A COMBALIDA HARMONIA E INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES
O Poder Legislativo, que já vem reclamando a algum tempo da usurpação de suas funções pelo Poder Executivo, via utilização massiva de medidas provisórias, tem também que suportar algumas incursões do Poder Judiciário em sua seara, mediante aquilo que se convencionou chamar de judicialização da política. O Poder Executivo, por sua vez, com sua notória hipertrofia, avança sobre os dois outros poderes. E assim a festejada "harmonia e independência", princípio constitucional consagrado em nossa Constituição e pilar da democracia, vem sofrendo certos arranhões ultimamente.
Deve-se sempre lembrar que foi mirando para o abuso do poder absolutista, em sua concentração excessiva, e suas conseqüências para o exercício da cidadania, que o pensamento Ocidental evoluiu para conceber o sistema tripartite, onde o poder contém e controla o poder e todos – legislativo, executivo e judiciário – são direcionados a caminhar de forma harmônica e independente. A harmonia é tão importante e indissociável entre os Poderes da União quanto a independência, e nenhum desses dois fatores intrínsecos ao exercício do poder estatal pode prescindir do outro. Quando um Poder é exercido sem independência é porque ele está subjugado a outro que passa a concentrar poderes que, evidentemente, violam os princípios democráticos. Um poder sem independência vira uma espécie de autarquia estatal, um mero apêndice de outro poder. De outra forma, o exercício de um poder em desarmonia com os demais poderes do estado leva a uma situação de confronto e de violação às regras básicas da democracia, as quais impõem um regime de concertação permanente para que as atividades estatais não fiquem paralisadas e entrem em colapso. No Brasil os poderes são harmônicos e independentes mas, como toda atividade política, a intemperança muitas vezes acontece.
Sabemos todos que o regime presidencialista brasileiro tem características marcadamente imperialistas, resultado de um viés histórico que remonta aos primórdios da nossa República, tendo por base alguns elementos que podem ser assim alinhados: (1) as intervenções freqüentes do Exército na vida republicana onde tem exercido uma espécie de "poder moderador"; (2) os vícios do sistema eleitoral; (3) o exercício de um presidencialismo monárquico; e (4) o abuso na edição e reedição de medidas provisórias. Acrescente-se a isso as novas atribuições que o Poder Executivo, no mundo todo, passou a deter, dentre as quais podemos relacionar: (1) a necessidade de o Executivo coibir abusos do poder econômico e de criar infra-estrutura para o desenvolvimento; (2) respostas rápidas a questões econômicas, administrativas, comerciais, e financeiras concretas; (3) o exercício simultâneo de controle, direção, coordenação e planejamento da economia; (4) o papel ao mesmo tempo regulador e guardião tanto da economia de mercado quanto da justiça social; e, (5) como conseqüência, a produção de normas e sistemas legais.
Assim, se por um lado o poder Executivo assoberba-se em meio a novas e urgentes exigências sociais, por outro lado existem fatores peculiares à vida política brasileira que nasceram com a própria República, e que agravam ainda mais a hipertrofia do Executivo, com prejuízos, como é inevitável, ao sistema de equilíbrio de poderes e aos direitos fundamentais.
Desta forma, a hipertrofia do Executivo, no Brasil, têm suas raízes fundadas em uma cultura nacional autoritária e oligárquica, com todas as mazelas que produziu e tem produzido no curso da história republicana, fruto, portanto, da má formação e de vícios de origem.
Exemplo de que essa hipertrofia do Executivo está presente no inconsciente coletivo nos foi dado recentemente pela matéria dos jornalistas Simone Iglesias e Felipe Seligman, da Folha de São Paulo, a qual inicia com a seguinte afirmação: "A troca de farpas públicas entre o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e o ministro Tarso Genro (Justiça) foi encerrada ontem por determinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva." Ora, creio não ter havido malícia dos jornalistas ao usar o verbo determinar, atribuindo-o ao presidente Lula. Nem será de causar espanto se o presidente determinara, de fato, o encerramento da "troca de farpas" entre os dois ministros, como afirma a matéria É certo que o presidente Lula não pode determinar nada a um outro presidente de Poder nem tampouco o ministro Gilmar Mendes é ministro do Governo Lula. O que ocorre é que a hipertrofia do Executivo parece estar, de certo modo, absorvida pela nossa cultura, enraizada pela sua prática histórica. O que não precisava era o presidente do STF ter contribuído um pouco mais para isso ao polemizar diretamente com um ministro de Governo (onde está o porta-voz do STF ou a assessoria de imprensa para expedir uma nota oficial?) -, e ainda mais aceitar a intermediação do Chefe do Executivo Federal para o estabelecimento de um novo modus vivendi com o crítico e loquaz ministro Tarso. Como se viu nesta semana que passou, se no quesito "harmonia" os Três Poderes começam a caminhar "de acordo", no item "independência" ainda há muito para se construir.
Artigo publicado em 24/07/2008 por Sergio Tamer com o tema: A combalida harmonia e independência entre os poderes
Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.