O garantismo sob ataque.
Por Sergio Tamer
É princípio assente nas democracias que o devido processo legal, garantidor dos princípios constitucionais e processuais, é que torna justa e legítima a aplicação da pena ou a absolvição do réu, restando os demais procedimentos como típicos dos tribunais de exceção existentes nas mais diversas formas de ditaduras e autocracias, sendo elas disfarçadas ou não.
O Supremo Tribunal Federal, no Brasil, nestes “tempos estranhos” a que alude o ministro Marco Aurélio Mello, tomou algumas posições de acesa polêmica, ora ultrapassando a sempre tênue linha que demarca a separação dos poderes e os atos políticos-jurídicos que lhes são inerentes, ora mitigando garantias expressas no texto constitucional, a exemplo do princípio da presunção de inocência insculpido no Art. 5, inc. LVII da Constituição Federal de 88, ao estabelecer que esse princípio não se configuraria, em si, como obstáculo à execução da pena enquanto pendente de apreciação os recursos especial e extraordinário. Por seu turno, as prisões preventivas e as medidas cautelares têm sido utilizadas aos borbotões, muitas vezes em nítido atropelo constitucional, mas quase sempre acompanhadas de saciantes espetáculos midiáticos. O respeitável público, majoritariamente, gosta e aplaude. Ou, como bem observou o professor e jurista Alexandre Freire: “Não se avança culturalmente restringindo-se direitos. ” Realmente, vivemos “tempos estranhos”…
Não estamos falando – é bom que se ressalve – de omissões legislativas, nem tampouco de normas programáticas que exigem o esforço criativo e constitutivo das decisões judiciais na direção das garantias e dos direitos fundamentais, mas de decisões que fazem o caminho inverso, afrontando princípios constitucionais garantistas. Nem o “judicial ativism” ousaria tanto!
O modelo garantista de que nos fala Ferrajoli é uma ampliação do significado de “garantias” justamente no âmbito do direito penal. Ao surgir na cultura italiana de esquerda na segunda metade dos anos setenta, o garantismo aparece associado à tradição clássica do pensamento penal liberal. É típico, pois do iluminismo jurídico, da tutela do direito à vida, à integridade e à liberdade pessoal frente ao poder punitivo. Assim, garantismo e direito penal mínimo são termos sinônimos que expressam um modelo teórico e normativo de direito penal que intenta minimizar a violência da intervenção punitiva.
Ao falar do fundamento democrático da legitimização do poder punitivo, Ferrajoli afirma que se o significado de “democracia” equivalesse à “vontade da maioria”, ficaria excluída toda possibilidade de fundar uma axiologia democrática e garantista do direito penal. Nesse sentido, a legitimação do poder judicial não é “democrática” se a entendemos somente como vontade da maioria pois o próprio Norberto Bobbio já se referiu ao tema dizendo que “a batalha pelo garantismo sempre foi uma batalha da minoria”. É nesse ponto que Ferrajoli afirma que “não se pode condenar ou absolver a um homem porque convém aos interesses ou à vontade da maioria. Nenhuma maioria, por esmagadora que seja, pode fazer legítima a condenação de um inocente ou a absolvição de um culpado”.
Portanto, a democracia que queremos no âmbito jurídico-político não é a democracia das maiorias volúveis, mas a democracia constitucional, ou “de direito”, a qual faz referência não à maioria, senão “ao que” é o que não pode decidir nenhuma maioria, nem sequer por unanimidade, situação em que as constituições democráticas convencionaram subtrair à vontade da maioria, nomeadamente no campo dos direitos fundamentais. As garantias, incorporadas nas constituições, são como fontes de legitimação jurídica e política das concretas decisões no âmbito penal. Nesse ponto, apoiado no pensamento de Dworkin, o autor de “Democracia e garantismo” afirma que precisamente porque os direitos fundamentais e suas garantias são “direitos e garantias frente à maioria”, também o poder judicial, a quem se encomenda sua tutela, deve ser um poder virtualmente “frente à maioria”.
A leitura do mestre italiano serve de reflexão, nestes tempos de “vaidades exacerbadas” e de busca de protagonismos midiáticos, impulsionados pelas “vozes das ruas”, para que nossos juízes do STF não caiam na tentação de fazer uma espécie de “ativismo judicial às avessas” pois, ao atropelar os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, como fizeram no julgamento do HC 126.292/SP estão a golpear, na verdade, a legitimidade da jurisdição.
Sergio Tamer é doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca, editor da Revista Juris e Presidente do CECGP – Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública.