O DIREITO DE IR E VIR E A VIOLÊNCIA DE RUA NO BRASIL
Por Sergio Tamer*
“ Não é possível reduzir a desordenada atividade dos homens a uma ordem geométrica, sem irregularidade e sem confusão. Assim como as constantes e simplicíssimas leis da natureza não impedem que os planetas se perturbem em seus movimentos, assim também, nas atrações infinitas e muito contrárias do prazer e da dor, as leis humanas não podem impedir as perturbações e a desordem. Todavia, essa é a quimera dos homens limitados, quando têm na mão o comando. Proibir grande quantidade de ações diferentes não é prevenir delitos que delas possam nascer, mas criar novos.” – Cesare Beccaria.
Sumário: Violência. Brasil. Desigualdade social. O contexto social despadronizado. Valores morais. Política criminal e política social.
Abstract: Violence. Brazil. Social inequality. The unstandardized social context. Moral values. Criminal Policy and social policy.
Conforme o Atlas da Violência 2016, em estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FPSP), o Brasil atingiu a marca recorde de 59.627 mil homicídios em 2014, uma alta de 21,9% em comparação aos 48.909 óbitos registrados em 2003.
Conforme o Atlas da Violência, 2016
A média de 29,1 para cada grupo de 100 mil habitantes também é a maior já registrada na história do país, e representa uma alta de 10% em comparação à média de 26,5 registrada em 2004.
O Nordeste foi a região com a maior escalada de violência na série histórica, que vai de 2004 a 2014. Os seis estados apresentaram crescimento superior a 100% na taxa de homicídios da região. O Rio Grande do Norte apresentou a maior escalada na taxa de homicídios, ou seja, 308%: em 2004, o estado tinha uma taxa de 11,3 mortes para cada 100 mil habitantes; em 2014, o índice saltou para incríveis 46,2 óbitos para um grupo de 100 mil pessoas.
Os demais estados com maior crescimento na violência são: (1) Maranhão, com crescimento de 209,4%; (2) Ceará (166,5%); Bahia (132,6%); Paraíba (114,4%); e Sergipe (107,7%). O estado de Pernambuco é a exceção do Nordeste, com redução de 27,3% na taxa de homicídios
Quatro dos sete estados que compõem as regiões Sul e Sudeste apresentaram diminuição nos índices de violência. Em São Paulo houve o maior percentual na série histórica: 52,4%. Foram 13,4 assassinatos para cada grupo de 100 mil pessoas em 2014, em comparação aos 28,2 registrados em 2004. No Rio, houve redução de 33,3% de mortes por homicídio, de 48,1 para 32,1. No Espírito Santo, houve queda de 13,8%, e de 4,3% no Paraná.
No mundo, os homicídios representam cerca de 10% de todas as mortes no mundo, e, em números absolutos, o Brasil lidera a lista desse tipo de crime.
Esses dados põem em relevo o fato de que a população brasileira não desfruta em sua plenitude de um dos direitos humanos básicos, elencado no Tratado de Direitos Civis e Políticos: o direito de ir e vir com segurança.
1. MUNICÍPIO, VALORES MORAIS E CRIMINOLOGIA
Forçoso, no entanto, é reconhecer, que não sendo a polícia, entre nós, dirigida pelos municípios, os quais não ficaram com nenhuma responsabilidade específica pela segurança pública, uma ação semelhante ao programa “Tolerância Zero”, implantado em Nova Iorque nos anos 80 será, de fato, prejudicada.
O envolvimento do poder público municipal é imprescindível para o êxito de uma campanha dessa natureza. Nas cidades com mais de 1 milhão de habitantes, a polícia deveria passar para o controle dos municípios. A Constituição, todavia, faculta, aos municípios, somente a formação de guardas municipais, cuja finalidade é a proteção de bens, serviços e instalações da comuna.
Mas, contrastando com o que se sucede nas megacidades, mais precisamente em comunidades onde não haja fosso social entre as diversas famílias, a violência urbana tende a ser menor1. Refletindo sobre a questão, a Doutrina Social da Igreja2 faz as seguintes considerações:
“A sociedade que exalta, como valores supremos, o prazer e o dinheiro; a sociedade que aplaude o sucesso e a riqueza obtidos por quaisquer meios (honestos ou desonestos); a sociedade que despreza o homem honesto como sendo fraco e covarde, e exalta o astuto que prevalece sobre os demais … destrói os valores morais, que são a única força capaz de conter os impulsos instintivos da violência e do mal existentes no coração do homem … dá ocasião a que os jovens que não tenhm recebido formação moral e se sintam marginalizados, se vejam tentados a recorrer à violência para ganhar com facilidade e rapidez muito dinheiro. “
O combate às causas sociais da violência passa, com efeito, não apenas pelo revigoramento dos valores morais, mas, sobretudo, pelo correto funcionamento das instituições civis e governamentais, debelando-se o nepotismo, as sinecuras, o parasitismo funcional e não deixando, igualmente sem punição, a dilapidação do dinheiro público.
Não se pode perder de vista, sob outro enfoque, que o propósito do sistema penal não é a vingança, a defesa social ou a reabilitação, como deseja a criminologia, mas sim a justiça social.
A criminologia encara o crime como uma entidade de caráter socioeconômico ou psicopsiquiátrico ou como uma combinação de ambos. LÓPEZ-REY3 vê no crime, porém, um conceito sociopolítico e só de modo secundário o tem como um acontecimento causal. Isso não quer dizer – acrescentou – que o problema do transgressor deva ser esquecido, mas sim que é mais necessário dar uma atenção maior ao crime como um conceito sociopolítico mais amparado em fatos, conjeturas e impugnações do que qualquer teoria sobre o crime.
2. A DESPADRONIZAÇÃO DO CONTEXTO SOCIAL
Se a relação pobreza versus marginalidade caiu por terra no exemplo aqui estudado, é preciso, contudo, não se iludir: a ação policial, em Nova Iorque foi acompanhada de sólida campanha sócio – educativa, que incluiu, inclusive, campeonatos noturnos de basquete entre os desocupados da noite, além de outras bem-sucedidas medidas educacionais e assistenciais. Os grotões foram assistidos e a desigualdade social aplacada.
Desigualdade social, acrescente-se, que responde – em parte – pela elevada taxa de criminalidade nos grandes centros urbanos e que no Brasil aprofunda-se sobremaneira. Em 2013, conforme dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios – PNAD 4, os 10% mais ricos ficaram com 41,9% em 2012 da renda total do país, enquanto os 40% mais pobres, com apenas 13,3%. Ocorreu, porém, um pequeno decréscimo na desigualdade: se em 2002 os 10% com os maiores rendimentos ganhavam 16,8 vezes mais do que os 40% com as menores rendas, a proporção caiu para 12,6 em 2012.
A despeito desse quadro, a utilização de programas de computador para medir o perfil da criminalidade, por área de atuação, além de outras tecnologias adequadas e técnicas recorrentes, denota que também no setor da segurança pública deve prevalecer o conceito da despadronização do contexto social5, forte indicador de que o crime não deve sofrer uma repressão massificada e uniforme, mas sim, específica e diversificada, de acordo com a sua tipologia e área de ocorrência.
O combate à criminalidade, desta forma, e em nosso entendimento, deve ser acompanhado de ações paralelas que tenham como foco a questão sociopolítica do crime, onde se situa a desigualdade social, bem como a despadronização verificada nas grandes sociedades. Nova Iorque, por exemplo, possui uma população com importantes segmentos de negros, católicos, latinos, judeus, homossexuais – a refletir e aprofundar as divisões emocionais, étnicas, religiosas, vocacionais e etárias -, fato que bem define, como fenômeno atual, o surgimento de um novo sistema cuja variedade social e cultural é extraordinária e sem precedentes na história.
Uma transformação radical do aparelho estatal de segurança – PMs inclusas – é necessária para que a sua função sociopolítica seja adequada à transformação sociopolítica dos tempos atuais e futuros. Não é possível obter-se êxito semelhante ao “Tolerância Zero” de Nova Iorque sem uma reestruturação na política de segurança pública e na coordenação de suas ações.
3. A POLÍTICA DE SEGURANÇA:
POLÍTICA CRIMINAL E POLÍTICA SOCIAL
O elementar, nesse caso, precisa ser visto: a polícia faz parte de um sistema e como tal é apenas um dos seus componentes. Isso significa que a desejada segurança pública só será conquistada se conseguirmos implementar políticas públicas que possibilitem o funcionamento de todo um sistema comunitário.
Lembremos que numa época remota em que não se falava em direito à educação, saúde ou lazer, por exemplo, como obrigação inerente ao Estado, a segurança pública já justificava a própria existência deste, constituindo-se em sua finalidade quase única. Hoje, pela nossa Constituição, a segurança continua sendo um direito social básico, mas já não é a única atribuição do Estado embora continue a ser uma das suas atividades mais importantes.
Surge, então, aqui, duas questões pontuais na área de segurança pública: 1. Como garantir esse direito social básico à população em face da escalada da criminalidade? 2. Deve-se, para isso, simplesmente, aumentar o efetivo policial?
Ora, a questão da criminalidade passa, necessariamente, pela compreensão de três planos distintos de políticas públicas: 1. Ações governamentais na área social; 2. Atuação do aparato policial e da justiça; e 3. Atuação do sistema prisional.
Vamos observar, assim, que nesse primeiro plano, onde se acham as ações do governo, tem sido elas, por um lado, insuficientes, e por outro, inadequadas quando não ausentes – especialmente as que se referem às políticas voltadas para a educação, saúde, geração de empregos, distribuição de renda e infraestrutura urbana e rural, enfim, tudo o que se pode chamar de um ‘mínimo de dignidade’. Essas políticas também resultam naquilo que o jornalista Gilberto Dimenstein chama de “capital social”, ou seja, a riqueza formada pela rede de relacionamentos pessoais e que bem explicam por que comunidades pobres, mas com relações estáveis, possuem baixas taxas de violência. O município é peça fundamental nesse processo e não poderá haver segurança pública eficiente sem a participação dos organismos municipais.
De igual modo, o sistema penal deve aplicar penas mais justas, desburocratizando o processo e proporcionando à população desassistida acesso mais rápido e menos oneroso à Justiça. A plena implantação da Defensoria Pública, nesse contexto, seria, também, um passo extremamente importante.
Quanto ao trabalho ostensivo da polícia, responsável pela prevenção do delito ou de sua repressão imediata, ela deve ocorrer em estreita parceria com a comunidade mediante a definição conjunta de políticas públicas.
Por outro lado, a função investigativa da polícia, responsável pela repressão mediata, visa evitar a reincidência na prática do crime para o que conta com órgãos que têm um papel fundamental na prevenção: Ministério Público, Magistratura e Defensoria Pública.
As medidas relacionadas ao sistema prisional têm o objetivo de evitar a realimentação da criminalidade: ao manter presos os condenados pela Justiça, cumpre recuperá-los para reinseri-los de maneira produtiva na sociedade. Mas isso é possível com o sistema penitenciário que possuímos? Em São Paulo, por exemplo, o índice de reincidência chega à marca de 85 %: de cada cem (100) presos, 85 voltam a delinquir e as vezes de forma ainda mais violenta.
Devemos entender que a política criminal é indissociável da política social, devendo haver um entrelaçamento íntimo entre uma e outra na formulação e execução de suas ações. Por esse critério, a segurança pública se afigura entre as maiores questões da atualidade pelo fato de termos, de um lado, índices crescentes de violência e de outro, um aparelho policial que dá mostras visíveis de sua impotência para, isoladamente, combater o bom combate.
Portanto, prometer o ‘endurecimento’ e mais eficiência do aparelho repressivo, por meio de contratações e aumento da força policial, sem atentar-se para esses três planos interligados de políticas públicas –, tem o condão de transmitir tão somente uma ilusão de segurança, sem, contudo, conseguir esconder o fato de que o populismo quer tomar o lugar de políticas sérias e mais condizentes com a realidade.
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