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Decisões impactantes do STF desprezam os precedentes, diz Grupo REC/CNPq

 STF tem tomado decisões desprezando os precedentes, diz “Grupo Recife de Estudos Constitucionais – (REC/CNPq)”

 

Para ser adequada e satisfatória, a fundamentação de uma decisão na seara da jurisdição constitucional deve estar atenta aos precedentes, bem como à interpretação evolutiva da Constituição.

 

O Supremo Tribunal Federal, em sessão do Plenário do dia 6 de outubro de 2016 (um dia após a data de aniversário de 28 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988), julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.983, ajuizada pelo Procurador Geral da República contra a Lei 15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado.

O resultado do julgamento, em placar apertado de 6 X 5, foi o seguinte: seguiram o relator, ministro Marco Aurélio, em seu voto pela procedência do pedido, os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e a presidente da corte, ministra Cármen Lúcia. De outro lado, vencidos, os ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

Assim como em qualquer outro caso, vários aspectos podem ser analisados em relação ao julgamento do caso da (in)constitucionalidade da prática da vaquejada. Este artigo chamará atenção, no julgamento da ADI 4.983, para o fato de o Supremo Tribunal Federal, ponderando normas extraídas do texto constitucional, sem seguir uma linha evolutiva em sua jurisprudência e sem, como deveria, enfrentar com mais detalhes precedentes invocados pelo voto vencedor, declarar inconstitucional uma lei que visava a conferir maior formalidade e maior possibilidade de fiscalização por parte do Estado a uma prática esportiva tradicional no país.

De logo, importante deixar patente que não é objeto deste artigo analisar o acórdão do Supremo Tribunal Federal no seu mérito. Não se trata, aqui, de assumir posição favorável ou contrária ao julgamento. Trata-se, isso sim, de analisar como o Supremo Tribunal Federal brasileiro tem decidido questões importantes para o sistema jurídico do país sem atender a critérios mínimos no que tange a fundamentação adequada, atenção aos precedentes e à evolução de sua própria linha jurisprudencial.

O voto do ministro relator invoca, de início, a ponderação de normas constitucionais. Assume haver conflito de normas sobre direitos fundamentais — de um lado, o artigo 225, § 1º, inciso VII (veda práticas que submetam animais a crueldade) e, de outro, o artigo 215 (proteção às práticas culturais). Na sua técnica de “ponderação”, sem maiores digressões, considera que a prática da vaquejada submete, segundo pareceres acostados aos autos, os animais a crueldade e que, assim, deve prevalecer a norma extraída do artigo 225.

Em relação aos precedentes, o voto traz o julgamento do Mandado de Segurança 25.284, referente à criação da “Reserva Extrativista Verde para Sempre”, aduzindo o relator da ADI que, com fundamento no mencionado MS, “o comportamento decisório do Supremo diante da necessidade de ponderar o direito ao meio ambiente com os direitos individuais de naturezas diversas tem sido o de dar preferência ao interesse coletivo”. Embora mencione o “comportamento decisório”, cita apenas o mencionado acórdão e, mesmo assim, sem revolver a ratio decidendi do precedente invocado. Ora, sabe-se que o que forma a identidade do precedente é aholding ou ratio decidendi, ou seja, o conjunto fático-jurídico analisado pela decisão judicial dita precedente e possa ser invocada como tal. Não ocorreu no caso.

Seguindo a trilha de se reportar a seus precedentes, invoca, na sequência, julgamentos relacionados à “briga de galos”: Ações Diretas de Inconstitucionalidade 1.856/RJ, relator ministro Celso de Mello, julgada em 26 de maio de 2011, e 2.514/SC, relator ministro Eros Grau, apreciada em 29 de junho de 2005. Traz à colação, ainda, “precedente” ligado à “farra do boi”: Recurso Extraordinário 153.531/SC, apreciado em 3 de junho de 1997.

Mais uma vez, o ministro Relator, no voto acolhido por mais cinco ministros do Supremo Tribunal, invoca “precedentes” sem analisar de forma mais cuidadosa os fatos e os fundamentos que levaram às respectivas conclusões. Será que não é relevante, por exemplo, considerar as distinções entre a briga de galo e a farra do boi, de um lado, e a vaquejada, do outro? Será que não merece a menor consideração, seja para afastar ou acolher possíveldistinguish, considerar que as duas primeiras práticas levam, por finalidade do jogo, à morte do animal, não sendo esse o caso da vaquejada? Ou que, conforme expressamente consignado no julgamento da ADI 1.856/RJ, a prática de brigas de galo é enquadrada no tipo penal do artigo 32 da Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais)? Importante lembrar que nas rinhas de galo os animais são submetidos a lutas, usualmente equipando as esporas dos animais com artefatos cortantes, o que não raro leva o oponente à morte. Ou que, na farra do boi, os bois eram isolados e tinham a alimentação suspensa. Após alguns dias, eram colocados comida e água à sua vista, mas sem que ele pudesse alcançar, chegando ao desespero. Finalmente, no dia da farra, as pessoas esperavam o animal para feri-lo até a morte com paus, pedras, chicotes, facas, cordas e lanças. Mas, nada disso foi revolvido pelo voto vencedor na ADI 4.983. Nenhuma consideração sobre esses ou outros aspectos fático-jurídicos dos “precedentes” invocados; apenas generalidades sobre suas conclusões e alguns dispositivos constitucionais levantados nos respectivos julgamentos.

Desses julgados o ministro relator entendeu haver substrato suficiente para extrair a conclusão: “Cabe indagar se esse padrão decisório configura o rumo interpretativo adequado a nortear a solução da controvérsia constante deste processo. A resposta é desenganadamente afirmativa, ante o inequívoco envolvimento de práticas cruéis contra bovinos durante a vaquejada”.

Se estamos tentando analisar o exercício da jurisdição constitucional e se não temos uma forma que garante chegar a resultados corretos, quais são os critérios para avaliarmos os julgamentos? Ou seja, até onde pode ir o juiz constitucional no seu mister? Qual é a diferença entre uma interpretação absolutamente indefensável (se é que isso existe) e outra razoável, mesmo que indiscutivelmente errada? Em suma, o que faz do direito mais um exercício de julgamento razoável, embora não puramente lógico, do que de aplicação de força arbitrária? Uma fundamentação satisfatória, adequada, é um caminho. E, para ser adequada e satisfatória, a fundamentação de uma decisão na seara da jurisdição constitucional deve estar atenta aos precedentes, bem como à interpretação evolutiva da Constituição.

Em relação aos precedentes, como antecipado acima, é fundamental extrair a holding ou ratio decidendi do precedente invocado, pois aí é que se determinará qual é a norma extraída do caso julgado, para se saber, assim, a abrangência de sua aplicabilidade a casos futuros. Os casos futuros devem envolver fatos considerados relevantes pelo precedente, para que ele seja aplicável, e isso deve ser feito, evidentemente, revisitando os fatos e os fundamentos do precedente com detalhe.

Além de estar atenta aos precedentes, a Jurisdição Constitucional deve estar atenta à interpretação evolutiva da Constituição, como mencionado acima. Nem os precedentes, nem os princípios ou teorias de interpretação são capazes, sozinhos, de conferir a racionalidade pretendida às decisões judiciais. Há, portanto, um outro fator que deveria ser levado em conta pelos juízes e que talvez funcionasse mais como um freio do que como um estimulante a posturas excessivamente discricionárias: a preferência pelo incrementalismo/interpretação evolutiva, ao invés de se optar por decisões radicais e impactantes.

Na prática do Direito Constitucional norte-americano, a interpretação evolutiva desempenha papel de grande relevo, tanto no campo do devido processo legal como no da criação de novos direitos não previstos expressamente (por exemplo, o direito à privacidade) e no da igualdade perante a lei, notadamente a de cunho racial.

Apenas para exemplificar, em 1896, ao decidir o caso Plessy vs. Ferguson, a Suprema Corte endossou a doutrina do equal but separate — iguais, mas separados —, forma dissimulada de discriminação praticada em diversos Estados. Somente em 1954, ao julgar Brown vs. Board of Education, a corte considerou inconstitucional a segregação de estudantes negros nas escolas públicas. Entre as duas decisões, distantes 60 anos no tempo, a Suprema Corte seguiu uma lenta evolução em sua linha jurisprudencial.

No caso do Supremo Tribunal Federal, não é exatamente o que tem ocorrido em diversos julgamentos. Verifica-se uma discricionariedade exagerada que aparece em julgamentos mal fundamentados, em desconsideração a precedentes e à interpretação evolutiva da Constituição. Ou, quando esses aspectos são considerados, como foi o caso do julgamento da ADI 4.983, muitas vezes o são sem o devido cuidado, alegando-se generalidades, ao invés de demonstrar uma preocupação com esses fatores de sorte a considerá-los seriamente.

* Artigo produzido pelo Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq), formado pelos professores Adriana Rocha de Holanda Coutinho, Flávia Danielle Santiago Lima, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira, José Mário Wanderley Gomes Neto, Luiz Henrique Diniz Araujo, Marcelo Casseb Continentino e Marcelo Labanca Corrêa de Araujo.