Celso de Mello: o Judiciário não pode assumir as vezes de um Estado absolutista, que considera a acusação como suficiente para condenar alguém por um crime…
Não é simples a tarefa do decano do Supremo Tribunal Federal de fazer o discurso do dia na posse do novo presidente. De uma tacada só, cabe ao orador dar as boas-vindas ao novo comandante, homenagear o que deixa o cargo e falar sobre assuntos que entenda pertinentes. Tudo isso com a consciência de que se está produzindo um documento histórico, por meio do qual pesquisadores farão um retrato do Supremo.
Por isso, cada ideia expressa em cada palavra conta. E muito. O ministro Celso de Mello, decano do STF desde a aposentadoria do ministro Sepúlveda Pertence, em 2007, está plenamente consciente da tarefa. Até por ser considerado o historiador por excelência do Supremo.
E diante do quadro geral dos discursos, todos clamando por um Estado mais forte, mais poderoso e mais punitivo, é normal que ouvidos desatentos tenham entendido a fala do ministro nesta segunda-feira (12/3) em homenagem à posse da ministra Cármen Lúcia como mais uma a fazer o coro dos acusadores insatisfeitos com tudo o que está aí.
Mas o discurso de Celso de Mello tinha uma ressalva importante: o Judiciário não pode assumir as vezes de um Estado absolutista, que considera a acusação como suficiente para condenar alguém por um crime. Em seu discurso, usou muitas páginas para condenar os crimes de corrupção e seus efeitos danosos sobre a sociedade e sobre a ideia de Estado. Porém, alertou que a Justiça jamais poderá procurar subterfúgios à aplicação das regras penais.
A fala do decano tem contornos importantes. O Supremo está diante de um dos casos criminais de maior relevância de sua história: se é constitucional autorizar que a prisão seja executada mesmo ainda havendo recursos pedentes de julgamentos pelos tribunais superiores. Para Celso, o STF, mais do que qualquer órgão judicial, não pode tergiversar com a frase “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, conforme diz, literalmente, o inciso LVII do artigo 5º da Constituição.
“O STF, como órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional e máximo guardião e intérprete da Constituição, garantirá, de modo pleno, às partes de tais processos, na linha de sua longa e histórica tradição republicana, o direito a um julgamento justo, imparcial e independente, com rigorosa observância de um dogma essencial ao sistema acusatório: o da paridade de armas, que impõe a necessária igualdade de tratamento entre o órgão da acusação estatal e aquele contra quem se promovem atos de persecução penal, em contexto que, legitimado pelos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, repele a tentação autoritária de presumir-se provada qualquer acusação criminal e de tratar como se culpado fosse aquele em favor de quem milita a presunção constitucional de inocência”, discursou.
Celso está preocupado com os rumos que o tribunal que integra desde 1989 vem tomando. A corte costumava entender, como era permitido desde a Constituição de 1946, que, depois da decisão de segunda instância, já se poderia executar a pena de prisão.
O pensamento por trás desse entendimento é o de que, depois dos tribunais locais, estão esgotadas as possibilidades de discutir provas de autoria e materialidade. Ao Supremo e ao Superior Tribunal de Justiça cabe apenas a discussão de Direito e de garantias.
Mas, a partir de 2006, o ministro Celso de Mello foi ficando vencedor quando dizia que a Constituição de 1988 não deixa margem a dúvidas. E ela diz que só depois de esgotadas todas as possibilidades de recurso é que um réu torna-se culpado e pode ser preso.
Em 2009, o Plenário confirmou esse entendimento. Só que, em fevereiro deste ano, o mesmo Pleno mudou de ideia e voltou atrás. Celso e o vice-decano, ministro Marco Aurélio, ficaram vencidos e visivelmente consternados. Marco Aurélio chegou a dizer que o tribunal rasgara a Constituição.
Celso lamentou, à maneira dele. Isso porque, além do texto literal da Constituição, o próprio Código Penal faz menção ao trânsito em julgado diversas vezes para falar em execução de medidas restritivas.
O artigo 50 do Código Penal, por exemplo, estabelece que “a multa deverá ser paga dentro de dez dias depois de transitada em julgado a sentença”, conforme redação dada o dispositivo por uma lei de 1984. Se a aplicação da parte acessória da pena exige o trânsito em julgado, por que a pena corporal não exigiria?
A mesma filosofia segue a Lei de Execução Penal. “Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade”, diz o artigo 105, “o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução”. Isso está no capítulo que fala das penas privativas de liberdade.
Já o artigo 147, que integra o capítulo que trata das penas restritivas de direito, diz: "Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução”.
Para o ministro Celso, o juiz brasileiro não pode ignorar esses mandamentos, todos anteriores à Constituição Federal hoje em vigor. Afora isso, está na pauta do Supremo a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que só admite a prisão definitiva depois do trânsito em julgado da condenação. Qualquer outra prisão deve ser medida processual cautelar.
“Enfim, senhora presidente: neste singular momento em que o Brasil, situando-se entre o seu passado e o seu futuro, enfrenta gravíssimos desafios, parece-me essencial reafirmar aos cidadãos de nosso país que esta Corte Suprema, atenta à sua alta responsabilidade institucional, não transigirá nem renunciará ao desempenho isento e impessoal da jurisdição, fazendo sempre prevalecer os valores fundantes da ordem democrática e prestando incondicional reverência ao primado da Constituição, ao império das leis e à superioridade ético-jurídica das ideias que informam e animam o espírito da República”, concluiu o decano.