ENTREVISTA COM ANA CAMPINA:
"É preciso uma reeducação para os direitos humanos"
Kátia Borges/ Jornal A Tarde/ Bahia
O discurso político e a retórica dos direitos humanos sempre estiveram no centro dos interesses práticos e teóricos da professora e pesquisadora portuguesa Ana Campina, 43. Em passagem pela Bahia no último mês de outubro, ela participou como palestrante da abertura da XIV Semana Acadêmica da Faculdade Social da Bahia (FSBA), que teve como tema A sociedade do século XXI: saberes, poderes e verdades. Graduada em ciências políticas e PhD em direitos humanos e história contemporânea, Campina é especialista em relações internacionais. Membro da Associação Portuguesa de Ciências Políticas e do Centro de Estudos sobre Mulheres da Universidade da Salamanca, ela lançou, no ano passado, o livro (Des)educação e Valores Des(humanos): uma reflexão, uma de suas mais de trinta publicações em diversas áreas relacionadas aos seus temas de estudo. Professora da Universidade Portucalense Infante D. Henrique, Campina aponta o retrocesso nas formas de pensar como a alavanca básica para a violência física e simbólica que toma conta do mundo contemporâneo. “A xenofobia, a homofobia, o racismo, o feminicídio e a LGBTfobia são reflexos da forma de pensar das pessoas”, diz. Nesta entrevista, ela fala sobre a situação da União Europeia após a saída do Reino Unido e as consequências, a longo prazo, do impeachment de Dilma Rousseff.
Na opinião da senhora, no que se sustenta a força do nacionalismo, a exaltação ao nacionalismo que vigora hoje?
Hoje, temos vários movimentos em volta do mundo em que há um retrocesso em termos das conquistas da democracia, que são os valores humanos e fundamentais. Há nacionalismos altamente perigosos, e vivemos esta realidade não só na América como na Europa e na Ásia. As correntes que defendem esse nacionalismo exacerbado estão no cerne da xenofobia, do racismo, dos regimes opressores e da violência contra minorias, as etnias e as migrações – um exemplo é como vivenciamos na Europa a questão dos refugiados. É uma panóplia de situações que são altamente perigosas e todas, sem exceção, têm em sua origem o nacionalismo.
É um tempo especialmente difícil para os refugiados. A Acnur registrou, até o final de 2015, 65,3 milhões de pessoas deslocadas por guerras e conflitos, o maior número da história. Como lidar com essa questão?
A questão dos refugiados não é algo novo no mundo, mas a situação que vivenciamos hoje, especialmente em relação à Europa, é grave, muito grave, sobretudo em relação aos fluxos migratórios. Há questões que é preciso debater. A primeira diz respeito àquilo que não foi usado pela União Europeia – me refiro à Primavera Árabe – como estratégia para poder encontrar métodos de acolhimento. Em lugar disso, o que fizeram? Criaram campos onde não há em absoluto acolhimento, mas um amontoar de pessoas em condições subumanas. Seriam inicialmente locais de passagem, dois, três meses no máximo, mas que deixaram de ser locais de trânsito para se tornarem permanentes. Temos campos na Grécia em que os refugiados estão há dois anos quase. São mulheres, velhos e crianças, famílias inteiras abandonadas. E como é que se lida com isso tudo? Penso que só com a sensibilização para a necessidade de acolher. E não temos só refugiados de guerra provindos da Síria, como a mídia muitas vezes faz crer, mas também refugiados ambientais. O que aconteceu no Haiti irá levar à fuga das pessoas. E essa fuga não pode ser encarada como migração, as pessoas não estão em busca de vida melhor, mas de sobrevivência. É preciso uma articulação que não se restrinja à Europa ou ao Mediterrâneo – que hoje é um cemitério vivo –, mas que envolva outras regiões do planeta e, sobretudo, a Organização das Nações Unidas.
Em sua opinião, a mobilização via redes sociais tem algum peso ou acaba amortizando a pressão que deveria ser feita sobre a ONU, por exemplo?
Sim. Temos um poder enorme, a partir da internet e das redes sociais. Mas esse poder não está sendo rentabilizado. Seja o Facebook, o Twitter ou mesmo o WhatsApp, todas essas redes viraram ferramentas mais eficazes para incentivar o ódio do que para mobilizações positivas. E aqui há um pormenor que é importante, que é a utilização desse poder não só sobre a Nações Unidas, mas sobre cada um dos países. No caso de Portugal, meu país, seria conseguir articular os países-membros para a importância de acolher, porque uma coisa é acolher, outra é integrar. E os países não estão preparados para isso. Falamos sobre os refugiados, mas a questão vai além. Precisamos resolver as guerras, entender o que se passa na Síria, na Turquia… Poucos percebem que vivemos nova guerra fria. Temos armas de comunicação em rede que nunca tivemos e, no entanto, elas não estão sendo usadas para a educação e para a mudança genuína das pessoas, embora a mobilização contra ataques aos direitos humanos sejam muito rápidas. É preciso uma reeducação para os direitos humanos, e ela é responsabilidade de todos.
É inegável que, a partir de 11 de setembro de 2001, tivemos todos os grandes tratados internacionais de direitos humanos praticamente rasgados e que há, por outro lado, um grande avanço do conservadorismo, representado pela candidatura de Donald Trump ao governo dos Estados Unidos?
Você citou duas situações que fazem parte da nossa realidade e das quais nós não podemos fugir. Temos a questão do terrorismo, de um lado, e a questão do retorno e das ameaças do conservadorismo. São políticas mais que conservadoras, eu diria, são políticas retrógradas e que violam os direitos humanos. Não precisamos de mais leis que garantam os direitos humanos, mas que aquelas que já existem sejam regiamente vigiadas pelas Nações Unidas e respeitadas. O que me assusta é ver a facilidade com que Donald Trump tem feito a sua campanha movida basicamente pelo incentivo ao ódio. Ele tem feito discursos para milhões de pessoas incentivando mudanças em quatro ou cinco áreas estratégicas que são verdadeiramente preocupantes, perigos em si, especialmente em relação às migrações. Propor a expulsão de imigrantes é algo que atinge a todos nós, porque todos somos, de um modo ou de outro, temos raízes. Outro ponto é a discriminação entre homens e mulheres, que fere a liberdade individual e de expressão. E há, ainda, a questão do terrorismo, que, de fato, mudou nossa relação com o mundo. Passamos a aceitar tudo em nome da segurança, mesmo ferindo direitos individuais e fundamentais. Quando falamos em Trump, estamos falando em um grande perigo para o mundo. E ainda que ele não seja eleito, ficará o discurso.
Um rastilho de pólvora?
Não há um termo melhor para definir. É um rastilho de pólvora. Porque se Trump pode fazer uma campanha xenófoba, racista, exaltando a desigualdade e a violação, isso significa que temos de repensar o conceito de liberdade de expressão. O incentivo ao ódio e à violência estão na base de uma guerra diária às minorias. Basta acessar o Google para localizar páginas e mais páginas de apoio a Trump e páginas e mais páginas de ódio aos imigrantes e às minorias em geral. E isso acontecer justo quando estamos tendo uma movimentação tão grande de pessoas ao redor do mundo, por conta das guerras e dos desastres naturais. É cruel que se associe essas pessoas tão debilitadas ao terrorismo.
Em sua opinião, houve um enfraquecimento da representatividade da Organização das Nações Unidas?
Sim. Houve. Mas creio que as Nações Unidas podem ainda reforçar seu posicionamento, e, neste momento, está havendo internamente uma tentativa nesse sentido. No final dos anos 90 e início do século 21, a ONU vivenciou um enfraquecimento considerável, sobretudo por não saber lidar com a questão do terrorismo, permitindo a guerra no Iraque, a guerra no Afeganistão, não defendendo os pactos internacionais. Ela não se impôs positivamente, foi apenas um órgão consultivo.
Muitos falam sobre o fim do jornalismo na contemporaneidade. Qual o papel da imprensa em relação ao desconhecimento sobre a situação real nesses países?
Tenho uma opinião muito particular sobre isso. Considero péssimo aceitarmos que o jornalismo esteja morto, porque nunca precisamos tanto do jornalismo e dos bons jornalistas. A questão é que estes bons jornalistas têm que atuar na contramão dos grandes monopólios, da manipulação e dos erros de informação disseminados pelas redes sociais. Esse é o desafio: vencer as ameaças, o controle político e religioso, a submissão às linhas editoriais.
A senhora vem acompanhando a situação política no Brasil?
Sim. Venho acompanhando e preocupa-me a instabilidade e a sensação de que nem os brasileiros parecem entender o que está acontecendo de fato no país. Considero um momento grave. Seria impensável no regime político europeu que uma pessoa que não tivesse sido eleita permanecesse no poder. Outra questão é a corrupção e a influência religiosa sobre a política. A informação que chega à Europa sobre o Brasil, infelizmente, é distorcida, é uma imagem de violência e de corrupção. Mas é preciso vir ao Brasil para tentar entendê-lo minimamente. Não há como comparar, por exemplo, com Portugal, somos um pequeno retângulo à beira-mar.
O que podemos esperar a partir da reconfiguração da União Europeia, provocada pela saída do Reino Unido?
Bom, a União Europeia tem sofrido grandes alterações políticas, econômicas, sociais e cívicas. Somos 28 estados-membros e estamos vivenciando uma convulsão com a saída do Reino Unido. Creio que sentiremos os efeitos dessa saída dentro de três ou quatro anos, pois ela só acontecerá de fato dentro de um ano e meio. O Brexit é uma realidade, mas creio que haverá muitos acordos. O fato é que o Reino Unido sempre teve um peso grande nas decisões políticas e sociais, embora tenha seguido, desde o início, um caminho próprio – nunca adotou o euro, por exemplo. Os efeitos dessa saída que me preocupam mais são em relação aos imigrantes – a redução de empregos, a expulsão, os comentários sobre a construção de um muro que os impeça de entrar. Comemoramos tanto a queda do Muro de Berlim e estamos infelizmente construindo novos muros. Isso me preocupa bem mais que o Brexit.