É o dever ser que dá sentido ao ser. Não há mal em si, ele diz. Matar não é bom, nem ruim. É apenas proibido ou permitido. Eis aí, no plano da metaética, o não cognitivismo de sua teoria pura. Puramente não cognitivista.

Já a norma fundamental proposta por Kelsen é o fundamento do seu cognitivismo epistêmico. Esse cognitivismo — epistêmico — está assentado em uma imputação, e não em uma relação de causalidade. Para ingressar no ordenamento, uma norma tem de passar por esse filtro. Mas uma vez incorporado como Direito, já não haverá juízo moral por parte do cientista. Como a própria realidade já é um conglomerado entre descrição e prescrição (ex.: uma briga entre duas pessoas não é apenas o braço em direção ao rosto do outro), Kelsen fugiu da realidade para construir uma ciência jurídica. Isto é, construiu seu próprio objeto de conhecimento — a ciência jurídica.

N.A. Este ensaio é uma reprodução de um dos verbetes do Dicionário de Hermenêutica, de Lenio Streck, agora em sua segunda edição, com cinquenta conceitos fundamentais à teoria do direito abordados pela perspectiva da Crítica Hermenêutica do Direito, matriz teórica do autor..

Lenio Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e membro da comissão permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).