Publicado por Djonatan Hasse em JusBrasil
1. Evolução histórica da jurisdição e do acesso à justiça
A exemplo de demais institutos jurídicos, a jurisdição e a garantia constitucional do acesso à justiça também surgiram de uma evolução histórica, e para que se possa compreendê-los, é necessário que se tenha um conhecimento a respeito dos seus históricos[1].
É cediço que por longos tempos o poder de dizer o direito não era exercido pelo Estado, mas sim pelas próprias partes conflitantes, por intermédio da autotutela, até mesmo porque não se tinha um conceito de poder estatal.
Assim, aqueles que se vissem envolvidos em qualquer tipo de conflito de interesses, deveriam resolvê-lo entre si e do modo que fosse possível, prevalecendo, na maioria das vezes, a força física em detrimento da razão jurídica[2].
Após, em um primeiro momento de forma facultativa e depois de forma obrigatória, os conflitos passaram a ser submetidos a arbitragem, onde uma terceira pessoa, desinteressada e imparcial, era eleita pelos contendores para solucionar o litígio[3].
Com o passar dos tempos e principalmente após a teoria da repartição dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), consagrada na obra “Espírito das Leis” de Montesquieu, já no Século XVII, o Estado passou a ser o detentor do poder de aplicar e dizer o Direito[4].
A partir de então, o Estado é quem começou a regular as relações sociais e obteve a monopolização da jurisdição.
O Ministro Luiz Fux[5], ao abordar o assunto, ensina:
O Estado, como garantidor da paz social, avocou para si a solução monopolizada dos conflitos intersubjetivos pela transgressão à ordem jurídica, limitando o âmbito da autotutela. Em consequência, dotou um de seus Poderes, o Judiciário, da atribuição de solucionar os referidos conflitos mediante a aplicação do direito objetivo, abstratamente concebido, ao caso concreto. […]
No entanto, juntamente com esta monopolização, o Estado tornou-se o responsável exclusivo em proporcionar o acesso à justiça, sendo impelido a viabilizar e efetivamente dizer o direito aos seus subordinados, distribuindo a justiça àqueles que a invocar.
Luiz Rodrigues Wambier[6] explica:
Se, por um lado, o Estado avoca para si a função tutelar jurisdicional, por outro lado, em matéria de direitos subjetivos civis, faculta ao interessado (em sentido amplo) a tarefa de provocar (ou invocar) a atividade estatal que, via de regra, remanesce inerte, inativa, até que aquele que tem a necessidade da tutela estatal quanto a isso se manifeste, pedindo expressamente uma decisão a respeito de sua pretensão.
Diante desta obrigação de colocar à disposição a tutela jurisdicional, se deu início a implantação de diversos instrumentos que assegurassem o acesso à justiça, dentre eles, a garantia constitucional.
Como visto, a garantia constitucional do acesso à justiça é fruto de uma evolução histórica e de uma necessidade social, que em razão de sua importância, foi elencada dentre os direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal.
2. Garantia Constitucional do Acesso à Justiça
A garantia constitucional do acesso à justiça, também denominada de princípio da inafastabilidade da jurisdição, está consagrada no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal[7], que diz:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Além da Constituição Federal, o artigo 8º da 1ª Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos de São José da Costa Rica[8], da qual o Brasil é signatário, também garante:
Art. 8º. Toda pessoa tem direito de ser ouvida, com as garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza.
Assim, o direito do acesso à justiça supera uma garantia constitucional, sendo elevado a uma prerrogativa de Direitos Humanos, revelando tamanha sua importância.
Para Uadi Lammêgo Bulos[9], o objetivo da garantia constitucional do acesso à justiça é “difundir a mensagem de que todo homem, independente de raça, credo, condição econômica, posição política ou social, tem o direito de ser ouvido por um tribunal independente e imparcial, na defesa de seu patrimônio ou liberdade.”
Logo, pode ser dito que a garantia constitucional do acesso à justiça está intimamente ligada e se relaciona diretamente com os demais princípios constitucionais, tais como, o da igualdade, haja vista que o acesso à justiça não é condicionado a nenhuma característica pessoal ou social, sendo, portanto, uma garantia ampla, geral e irrestrita.
Kildare Gonçalves Carvalho[10] diz que a garantia constitucional do acesso à justiça “é a inafastabilidade ao acesso ao Judiciário, traduzida no monopólio da jurisdição, ou seja, havendo ameaça ou lesão de direito, não pode a lei impedir o acesso ao Poder Judiciário.”
Não destoando, Luiz Fux[11], diz que:
O direito de agir, isto é, o de provocar a prestação da tutela jurisdicional é conferido a toda pessoa física ou jurídica diante da lesão ou ameaça de lesão a direito individual ou coletivo e tem sua sede originária […] na própria Magna Carta.
Resta indubitável a existência da garantia constitucional do acesso à justiça, por intermédio da qual toda pessoa interessada poderá invocar seu direito ou ver cessada a ameaça empregada contra seu direito.
Afinal, “ao que se afirmar titular de direito, se sobrevier lesão ou ameaça a esse direito, não poderá ser negado o acesso ao Poder Judiciário”[12].
Deve ser dito ainda, que a garantia constitucional do acesso à justiça vai além da obrigação do Estado em prestar a tutela jurisdicional. O Estado, deve adotar meios que viabilizam e facilitam o acesso à justiça.
Um exemplo de facilitação do acesso à justiça é a Lei nº 1.060/50, por intermédio da qual todo aquele que não tiver condições financeiras de arcar com as custas processuais e honorários advocatícios, ou seja, todo aquele que não tiver condições financeiras de exercer a garantia constitucional do acesso à justiça, poderá requerer que lhe seja deferido os benefícios da Justiça Gratuita, ficando isento dos dispêndios financeiros.
No entanto, há de ser observado que a garantia constitucional do acesso à justiça e seu acesso facilitado, por si só, não são suficientes a satisfação do direito buscado, fazendo-se necessária a existência de uma carga de efetividade sobre a prestação da tutela jurisdicional, o que, hodiernamente, está ausente nas decisões proferidas pelos magistrados.
3. Efetividade da Tutela Jurisdicional
A parte, ao buscar a prestação da tutela jurisdicional, quer ver satisfeito ou cessada a ameaça empregada contra o seu direito. Assim, espera-se que a tutela jurisdicional prestada pelo Estado seja efetiva e eficaz, produzindo efeitos no plano fático, o que se traduz na efetividade da tutela jurisdicional.
Trabalhando de forma correlata à garantia constitucional do acesso à justiça e a efetividade da tutela jurisdicional, Luiz Rodrigues Wambier[13] ensina:
À luz dos valores e das necessidades contemporâneas, entende-se que o direito à prestação jurisdicional (garantido pelo princípio da inafastabilidade do controle judiciário, previsto na Constituição)é o direito a uma proteção efetiva e eficaz, que tanto poderá ser concedida por meio de sentença transitada em julgado, quanto por outro tipo de decisão judicial, desde que apta e capaz de dar rendimento efetivo à norma constitucional.
Ainda Luiz Rodrigues Wambier[14]:
[…] Mas não se trata de apenas assegurar o acesso, o ingresso, no Judiciário. Os mecanismos processuais (i.e., os procedimentos, os meios instrutórios, as eficácias das decisões, os meio executivos) devem ser aptos a propiciar decisões justas, tempestivas e úteis aos jurisdicionados – assegurando-se concretamente os bens jurídicos devidos àquele que tem razão.
Para que haja efetividade, não basta que seja assegurado o acesso à Justiça ou facilitado seu acesso, as decisões, o julgamento e o resultado da análise do mérito deve ser útil e apto a produzir efeitos práticos na vida social.
Dando a devida importância a efetividade da tutela jurisdicional, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero[15] dizem:
[…] restou claro que hoje interessa muito mais a efetiva realização do direito material do que sua simples declaração pela sentença de mérito. Daí, pois, a necessidade de compreender a ação como um direito fundamental à tutela jurisdicional adequada e efetiva, como direito à ação adequada, e não mais como simples direito ao processo e a um julgamento de mérito. […]
Condicionando a aplicação da garantia constitucional do acesso à justiça a efetividade da tutela jurisdicional, Luiz Rodrigues Wambier[16], in verbis:
[…] para que seja plenamente aplicado o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, previsto naConstituiçãoo, é necessário que a tutela prestada seja efetiva. […] Na clássica definição de Chiovenda, tem-se que o processo será efetivo se for capaz de proporcionar ao credor a satisfação da obrigação, como se ela tivesse sido cumprida espontaneamente e, assim, dar-se ao credor tudo aquilo a que ele tem direito.
No mesmo sentido, Luiz Fux[17]:
Desígnio maior do processo além de dar razão a quem efetivamente a tem-na, é fazer com que o lesado recomponha o seu patrimônio pelo descumprimento da ordem jurídica, sem que sinta os efeitos do inadimplemento. Por isso que compete ao Estado repor as coisas ao statu quo ante utilizando-se de meios de sub-rogação capazes de conferir à parte a mesma utilidade que obteria pelo cumprimento espontâneo.
Neste aspecto, há de ser dito que não são raros os casos submetidos ao Poder Judiciário que ocorre a declaração do direito, no entanto, a parte vencedora não enxerga em efeitos práticos o direito que lhe foi declarado, pois falta a efetividade na tutela jurisdicional.
Em razão desta ineficácia, a autotutela ainda que proibida pelo ordenamento jurídico (artigo 345 do Código Penal), torna-se em algumas situações, mais vantajosa do que a tutela jurisdicional prestada pelo Estado, o que, sem dúvidas, é um retrocesso cultural e social.
Como visto no início deste estudo, o Estado, ao avocar para si o poder de dizer o Direito, também tornou-se o responsável pela distribuição e acesso à justiça, contudo, não basta proporcionar o acesso aos seus jurisdicionados, “garantir a efetividade de suas decisões é a contrapartida que o Estado tem que dar à proibição da autotutela”[18].
Assim, muito embora a garantia constitucional do acesso à justiça seja um relevante direito assegurado pela Constituição Federal, a efetividade e a eficácia da tutela jurisdicional são as grandes responsáveis pela satisfação e produção de efeitos no plano fático, logo, de quase nada adianta ter acesso à justiça se esta é ineficaz, pois, “garantir às pessoas a tutela jurisdicional e prestar-lhes a tutela inefetiva e ineficaz é quase o mesmo que não prestar a tutela”[19].
[1] WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil, volume 1: teoria geral do processo de conhecimento. 9. Ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 37.
[2] Idem.
[3] Idem. p. 38.
[4] MARINONI, Luiz Guilherme, Daniel Mitidiero. Código de processo civil comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 95.
[5] FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 41.
[6] Idem. p. 125.
[7] BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil: Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, Subsecetária de edições técnicas, 2008.
[8] TORRES, Ana Flávia Melo. Acesso à justiça, In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, III n. 10, ago 2002. Disponível em:< http://www.ambito-jurídico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9059>. Acesso em set 2013.
[9] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 482.
[10] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 11. ed., rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 460.
[11] FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 144.
[12] Idem. p. 125.
[13] Idem. p. 321.
[14] Idem. p. 70.
[15] MARINONI, Luiz Guilherme, Daniel Mitidiero. Código de processo civil comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 97.
[16] Idem. p. 321.
[17] Idem. p. 246.
[18] WAMBIER, Luiz Rodrigues. op. cit., p. 321.
[19] WAMBIER, Luiz Rodrigues. op. cit., p. 321.