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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Decisões teratológicas são conflitantes com o princípio da razoabilidade, opina Adilson Dallari

 Decisões teratológicas são conflitantes com o princípio da razoabilidade

 

 

Por Adilson Abreu Dallari

 

Direito é limitação. Todo direito é limitado. Direto sem limite não é direito: é arbítrio. Quando a autoridade ultrapassa o limite de sua competência, temos o abuso de poder. Quando isso é feito de maneira dissimulada, temos o desvio de poder, que é uma ilicitude qualificada pela imoralidade.

No Brasil, nos termos do artigo 89 da Constituição Imperial, de 1824, até mesmo o Poder Moderador tinha condições e limites. Na Constituição Federal em vigor, não existe poder absoluto ou ilimitado. Entre as instituições que ganharam enorme poder no texto constitucional vigente, destaca-se o Ministério Público, que tem nível constitucional (assim como a advocacia) e cujas relevantíssimas finalidades estão expressas no artigo 127 da Constituição Federal, mas desse texto nada consta a indicar que ele possa ter havido ou como um Poder acima de todos os Poderes.

Ou seja, o Ministério Público é uma instituição legal, no sentido de que está inserido na ordem jurídica nacional, sendo dotada de poderes e responsabilidades. Como toda e qualquer entidade ou instituição pública, tem um caráter eminentemente instrumental, destinando-se, no campo de suas atribuições, a atuar no sentido da realização do interesse público.

Os interesses próprios e específicos da instituição Ministério Público e de seus integrantes são interesses secundários em relação ao interesse público, entendido como o interesse comum de toda a coletividade. Como ocorre com toda e qualquer autoridade pública, o fim de interesse público a ser atingido é que impulsiona sua atuação e, por isso, toda regra de competência estabelece poderes/deveres, mas, ao mesmo tempo, fixa condições, limites e responsabilidades, por desvio ou abuso de poder, que podem ocorrer especialmente quando no exercício de competência discricionária.

Porém, desde as magistrais lições de Caio Tácito e Seabra Fagundes, já se tem plena noção de que discricionariedade não é um cheque em branco. Está totalmente superado, por ser inteiramente equivocado o entendimento segundo o qual a discricionariedade que a lei confere ao agente legitima qualquer conduta e, pior que isso, impede o exame pelo Poder Judiciário.

A discricionariedade pode ser melhor explicitada, mediante uma comparação entre competência vinculada e competência discricionária. Quando a lei confere ao agente público competência vinculada, isso significa que a lei já escolheu previamente qual a única e melhor conduta para a plena satisfação do interesse público. Quando a lei confere ao agente público competência discricionária, isso significa que a lei atribuiu ao agente o dever-poder de escolher a melhor conduta, dentre as condutas legalmente possíveis, para a plena satisfação do interesse público.

Resulta daí uma enorme diferença entre a competência em tese e o exercício dessa competência diante do caso concreto. Em tese, é possível afirmar que a lei estaria validando previamente qualquer das condutas possíveis, mas em concreto, ou seja, diante do caso concreto, sempre haverá uma só conduta mais adequada à plena satisfação do interesse público. Muitas vezes, porém, essa melhor conduta não emerge claramente, de maneira indiscutível, sendo suficiente, para validar a decisão tomada, que a opção da autoridade seja havida como razoável.

Razoabilidade não é nem uma palavra vazia nem uma palavra mágica. A razoabilidade pode ser sindicada, nos casos concretos, em função dos motivos invocados pela autoridade e dos resultados alcançados. Em face de sua utilidade prática, o Direito moderno já consagrou o princípio da razoabilidade. A jurisprudência, inclusive e especialmente nos tribunais superiores, também já assimilou e aplica o princípio da razoabilidade, muito especialmente no controle judicial de atos administrativos praticados com arbitrariedade ou desvio de poder. Merece destaque decisão do Superior Tribunal de Justiça (REsp 21.923-5 MG) na qual o ministro relator, Humberto Gomes de Barros, afirma estar certo de que "no estágio atual do Direito Administrativo, o Poder Judiciário não se poderia furtar à declaração de nulidade de absurdos evidentes".

Absurdo evidente é aquilo que aparece, de pronto, como despropositado, desmedido, desproporcional, desarrazoado, inverossímil. Com mais algum apuro, pode-se chegar, pelo mesmo caminho, à percepção do desvio de poder, que outra coisa não é senão uma arbitrariedade dissimulada. O mais importante, porém, é evidenciar a postura judicial no sentido de abandonar uma apreciação meramente formal ("burocrática", no pior sentido) para investigar as razões pelas quais a decisão questionada tenha sido tomada e a pertinência lógica entre a ação e o motivo invocado, valendo-se, para isso, da apreciação da razoabilidade.

Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal tem-se valido do princípio da razoabilidade desde longa data e com bastante frequência. Não é o caso de se transcrever tudo, mas, pelo menos, cabe referir alguns acórdãos cujos respectivos ministros relatores se fundamentaram precipuamente na razoabilidade: ministro Marco Aurélio, HC 77.003-4-PE, RE 211.043-4-SP, RE 148.095-5-MS, RE 226.461-9-CE, RE 192.568-0-PI e Agr. Reg. em RE 205.535-2-RS; minsitro Moreira Alves, Repr. 1077-RJ (RTJ 112/34); ministro Celso de Mello, ADI 1.158-8-AM; e ministro Sepúlveda Pertence, ADI 855-2-PR e HC 76.060-4-SC.

Aliás, a razoabilidade já estava expressamente mencionada na Súmula 400, no sentido de que "decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário". Implicitamente, o recurso seria cabível quando a decisão fosse desarrazoada, arbitrária, gritantemente inconstitucional ou totalmente despropositada. Ou, em uma só palavra: teratológica. Apenas para conferir, fizemos uma rápida pesquisa na jurisprudência do STF e encontramos, de imediato, 94 acórdãos verberando decisões teratológicas. Ou seja, decisões teratológicas existem, mas não são toleradas pelo STF.

Todas as considerações acima foram feitas como pano de fundo para comentar a recente decisão do STF que (pelo menos até agora, no momento em que este texto está sendo escrito) validou, inquestionadamente, sem o mais ligeiro exame, a decisão do procurador-geral da República que concedeu indulgência plena a um dos maiores corruptos de que se tem notícia e que praticou o mais formidável assalto aos cofres públicos. Paira no ar uma fumaça de corporativismo. De qualquer maneira, o fato, em si mesmo, é chocante, aparentemente absurdo, desproporcional, e a decisão se apresenta como teratológica.

É preciso deixar bem claro que não se está questionando a colaboração premiada em tese. Esse instrumento de investigação de crimes é perfeitamente compatível com o sistema jurídico, é realmente indispensável nos casos de crimes econômicos (de difícil ou impossível apuração) e tem se revelado, na prática, como extremamente útil. Isso tudo não significa que ela seja intangível e insindicável. Uma coisa é a delação premiada; outra coisa é o seu desvirtuamento.

O questionamento aqui levantado se refere ao caso dos irmãos Batista, cujo “processo” foi inquestionavelmente esdrúxulo, misturando investigações misteriosas com um estardalhaço espetaculoso na imprensa (obviamente orquestrado), levando ao linchamento público da classe política como um todo, com destaque para alguns inimigos preferencias. A palavra “processo” foi entre aspas para destacar que o sentido literal de processo é “andar para frente”, mas, nesse caso o andamento foi errático ou invertido, pois a perícia da prova principal foi deixada deliberadamente para o final, acabando por ser, por isso mesmo, de escassa credibilidade.

A Lei 12.850, de 2/8/2013, que dispõe sobre as organizações criminosas, cuida da colaboração premiada nos artigos 4º a 7º, com bastante detalhamento, seguindo a regra geral de estabelecer poderes/deveres, com condicionamentos, limitações e responsabilidades. Colaboração premiada não é um cheque em branco.

Logo no caput do artigo 4º está dito que benefícios são condicionados a resultados: “Desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada”.

No parágrafo 4º desse mesmo artigo, cuida-se do Ministério Público: “Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador: I – não for o líder da organização criminosa; II – for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo”. Não há sombra de dúvida, portanto, de que a medida excepcional é condicionada. Além disso, veja-se o parágrafo 8º: “O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto”.

Por último, nesta brevíssima apreciação, cabe destacar o disposto no parágrafo 11: “A sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia”. Está perfeitamente claro que a homologação do acordo não é intangível, pois a validade de tudo vai depender do resultado final. Pode-se discutir, é claro, a distinção entre eficácia, eficiência e efetividade, mas é totalmente inquestionável que tanto o acordo, quanto sua homologação, são suscetíveis de revisão.

Essa revisão não se limita à mera regularidade formal; não é apenas um ritual. Deve ser, sim, a aferição da compatibilidade com a ordem jurídica e muito especialmente com seus princípios fundamentais. Dada a relevância da questão em exame, que gerou uma gravíssima crise política, podendo descambar para um colapso institucional, seja permitida uma longa, mas indispensável transcrição, sobre o princípio da juridicidade:

“A idéia de juridicidade administrativa, elaborada a partir da interpretação dos princípios e regras constitucionais, passa, destarte, a englobar o campo da legalidade administrativa, como um de seus princípios internos, mas não mais altaneiro e soberano como outrora. Isso significa que a atividade administrativa continua a realizar-se, via de regra, (i) segundo a lei, quando esta for constitucional (atividade secundum legem), (ii) mas pode encontrar fundamento direto na Constituição, independente ou para além da lei (atividade praeter legem), ou, eventualmente, (iii) legitimar-se perante o direito, ainda que contra a lei, porém com fulcro numa ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais (atividade contra legem, mas com fundamento numa otimizada aplicação da Constituição.

Toda a sistematização dos poderes e deveres da Administração Pública passa a ser traçada a partir dos lineamentos constitucionais pertinentes, com especial ênfase no sistema de direitos fundamentais e nas normas estruturantes do regime democrático, à vista de sua posição axiológica central e estruturante do Estado Democrático de Direito. A filtragem constitucional do direito administrativo dar-se-á, assim, pela superação do dogma da onipotência da lei administrativa e sua substituição por referências diretas a princípios expressa ou implicitamente consagrados no ordenamento constitucional.”

GUSTAVO BINENBOJM, “O sentido da vinculação administrativa à juridicidade no direito brasileiro”, in Direito Administrativo e seus novos paradigmas, Alexandre Santos de Aragão e Floriano de Azevedo Marques Neto, Coordenadores, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2008, p. 160.

Em resumo: a República é incompatível com poderes absolutos e decisões inquestionáveis. Não há agente público soberano, imune a qualquer controle e dotado de poder incontrastável para interpretar a lei ao seu talante. Decisões teratológicas são frontalmente conflitantes com o princípio da razoabilidade. O interesse público consagrado pelo sistema jurídico é aquele pertencente ao conjunto da sociedade; não se confunde com interesses corporativos ou pessoais. O controle dos atos praticados pelas mais altas autoridades, de diferentes poderes, está condicionado à observância do princípio fundamental da harmonia e independência. Deve ser havido como teratológica, qualquer decisão precipitada, tomada sem o devido cuidado, sem medir as consequências no mundo fático, que leve à desarmonia, à invasão de competências e ao fomento do conflito e da desordem jurídica.

Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo da PUC-SP, membro da Associação Paulista de Direito Administrativo.

 

Revista Consultor Jurídico, 29 de junho de 2017, 8h00