O discurso do Direito Penal do Inimigo no terrorismo: aonde vamos parar?
Fernanda Ravazzano
Pós-doutoranda em Relações Internacionais e doutora em Direito Público
Na semana passada foi noticiado pela imprensa nacional e internacional que a polícia federal brasileira realizou a prisão de um grupo de 11 (onze) pessoas acusadas de terrorismo, resultado da operação Hashtag.
É possível encontrar o perfil de cada um dos suspeitos, com informações que levaram a polícia a crer terem envolvimento com o Estado Islâmico e intenções de provocar um atentado durante as olimpíadas do Rio.
Não entrarei, por óbvio, no mérito se há de fato ou não envolvimento de quaisquer dos suspeitos em grupo terrorista – primeiramente por não os conhecer, em segundo, por não ter tido acesso às investigações e terceiro, por não ser meu papel investigar o caso – mas como advogada e cidadã, preocupo-me com os dois polos extremos: a prisão dos suspeitos pela prática de atos preparatórios e a proibição de terem contato com seus patronos, bem como, se de fato forem terroristas, como evitar, de forma eficaz, que outros grupos/células atuem durante os jogos olímpicos e após estes.
Percebemos que a questão é profunda e dolorosa: de um lado preservação dos direitos e garantias fundamentais do homem, pois estamos em um Estado Democrático de Direito; de outro, as incontáveis barbáries que vêm ocorrendo oriundas de ataques terroristas, com perdas de tantas vidas permite-nos ainda lutar pela observância das garantias dos acusados. Há um jogo extremamente sujo e sem regras sendo utilizado pelas células terroristas, mais especificamente, pelo Estado Islâmico, que mesmo como grupo extremista, não adota as regras e padrões dos já vistos em outros momentos.
Explico: o Estado Islâmico incentiva ataques de “lobos solitários”, homens que simplesmente juram obediência ao EI antes ou mesmo durante o ataque, sem sequer ter apregoado quaisquer dos objetivos da célula; atuam ainda de forma isolada ou em pequenos grupos, utilizando-se de quaisquer meios para difundir o terror e provocar vítimas: atentados com bombas, tiros, atropelamentos, até mesmo esfaqueamentos são incentivados pelas “lideranças” do EI.
O TERROR SEM ROSTO
Dentro do próprio terrorismo, que antes possuía um “rosto”, ainda que fruto de absurdo preconceito aos árabes e adeptos do islamismo, levando-nos a crer que o “suspeito” deveria ser um homem moreno, com barba, possivelmente usando turbante, com o corão na mão, gritando palavras de ordem (estereótipo criado em razão da figura de Osama Bin-Laden e reforçado pelo aparência do próprio líder do Estado Islâmico Abu Bakr Al Baghdadi, conhecido como califa), mas que pode ter como adeptos, no momento dos ataques, quaisquer pessoas de aparência comum, como ocorreu no atentado em Nice, que comentamos semana passada.
Como visto, o atentado provocou ainda mais pânico por ter o terrorista atropelado suas vítimas com um caminhão – nada de homem bomba que se explode ou de uma mochila/mala deixada estrategicamente em um ponto para em seguida ser detonada – e de aparência comum:
"O perfil pouco chamativo do motorista complica a investigação do terceiro maior atentado terrorista da França nos últimos 18 meses, dando às autoridades menos pistas sobre quais seriam os motivos do atentado.Mohamed Lahouaiej-Bouhlel não tinha a aparência de uma pessoa religiosa e frequentemente era visto de bermuda, conta Sébastien, um vizinho do edifício de quatro andares onde nesta sexta-feira a inspeção foi realizada."
No entanto, o Estado Islâmico reivindicou o ataque; o mesmo ocorreu com o ataque em Orlando, Estados Unidos. Novamente o EI afirmou que um guerreiro seu realizou o atentado. Mateen também possuía uma aparência “comum” quando comparamos ao estereótipo criado para identificar terroristas. Ou seja: nem o terrorismo possui um único modus operandi, tampouco possui um rosto.
AS MITIGAÇÕES DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS PARA O COMBATE AO TERRORISMO
Sem sabermos ao certo qual o método a ser empregado e quais traços físicos nos levariam a suspeitar de alguém (sim, o estereótipo é utilizado para atribuir a alguém participação em terrorismo, em clara postura xenofóbica), a polícia federal realizou a operação Hashtag, com o auxílio da inteligência de outros países e prendeu o grupo mencionado no início desse artigo.
Alegam como provas supostos vídeos divulgados pelos envolvidos, declarações a terceiros de obediência ao EI e documentos que conteriam um plano para um ataque. Na dúvida, a lógica do combate ao terrorismo determina que haja a prisão. Na dúvida, são restringidos direitos e garantias fundamentais para garantir não apenas a segregação do sujeito, mas por tempo necessário à elucidação dos fatos. Na dúvida, a integridade do imputado pode ser afetada (ainda que a nível psicológico) para se alcançar o maior número de informações possíveis acerca do grupo, o método que seria empregado e quais as pessoas envolvidas.
É o discurso da guerra ao terror, do Direito Penal do Inimigo de JAKOBS (2013), em que o homem periculoso não possui os direitos e garantias fundamentais assegurados ao cidadão comum.
Mas o ponto mais nervoso neste caso é o não acesso dos advogados a seus clientes. Se a prisão foi pautada na lei antiterrorismo – já criticada nesta coluna – bem como, lastreada na necessidade de uma prisão temporária ou preventiva, por qual razão não se deve dar oportunidade do advogado ter acesso ao cliente? Qual o fundamento? Há receio de que o advogado também seja integrante da célula terrorista – e, se for esse o argumento, mais uma vez a figura do advogado torna-se demonizada – ou o medo das autoridades é de que a prisão foi flagrantemente ilegal e haja a possibilidade de soltura?
Já que estamos às vésperas de uma olimpíada, com risco de ataque terrorista, será que a única alternativa é aplicar o Direito Penal do Inimigo aos acusados de participarem do EI ou há outra possibilidade?
Um sujeito acusado de terrorismo, caso de fato o seja, uma vez liberado, poderá praticar um ataque durante sua soltura. A questão é extremamente polêmica e grave. Por outro lado, toda autorização que damos para a prática de condutas de exceção, infelizmente, viram regra, sobretudo no Brasil. Qual a justa medida?
Fato é que a portaria do Ministério da Justiça viola a Constituição Federal, Tratados Internacionais, o código de processo penal e o Estatuto da OAB, ao restringir o acesso do acusado a seus advogados. Pior: a portaria não se refere a suspeita de integrantes de células terroristas, atos terroristas ou financiamento ao terrorismo, mas a qualquer crime federal, tendo um alcance muito maior do que o que se discute hoje em todo o mundo como estratégia de combate ao terrorismo. Deve ser, portanto, rechaçada, pois sequer está embasada no argumento de um estado de exceção diante de uma situação emergencial (ataque terrorista iminente em virtude dos jogos olímpicos); ademais viola o Estado Democrático de Direito.
No mencionado documento, só se permite a entrevista do suspeito com advogado três vezes na semana, devendo ser agendado horário prévio; o advogado não poderá portar caneta, papel ou relógio para conversar com o cliente. A procuração dada ao advogado deverá ser submetida à apreciação prévia do estabelecimento, para somente então agendar-se a visita. Os autos do inquérito ou processo de posse do advogado devem ser enviados pelo correio para verificação prévia.
A OAB nacional, através do seu presidente Claudio Lamachia, emitiu a seguinte nota:
"A Constituição assegura a todos os cidadãos o acesso a um advogado para que sejam garantidas a ampla defesa e o devido processo legal. O impedimento ao trabalho da advocacia é uma afronta à democracia. É urgente e necessário combater o terrorismo de forma dura, com todos os meios disponíveis e dentro da lei. Mas o caminho de combater o crime cometendo outros crimes e violando prerrogativas da advocacia leva o país ao retrocesso. A OAB adotará todas as ações necessárias para assegurar o exercício profissional dos advogados e a imediata revisão da portaria do Ministério da Justiça, se ela estiver em vigor."
É EFICAZ?
A pergunta mais importante me parece ser: é eficaz a restrição à presença do advogado ao suspeito de terrorismo – quanto aos demais crimes federais certamente não há qualquer razoabilidade para a determinação da limitação do acesso ao advogado – para evitar ataques? Qual a relação direta entre o suspeito e o advogado, para impor a incomunicabilidade? Quantos casos nos Estados Unidos, França e outros países que já sofreram atentados terroristas e ainda sofrem, a incomunicabilidade do investigado com seu advogado se revelou eficaz? Quantos ataques foram evitados? Não se sabe, o que temos certeza é que os EUA e a França continuam sendo alvo de ataques terroristas e não há demonstração da maior ou menor eficácia na prevenção a ataques com tamanha violação aos direito de defesa.
A legislação francesa prevê que o suspeito de envolvimento com terrorismo preso fica incomunicável por 03 (três) dias e somente então passa a ter o direito de conversar com o advogado, por 30 (trinta) minutos.
Parece-me que a questão aqui é de política criminal: tal restrição produziu qual efeito no combate ao terrorismo? Creio que nenhuma, haja vista que estamos a todo momento, infelizmente, noticiando novos atentados na França.
REFERÊNCIAS
JAKOBS, Ghunter; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.