O legado
Adriano Moreira*
A passagem do ano, de cada ano, conduz sempre a meditar sobre o legado do anterior, sem perder o conceito articulador da época, um amparo de manutenção da memória, sem a qual é difícil o exercício de prognosticar o que se pretende sempre, que seja um futuro de emendas dos erros e promoção do sonhado desenvolvimento sustentado, o novo nome da paz. A esperança que dominou a época que decorreu desde o fim da chamada Segunda Guerra Mundial, e na qual se inscreve o ano que findou, dificilmente pode ser lida como de êxito para as promessas sintetizadas no que Paulo VI chamou o lembrado "novo nome da paz". Ela começou com a convicção, expressa na Carta da ONU e no seu corolário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, escritos apenas por ocidentais, talvez convencidos de que tinham elaborado a garantia da "esperança concreta" dos utopistas que durante séculos nesse sentido doutrinaram, de que não voltaria a acontecer um novo desastre militar, desta vez global. Designadamente os EUA, que lideraram a intervenção mais brutal do conflito, adquiriram uma liderança mundial, proclamando-se, aparentemente, como herdeiros do pensamento de Thomas Paine, que visionara , no século XIX, como tem sido lembrado, um empire of liberty.
Infelizmente, quando o general Mac Arthur quis usar a bomba atómica contra a China, que em novembro de 1950 ultrapassara o rio Yaliu, e foi demitido por Truman para lhe impedir a desobediência, declarou em defesa das suas intervenções estratégicas, que "não há substitutivo para a vitória". Os factos, que acolheram o legado do ano findo, diferenciando-se das intenções do general, o que parecem demonstrar é que os aliados da Segunda Guerra Mundial não ganharam a guerra, apenas não a perderam. O número de novas guerras que continuaram a realidade vivida depois da chamada paz a primeira dificuldade que coloca aos analistas é a de conseguirem reclassificar os modelos que se multiplicam.
A circunstância abrangente de todas estas violações das leis internacionais vigentes e dos projetos dos pacifistas começa pela instabilidade das organizações que tinham sido definidas e organizadas como pilares de uma nova ordem mundial, sendo que o facto é que a confiança com que foram erguidas vai esmorecendo. Michael Rubin, no começo do ano que agora finda, usou expressivas palavras que intitulam o seu livro que chamou Dancing with the Devil. The Perils of Engaging Rogue Regimes. O facto é o como que pousio em que estão as organizações internacionais, que pareceram importantes para enfrentar a conclusão de Dominique Vidal quando escreve sobre o panorama dos conflitos "nos quatro cantos do mundo".
O primeiro traço grave, para além da prosperidade financeira dos complexos militares-industriais, o ainda mais criticável é que o progresso da ciência e da técnica, o que deveria exasperar, se o sonhassem, os que doutrinaram a substituição dos valores religiosos pelos valores científicos, é que todos os poderes militares procuram a superioridade tecnológica, invocando designadamente a racionalização económica, de que os drones são um símbolo a que o próprio Obama recorreu nos ataques contra o Paquistão, ciberataques "prováveis" contra o Irão, tudo sem ter em conta que esse progresso admite a vitória do fraco contra o forte, abrindo uma difícil questão de avaliar a igualdade, prolongando os conflitos que, no dizer de George Simmel, se transformam em "dialética que permite distinguir a guerra da paz".
A guerra que emerge como negócio, informando Charillon que, "na submissão ao gosto do mercenariado mais dispendioso, os Emirados Árabes Unidos fizeram marcar a crónica em 2011 confiando setores importantes da sua defesa a sociedades privadas, por recursos estimados em 360 milhões de euros, e correu o rumor de projetarem recrutar um exército composto de 80 mil combatentes estrangeiros. Se tal modelo vier a desenvolver-se, o modelo ocidental da guerra, que hoje conta os centrismos, ficaria muito embaraçado". A pirataria marítima reapareceu na cena internacional, justamente quando é necessário apoiar o transporte fluvial, designadamente em vista dos custos. Tornaram-se também crescentemente mais graves as violências contra as mulheres envolvidas pelos conflitos, assim como o abuso, sofrimento, e morte de crianças. Conflitos longos como o de Caxemira continuam a esquecer o respeito devido pela doutrinação e sacrifício final de Gandhi. A estratégia russa, anunciada com aparato militar, informou que as fronteiras de interesses da Rússia são mais vastas do que as geográficas, tornam gravíssima a perigosidade da questão da Ucrânia, enquanto o Iraque vive em violência desde a mal decidida intervenção ocidental, a Síria parece ter perdido todo o sentido de unidade interna, com aparente acordo internacional para ignorar a destruição do património da humanidade, enquanto na África se avalia que do Cabo ao Cairo talvez estejam em combate trezentas mil crianças. A bibliografia publicada sobre esta situação foi laboriosamente organizada por Pierre Grosset (L"État du Monde, 2015), e o título da indagação é inquietante: "Retour de la guerre, déclin de la gouvernance mondiale?". Os temas são, entre outros, "Perfil sentimental", "Regresso à história e ao pensamento estratégico", "Descrédito das Organizações Internacionais e da Ordem Jurídica".
Tudo avaliado sob o ponto de vista que inspirou as organizações da imaginada paz não ganha da Segunda Guerra Mundial, parece convergir numa situação angustiante, que é a das migrações, efeito colateral deste legado, que torna frágil o resultado das intervenções humanitárias, umas simplesmente laicas, outras apoiadas em doutrinação religiosa. Visto o globalismo, que recebeu de companhia o terrorismo, e de que sabemos a existência e o nome, mas não a estrutura dos centros de decisão, nem todos conhecidos, tudo faz olhar o sofrimento de multidões inocentes, a morte de milhões, como um crime contra a humanidade, com características de genocídio, de que é responsável a estrutura interventora da governança mundial. A próxima reunião, anunciada, do Conselho de Segurança, vai mostrar se o veto ainda responde a um anunciado benefício para a humanidade ou apenas aos interesses de cada titular.
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· Membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia Pernambucana de Letras, da Academia Internacional de Direito e Economia de São Paulo, da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, da Academia de Marinha, da Academia de Ciências Morales y Políticas de Madrid e da Academia Portuguesa da História.
· Desempenha ou destacou-se nas funções de Professor – geralmente na área de Relações Internacionais – no Instituto Superior Naval de Guerra, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, na Universidade Aberta, na Universidade Internacional, na Universidade Católica Portuguesa e é Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa.
É ainda Professor Honorário da Universidade de Santa Maria.
· Doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro, Universidade Aberta, Universidade da Beira Interior, Universidade de Manaus, Universidade de Brasília, Universidade de São Paulo, Universidade do Rio de Janeiro, Universidade da Bahía e Universidade Federal de Pernambuco.