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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Direitos sociais como direitos subjetivos: a nova decisão da corte alemã , por Ingo Sarlet

 Direitos sociais como direitos subjetivos: a nova decisão da corte alemã

 

 

Por Ingo Wolfgang Sarlet

 

Por ocasião de recentíssimo julgamento, no último dia 11 de maio, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (TCF) decidiu que o reconhecimento de um direito subjetivo originário a prestações na área da saúde, portanto, diretamente deduzido da Constituição, reveste-se de caráter excepcional, incidindo apenas quando se trata de uma situação de grave risco para a vida humana e quando inexistir no catálogo de procedimentos e tratamentos do seguro público de saúde uma alternativa compatível. Nesse caso, quando a situação for similar a de um efetivo estado de necessidade, poderá ser viável exigir um meio alternativo de tratamento que tenha alguma possibilidade de assegurar uma melhora do quadro clínico do paciente.

No caso concreto, a autora da reclamação constitucional é portadora de uma doença autoimune, acompanhada de uma série de sequelas, inclusive o inchaço da língua, gerando um risco de sufocamento, razão pela qual carrega um kit de primeiros socorros compatível com a situação. Além disso, a reclamante requereu a cobertura das despesas com uma terapia intravenosa off-label não admitida pelo seguro público de saúde. Embora exitosa na primeira e segunda instância da Justiça Social (Sozialgerichtsbarkeit), teve o pleito negado pelo Superior Tribunal Social (Bundessozialgericht), recorrendo então ao TCF.

Mediante referência a importante (mas muito polêmico) precedente de 2005 (BverfGE 115, 25), no qual foi reconhecido uma posição subjetiva originária a tratamento não previsto pelo sistema de saúde, o TCF entendeu que a situação ora julgada não é similar, pois apenas no caso de um estado de necessidade individual caracterizado por grave, real e iminente risco de vida. Além disso, há que destacar que — ainda de acordo com o TCF — apenas uma situação dessa natureza permite que se contorne e limite a ampla liberdade de conformação atribuída ao legislador ordinário na definição das prestações sociais.

Numa primeira e rápida mirada, a decisão do TCF, sumariamente apresentada, não parece estar tão distante da prática jurisprudencial brasileira, em especial do STF, pois este, em reiterados julgados (rememore-se aqui o paradigma da STA 175, julgada em março de 2010), afirma que o reconhecimento de direitos subjetivos originários a prestações assume caráter excepcional, justificando-se apenas quando verificado risco de vida ou violação do assim chamado mínimo existencial, vedando apenas medicamentos de caráter experimental. Além disso, o STF — nos casos referidos — afasta a objeção da reserva do possível nas suas diversas manifestações, valendo-se do critério do mínimo existencial e da proibição de proteção insuficiente para efeitos da ponderação nos casos concretos.

Mas, a despeito de algumas semelhanças (afirmação do caráter excepcional, risco de vida e violação do mínimo existencial), as diferenças são abissais, seja quanto à prática decisória dos tribunais brasileiros, em especial do STJ e do STF, seja no que diz com a realidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e do efetivo e igualitário acesso ao mesmo e da integralidade e universalidade da cobertura e do acesso.

Embora não seja o caso (e nem seja viável) aprofundar o tema, calha — dada sua atualidade e relevância (ainda mais que o STF está para se pronunciar novamente sobre a matéria) — tecer algumas considerações, inclusive em sede comparativa, limitando-nos, para tanto, ao caso dos assim chamados direitos originários a prestações, que, diferentemente dos direitos derivados a prestações (onde está em causa o direito subjetivo de igual acesso às prestações já disponibilizadas pelas políticas públicas), são definidos como posições subjetivas, portanto exigíveis pela via judiciária, a prestações diretamente deduzidas da Constituição, ainda que não previstas em lei ou em política pública determinada.

No caso dos direitos derivados a prestações, o Poder Judiciário, ao fim e ao cabo, está apenas a determinar o cumprimento de política pública já existente, ou seja, assegurando que os bens e serviços em saúde sejam efetivamente disponibilizados a todos, em homenagem ao dever de assegurar um acesso igualitário e universal. Que também esses casos não se revelam imunes a problemas fáticos e jurídicos, resulta evidente, pois também aqui se verifica o impacto da escassez de recursos e de limitações de natureza jurídica (responsabilidade fiscal, processo licitatório etc.).

O que chama a atenção, contudo, é que diferentemente da Alemanha, onde o TCF — nas decisões (atual e pretérita) referidas — impõe exegese restritiva às exceções, no Brasil o caminho tem sido o oposto, pois as “exceções” se multiplicam, sem que, para além da distinção entre medicamentos novos e experimentais, outros critérios sejam utilizados além do mínimo existencial e da proibição de proteção insuficiente, eventualmente do risco de vida.

Muito embora a exceção ainda não se tenha transformado em regra, o número de casos tidos como excepcionais e o impacto das respectivas decisões sobre o sistema de saúde e orçamento público, seguem sendo motivo de alerta e reflexão, em especial quanto aos critérios invocados para justificar a sua imposição ao poder público e mesmo aos planos de saúde privados, quando não pactuados e se tratando de medicamentos ou outras prestações que sequer constam do catálogo do SUS.

Partindo-se da premissa (infelizmente nem sempre presente nos casos submetidos ao Poder Judiciário e nem sempre por esse bem avaliados) de que, nas situações em que se verifica iminente e efetivo risco de vida (no âmbito do que se tem por um mínimo existencial fisiológico ou mínimo vital), um direito subjetivo originário a prestações há de ser priorizado, no que tanto o TCF da Alemanha quanto o STF guardam sintonia, os demais casos tidos como excepcionais pelo Poder Judiciário no Brasil nem sempre o são, muito embora assim o sejam afirmados.

Com efeito, mediante recurso ao argumento do mínimo existencial, no sentido de um conjunto de prestações materiais indispensável para assegurar uma vida com dignidade, os mais diversos pleitos tem obtido guarida, por conta de uma interpretação não raras vezes demasiado generosa do conteúdo do assim chamado mínimo existencial, que, em especial no caso do direito à saúde, parece não encontrar limites.

Além disso, também a premissa (assumida e afirmada pelo TCF e em geral pelos demais tribunais na Europa) de que em primeira linha é o legislador democraticamente legitimado quem deve concretizar o conceito indeterminado do mínimo existencial, cabendo ao Poder Judiciário um papel residual e excepcional de correção mediante uma tutela de evidência (quando da manifesta e comprovada violação dos parâmetros mínimos exigidos pela dignidade humana), está muito distante de ser assimilada e manejada pelos órgãos judiciários brasileiros, com destaque para o STF.

Não se questiona (muito antes pelo contrário, se reafirma!) que também os direitos sociais na sua dimensão positiva, como direitos a prestações, devem operar como direitos subjetivos, vinculando diretamente os poderes estatais, aptos a serem, na condição de posições jurídicas atribuídas por normas de direitos fundamentais, imediatamente aplicados. Outra coisa é, com base em uma compreensão por vezes hipertrofiada e carente de qualquer justificativa convincente calcada no caso concreto e suas peculiaridades, tratar o direito à saúde praticamente como se fosse um direito absoluto, imune a limites e restrições.

Poder-se-á dizer, de outra parte, que tal linha de entendimento, que interpreta extensivamente a noção de dignidade da pessoa humana acaba por ser mais protetiva da pessoa humana, mas isso carece de balanceamento no contexto mais amplo do sistema de saúde, em particular da sua real capacidade de atender a todos os que dele efetivamente necessitam.

Diferentemente da situação da Alemanha, onde a funcionalidade do sistema de saúde é elevada, e a cobertura, eficaz e distribuída de modo equânime, num país em que sequer os bens e serviços de saúde incorporados às políticas públicas são acessados em condições de igualdade, o reconhecimento de direitos originários a prestações (que, em caráter de exceção, há de ser assegurado, até mesmo pelo fato de que situações manifestamente desiguais reclamam tratamento distinto) deve ser revisto — mas não afastado! — e melhor equacionado. O que se espera é que o STF não perca o bonde da história para fazê-lo e com isso possa contribuir para mais justiça no sistema de saúde.

Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador no TJ-RS, doutor e pós-doutor em Direito.