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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

A OMC, O LIBERALISMO E O TRUMPISMO – por Sergio Tamer

 

 

 

Sergio Tamer, professor e advogado, é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP

 

          A Organização Mundial do Comércio, criada em 1995 com o objetivo de supervisionar e liberalizar o comércio internacional, está recebendo de diversos países, como a China e o Brasil, reclamações contra os tarifaços do governo americano, medidas que estariam indo em direção contrária aos princípios dessa organização.

          A OMC preconiza que todo benefício concedido a um país deve ser concedido aos demais; que os produtos importados devem ser tratados da mesma forma que os produtos nacionais e que gradualmente deve haver a redução de barreiras comerciais. Dispõe, ainda, a Organização, que deve existir previsibilidade no comércio, mediante uma concorrência leal entre os concorrentes. Transparência nas transações econômicas e incentivo aos países em desenvolvimento também fazem parte do seu ideário, mas o governo Trump parece ter se baseado em um outro de seus princípios, o chamado “princípio das válvulas de escape”, pelo qual a OMC admite que em determinadas circunstâncias seja possível restringir o comércio.

          Para uma das correntes do liberalismo, conhecida por liberalismo-social, o mercado não deve ser sacralizado, pois é um meio, não um fim. É o meio mais eficaz para o homem progredir e realizar-se, a nível económico, e chegar a uma verdadeira valorização do trabalho, à justiça social. No âmbito interno das nações democráticas, a intervenção do Estado é, portanto, defendida sempre que for necessária para atingir tais objetivos. Daí dizer-se que o liberalismo social tenta conciliar os ideais de liberdade e justiça, de liberdade para todos e para satisfazer as necessidades da comunidade. Isso porque não pode haver liberdade na miséria, na falta de escolha, na ausência de igualdade de oportunidades. O Estado tem que ter limites em grande medida, mas não é um “mal necessário”, como os neoliberais o entendem. Há situações em que o Estado é essencial para corrigir a desigualdade de poder entre os mais fortes e os mais fracos. Se o Estado deve ser controlado e a concorrência entre este e as empresas privadas deve ser evitada, ao mesmo tempo deve ser fortalecido para que cumpra sua missão de garantidor das liberdades e de provedor de serviços indispensáveis, como saúde, segurança e educação. Em suma, o liberalismo social não está a serviço do mercado, porém vê nele um bom instrumento para seus objetivos de liberdade e justiça.

          Em 1996, José Guilherme Merquior escreveu: “no Brasil temos, ao mesmo tempo, um estado de mais e um estado de menos. De mais na economia, onde o Estado é teimoso, desperdiça, sobrecarrega e obstrui. Menos na esfera social onde tantas carências em saúde, educação e moradia são sangrentas e inaceitáveis. Desta forma, o liberalismo com preocupações sociais, para Merquior, é a única doutrina política atual que leva totalmente a sério o ideal democrático no sentido estrito da palavra governo do povo. E que a verdadeira democracia liberal tem duas paixões, as paixões de Rousseau: liberdade e igualdade. Por sua vez Sartori também defende uma relação entre liberdade e igualdade para os conceitos de liberalismo e democracia. No entanto, para ele é possível dizer que o liberalismo é “antes de tudo uma técnica de controle e limitação do poder do Estado, enquanto a democracia é a inserção do poder popular no Estado”.

          Para se entender melhor as posições do Trumpismo que vêm sacudindo e assombrando o comércio internacional, nada melhor que buscar uma explicação na metáfora criada pelo cientista político americano Robert Dahl, para quem a democracia e o capitalismo de mercado “são como duas pessoas unidas em um casamento tempestuoso dividido pelo conflito, mas que ainda perdura porque nenhuma das partes deseja se separar da outra”. Contudo, também é verdade que em nenhum país democrático existe uma economia de mercado sem uma ampla regulamentação e intervenção estatal destinada a reduzir os seus efeitos nocivos. É por isso que o consagrado cientista político afirma, com ironia, que “se a democracia e o mercado são inseparáveis, então deixe-os andar lado a lado…”

           Desta forma, manter e fortalecer a justiça social, sem perder a competitividade no contexto dessa conturbada globalização da era Trump, parece ser, cada vez mais, o grande desafio do liberalismo social e, por isso mesmo, a principal questão dos debates políticos europeus na atualidade. E o Brasil, para onde vai?