O que se passa com o Brasil, uma economia pujante e moderna, mas que não consegue libertar-se do atraso social?
Por Sergio Victor Tamer*
Os 35 anos da Constituição brasileira, celebrados neste mês de outubro, contabilizam 131 Emendas, a última delas publicada no dia 4 de outubro de 2023, na véspera do seu aniversário, mas ela permanece firme no tocante às garantias que preservam a dignidade da pessoa humana, em especial os direitos sociais. Mas essas garantias só funcionam com políticas públicas e, grosso modo, elas ou são precárias ou inexistentes, como temos constatado desde o seu nascimento em 1988. A Constituição, todavia, fez a sua parte. A doutrina e a jurisprudência, também. Mas na hora de dar efetividade à norma constitucional de natureza social o Poder Executivo, nos seus três níveis, mostra-se claudicante. O que se passa com o Brasil, uma economia pujante e moderna, mas que não consegue libertar-se do atraso social?
Há, de fato, uma enorme dificuldade para fazer chegar os direitos sociais ao conjunto da sociedade e este é um tema constitucional de extrema importância, vinculado que está à efetivação dessas normas fundamentais, sobretudo em um país como o nosso que guarda diferenças regionais e de desenvolvimento bastante acentuadas. É certo que as constituições de natureza liberal-social, como a brasileira, ou a social-democrática, como a portuguesa e a espanhola, dão uma extraordinária importância à implementação dos direitos sociais e à dignidade da pessoa humana, daí que interpretando essa linha de pensamento constitucional o constitucionalista português Jorge Miranda afirma que “de modo direto e evidente os direitos econômicos, sociais e culturais comuns tem a sua fonte ética localizada na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”. Sob esse enfoque, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais – que na Constituição brasileira aparece no art. 3º, III, como um dos objetivos fundamentais da República – vem sendo uma das maiores prioridades na construção de sociedades mais justas. Nesse panorama, estamos celebrando os 35 anos de uma Constituição democrática que nos trouxe muitas promessas sociais e, com elas, algumas frustrações, pelo que vale ressaltar, aqui, a advertência feita pelo cientista político Robert Dahal no sentido de que a democracia, para que exista plenamente, tem que ir “de mãos dadas com vários companheiros de viagem, entre os quais estão a cultura política, o desenvolvimento econômico e a modernização social”.
Todavia, no Brasil, em que pese as garantias legislativas e judiciais para tornar efetivo os direitos sociais, a estrutura cultural e política do Estado oferece um obstáculo suplementar a esse propósito. Mas tais obstáculos, contudo, não aparecem explícitos na doutrina jurídica nacional – que sequer os mencionam – bem como na doutrina internacional que geralmente elegem obstáculos de outra ordem para a efetivação desses direitos. No entanto, tais entraves, entre nós, são compostos por elementos culturais e políticos historicamente arraigados, e por isso detentores de um poder avassalador sobre o sistema de garantias de natureza prestacional a ponto de sufocá-lo e de oferecer um risco permanente à efetividade constitucional nessa área, a saber: 1) a burocratização; 2) a corrupção; 3) as políticas públicas ineficientes ou precárias; 4) os direitos sociais tomados como “assistencialismo social” em detrimento de seu caráter universal.
Elemento perturbador na consecução de políticas públicas, a burocratização e a corrupção são como irmãs siamesas neste processo cultural e político. E assim, tanto uma como outra, atuando em sua peculiar maneira de ser nas estruturas estatais, bloqueiam ou dificultam até à sua inefetividade as políticas públicas destinadas a cumprir os mandamentos constitucionais ou infraconstitucionais. Como se sabe, não há déficit legislativo no Brasil pois aqui temos lei para tudo, especialmente nesse campo, mas padecemos do mal da inefetividade de boas práticas governamentais.
Democracia, desenvolvimento e direitos humanos – ainda que não seja possível encontrar plenamente atendidos nos Estados contemporâneos, passaram a ser indispensáveis para legitimar esses mesmos Estados. O princípio da dignidade da pessoa humana ganha destaque, nesse cenário, como valor supremo, e passa a ser a fonte por excelência dos direitos fundamentais. Mas o grande desafio para o constitucionalismo social continua sendo o de reduzir a distância estrutural entre normatividade e efetividade. E se é verdade que a Constituição democrática é a “união do povo com o Estado” deixemos que esse casamento seja duradouro, ainda que em meio às suas relações conflituosas, evitando, assim, tantas infidelidades constitucionais por parte dos poderes da República…
SERGIO VICTOR TAMER é professor e advogado, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca; presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e da Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política