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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

A DISCIPLINA DO ADEUS – por Karla Farias Vieira

“…  a verdadeira loucura é viver sem amar…”

 

 

Karla Farias Vieira

                                                                                   Ocupa a Cadeira nº 37, da Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política – AMCJSP. É Promotora de Jutiça e Diretora da Escola Superior do Ministério Público.

 

 

                   Lygia Fagundes Telles, a terceira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, parte hoje e nos reparte o coração. Ela que, através de sua obra, nos apresenta um mundo onde a verdadeira loucura é viver sem amar.

                   Assim o deixa vaticinado em “A Loucura no Cardápio”, (1998), quando, ao último suspiro, a moribunda sobrinha confessa, à sua tiazinha, seu pecado mortal, apertando “desesperadamente a primeira mão ao alcance: ‘É que estou morrendo e não me diverti nada’”.

                   Há alguns anos, ao fazer parte de um Clube do Livro, fui atropelada pela leitura de “A Disciplina do Amor”. Sem sombra de dúvida, trata-se de um compêndio de páginas claramente autobiográficas de Lygia Fagundes Telles, eis que ela própria está elegantemente corporificada em todas as narrativas, apesar de ter intitulado a publicação de “Memória e Ficção”. A narradora ali existe com um corriqueiro propósito, não só para fugir de aprofundamentos de motivações inconvenientemente persistentes, como para revelar uma alma tímida, daquelas que conhecem muito bem o quanto a literatura/a arte expõe o artista – “Dispo meu coração como uma puta …”.

                   Mas não há jeito ou maneira, toda obra, ainda, em parte ficcional, traz
por completo, em si, o seu autor. Assim, vamos imaginando e corporificando uma Lygia próxima e real, criança, que começa a escrever praticando seu nome com uma sopa de letrinhas, onde era tão difícil achar a letra “Y”, uma odisseia (!). Com gosto por escutar música clássica e ler “As Confissões de Santo Agostinho”, desenvolveu durante muito tempo o hábito de assistir ao Jornal Nacional para se preocupar com o avanço das usinas nucleares no Brasil. É simplesmente esta a razão da minha escolha por essa obra específica, dentre todas as outras, para homenageá-la agora, um livro em que todas as personagens não só pensam como a autora, mas que efetivamente são a própria autora.

                    A perda da estabilidade promovida pelo impacto desse livro vem do que ela conta e de como antecipa a realidade atual, a partir de um olhar muito apurado e em prospectiva de como enxerga a nossa sociedade. Àquela época andava com a imunidade baixa, talvez causada por questões emocionais mal resolvidas, quiçá cansada por esse sentimento de inadaptação, de falta de lugar que o envelhecer causa. Em 1998, Lygia nos chamava previamente a atenção para o grave problema que envolve o Etarismo. Sentimentos que a empurraram a escrever os “Fragmentos” e em razão do qual ela se preocupava em pedir que não a deixássemos de lê-la.

                   Preocupada com os destinos que tomávamos insistia em nos instigar sobre “a ambiguidade dos prisioneiros acorrentados a um barco completamente livre. No mar livre”. De onde mesmo, Lygia, vêm essas amarras às quais nos permitimos atar? Ronda a autora um clamor emancipatório que nos deve contagiar.

                   Definitivamente “A Disciplina do Amor” pode até não ser classificada como uma autobiografia, mas é certo que suas páginas mais que contar estórias distantes, acolhem, predizem e aconselham, vão nos dando aquela intimidade da amizade. Ao fim, acaba-se com aquela sensação de que nos conhecemos tão bem, sabedora até daquele dia na praia de Ubatuba, que enquanto lia um livro de poemas, presenciou o sobrevoo de um disco voador! Não te preocupes, Lygia – (somos íntimas), realmente “Não estamos sós”, nem sequer no espaço.

                   Aliás, é de “Não estamos sós” que transcrevo essa belíssima passagem com auspícios de testamento: “É noite e chove sem parar. (…) Todos uns românticos, do gênero chupador de mexericas – diria meu amigo Cordaro Júnior. Eu incluída? Eu incluída. Quero argumentar com ele mas não consigo ir adiante, estou com pressão baixa, fim da gripe. Não quero polêmica nem comigo mesma, hoje não. Hoje não! Já ouvi o suficiente há pouco, quando o elegante locutor do jornal falado provou por palavras e imagens o nosso atraso e respectiva incapacidade de luta contra a infelicidade e a miséria – uma característica não só do nosso povo mas da nossa civilização”.

                   Por fim, é de observar-se que Lygia Fagundes Telles, com o conjunto de sua obra, conseguiu adjudicar para si a imortalidade. E, aqui foi feita referência a apenas um de seus livros. Efetivamente, a sua imortalidade não se situa em títulos, mas em essência, a escritora valorosa, solidária, comprometida com uma vida onde caibam todos. Essa mesma imortalidade também é descrita em “Fragmentos da Carta à Mãe em Prantos”, na qual a autora mostra toda a sua preocupação em nos ofertar esse consolo final quando diz pela boca da sua personagem: “- NÃO, NINGUÉM MORRE. É que os mortos são discretos. Tão silenciosos”, mas eles permanecem além deles, na carne de nós mulheres e homens leitores, nos emocionados por suas estórias, em todos os românticos e os sentimentais que se importam em amar ao próximo e, transformar este mundo em outro, mais fraterno e igual. Sim, não estamos sós, te levamos conosco.

 

(A leitura de Lygia Fagundes Telles é essencial para o desenvolvimento civilizatório, faz-se, portanto, urgente agora)