Crença da mutação constitucional, aplicada pelo STF, é equivocada.
Por Flavio Quinaud Pedron e Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia
Não são raras as vezes que vamos encontrar nos manuais brasileiros de Direito Constitucional a afirmação de que exista algo como uma teoria da mutação constitucional. Segundo esses autores, essa teoria de origem alemã afirmaria que as normas constitucionais necessitam ser (re)lidas à luz do tempo presente, cabendo, principalmente, ao Poder Judiciário a tarefa de “promover” essa atualização.
Isso parece ter caído em um senso comum e ser aceito sem maiores questionamentos pelos juristas brasileiros (acadêmicos ou não), ainda mais quando o ministro Luís Roberto Barroso parece ter se transformado no principal defensor prático dessa perspectiva.
O que, entretanto, parece escapar aos olhos da doutrina constitucional brasileira são duas questões fundamentais: (1) a teoria da mutação constitucional é um problema hermenêutico sendo (mal) desenvolvido por uma teoria sociológica; e (2) ela encobre uma perversidade sob a forma de um decisionismo do Supremo Tribunal Federal, afinal, é a corte quem dará a palavra final sobre a (in)existência e (in)validade de uma mutação constitucional.[1]
Já demonstramos em trabalho anterior[2] que a jurisprudência do STF é bastante confusa no que toca ao tema. Encontramos julgados onde o tribunal parece, inclusive, confundir a separação clássica entre emenda[3] – como processo formal de alteração do texto constitucional – com a mutação constitucional – uma alteração informal da norma constitucional.
Desse modo, a teoria da mutação constitucional é completamente esvaziada de sentido técnico e transformada em uma verdadeira falácia, desprovida de sentido: sempre que o STF quer afirmar que está tomando uma decisão de vanguarda, ele alega que está fazendo uso da teoria da mutação constitucional – é dizer, para não afirmar que se está “legislando” sobre a Constituição, em uma atitude de poder constituinte permanente, encobre-se o ativismo sob o manto da neutralidade da mutação.
Outra estranheza é que a suposta doutrina alemã que embasa a teoria da mutação constitucional somente discutiu acerca de (in)existência dessa figura jurídica no curso do período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, deixando de ser uma preocupação dogmática após essa fase. Mas para nós, autores como Laband, Jellinek, Heller, Smend, Dau-Lin, Hesse ou Loewenstein são todos recebidos com atualidade e sem a devida contextualização histórica. Isso quer dizer que todos esses autores que defendiam a existência de uma teoria da mutação constitucional dialogavam no cenário da crise do Positivismo Jurídico alemão – tradição que ignora a compreensão de que o Direito é formado, não apenas por regras jurídicas, mas também por princípios e por diretrizes políticas, para usar o pensamento de Ronald Dworkin.
Logo, será sob o manto de uma teoria positivista que se justificará a afirmação de que a mutação constitucional será a solução para o problema da defasagem entre o texto constitucional e as práticas sociais, desse modo estar-se-ia tentando dissolver um hiato estabelecido entre realidade e norma constitucional, mas sem a necessidade de se passar por um processo formal de elaboração de emendas à Constituição.
O texto é fixo, estático e precisa ser atualizado, de tempos em tempos, pelo tribunal em seu papel de vanguarda iluminista, para mais uma vez trabalharmos com o ministro Barroso. É uma teoria que ainda parte do hiato entre real e ideal, de forma que o ideal (constitucional) está a todo tempo perseguindo a – ou em embate com –a realidade[4].
Tomemos dois casos emblemáticos do STF sobre o tema: a (1) Rcl 4335-AC, de 2007, na qual Gilmar Mendes e Eros Graus identificaram o que chamaram de mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição de 1988 e, com isso, defenderam que a atribuição de efeitos erga omnes e vinculantes às decisões em sede de recursos extraordinários não dependeria mais da edição de resolução por parte do Senado Federal, já tendo, desde sua origem, a decisão do STF tais efeitos; e o (2) HC 126.292, no qual o STF, em fevereiro de 2016, alterou seu entendimento e considerou ser possível a execução provisória da pena após o julgamento pela segunda instância, não mais necessitando do trânsito em julgado da decisão penal condenatória.
Em ambos os casos, pode-se constatar que inexiste qualquer mudança de práticas sociais a justificar as supostas mutações constitucionais.
Na Rcl 4335-AC, os ministros Gilmar Mendes e Eros Grau entenderam que a resolução do Senado Federal não mais seria necessária para a retirada da eficácia da norma declarada inconstitucional pelo tribunal em controle difuso, reduzindo a participação da Casa Legislativa apenas no aspecto da publicidade da decisão, como se a mesma fosse uma espécie de órgão de relações públicas do STF [*].
O que é mais falacioso é que não há como falar em alteração fática se o Senado Federal sempre cumpriu com seu papel de editar tais Resoluções! No site do Senado Federal podem ser encontrados os números atualizados de reclamações editadas: em 2005, um ano antes da Rcl 4335-AC, o Senado editou 44 resoluções suspendendo a eficácia de normas por inconstitucionalidade; no próprio ano de 2006, foram 7 resoluções; e no ano de 2008 tivemos 16 e por aí vai!
Assim, o suposto da teoria clássica alemã de que se poderia falar em mutação constitucional quando determinada competência não fosse utilizada por muito tempo por certo órgão não se sustenta nos dados da “realidade”.
Por sua vez, no caso do HC 126.292, o STF modificou entendimento que já estava sedimentado internamente ao tempo do HC 84.078/MG e decidiu por desconsiderar regra e texto expressos da Constituição para autorizar a prisão antes do trânsito em julgado. A mutação, segundo o ministro Barroso, justifica-se por anseios da população, contudo, não há qualquer comprovação empírica de tal afirmação a não ser a percepção do próprio julgador.
O que há, na verdade, é uma soma de argumentos de senso comum e questões de política – mais uma vez com Dworkin – sem se adentrar em qualquer argumento de princípio: ora, dizer que “em outros países é assim” ou que “advogados se valem de recursos de forma inescrupulosa” em nada justifica juridicamente (se é que isso fosse possível, mesmo com questões de direito) alterar-se o texto da Constituição, indo frontalmente contra a garantia constitucional – alguma coisa deveríamos ter aprendido com a história da Suprema Corte americana a partir do que esta trabalha com a Emenda IX.
Além do mais, o tribunal resolve realizar uma superação de posição anterior (overruling) sem esclarecer devidamente as razões para tal mudança,[5]provocando um verdadeiro retrocesso de garantia prevista em norma constitucional.
O interessante é que o próprio ministro Barroso em sua obra já desmascara o que vem a ser a mutação constitucional: uma modalidade de poder constituinte permanente.[6] Ou seja, por meio de tal mecanismo, o STF é elevado à categoria de um super-Poder, capaz de alterar as normas constitucionais por suas decisões institucionais e sem, com isso, precisar prestar contas – ou se submeter – à fiscalidade de nenhum outro Poder instituído. Algo como uma versão requentada da posição que os militares se colocavam com os Atos Institucionais,[7] como lembrou recentemente o professor Lenio Streck também aqui no ConJur?
Dessa forma, percebe-se que a mutação constitucional brasileira, diferente das versões alemães, não é diagnosticada – declarada – pelo Judiciário, mas sim criada/constituída por ele! Ele percebe, em sua posição de altiva vanguarda, antes mesmo da sociedade a necessidade de uma mudança constitucional e usurpa o locus de debate original do Poder Constituinte de Reforma (Congresso Nacional).
Logo, atual a frase do ministro Marco Aurélio: "A Constituição é o que o STF diz que é." O mais grotesco parece ser sua alegação de quem a legitimidade de tal conduta se assenta no limite semântico do texto! Ora, em ambos os casos acima tratados a decisão do STF criadora da mutação constitucional é contra próprio texto constitucional!
Tudo isso tem um nome na Teoria do Direito e se chama decisionismo! Ou seja, “a total perda do valor das normas jurídicas como balizadoras dos pronunciamentos judiciais. A substituição da lei (que, bem ou mal, ainda é produto do que nos resta da democracia) pelas preferências do julgador.”[8]
Se a Constituição é o que o STF diz que é, então ele não é seu Guardião, mas seu “dominus”, ou, para dizer com Ingeborg Maus, o tribunal deixa de ser um órgão julgador e se transforma no superego de uma sociedade órfã,[9] na qual ele, que representa a lei, o limite, a interdição, pode atuar se valendo de princípios (ou melhor, de valores) inclusive supraconstitucionais e, logo, “mudar” a Constituição.
O pior é ver que essa postura decisória é ainda vendida por uma doutrina subserviente ao STF como positiva, inovadora, necessária. A mutação é o outro nome de um ativismo judicial contra o Estado de Direito, a Democracia e os direitos fundamentais.
Nunca é demais lembrarmos a advertência de Boaventura de Sousa Santos sobre o perigo de depositarmos no Judiciário a primazia sobre as mudanças democráticas que queremos/precisamos: o mesmo tribunal que ontem produzia um ativismo bom (progressista) hoje pode se tornar um órgão de “contrarrevolução jurídica”,[10] vanguarda do atraso democrático e constitucional.
* Texto atualizado às 17h do dia 16/12/2017.
[1] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5 ed. São Paulo: Saraiva: 2015.
[2] PEDRON, Flávio Quinaud. Mutação Constitucional na Crise do Positivismo Jurídico. Belo Horizonte: Arraes, 2012.
[3] Apenas por exemplo do afirmado: Rcl. 7.336-SP, voto do Min. Carlos Ayres de Britto; QO HC 86.009-5-DF, novamente com o voto do Min. Carlos Ayres de Britto; HC 94.695-0-RS, voto do Min. Celso de Mello, entre outros julgados.
[4] Para uma crítica ver: CATTONI, Marcelo. Contribuições para uma teoria crítica da constituição. BH: Arraes, 2017.
[5] Não se percebe nem mesmo no voto do Min. Gilmar Mendes – que neste Habeas Corpus julgou de forma oposta ao precedente – a assunção de que teria havido erro na decisão anterior. Ora, o Tribunal não está atavicamente preso a seus precedentes, no entanto, ao resolver mudar o entendimento, possui um ônus argumentativo igual ou até maior do que quando apenas segue a “ratio” anterior.
[6] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5 ed. São Paulo: Saraiva: 2015, p. 162.
[7] Como se pode ver nos “considerando” do AI-1: “A revolução (sic) vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular”.
[8] SODRÉ, Felipe. Para Entender o que é decisionismo. Justificando. 4 de ago. 2017. Acessado em 15/12/2017 em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/08/04/para-entender-o-que-e-decisionismo/.
[9] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 58, p. 185, nov. 2000; BAHIA, Alexandre. Ingeborg Maus e o Judiciário como superego da sociedade. Revista CEJ, Brasília, n. 30, PP. 10-12, jul/set 2005.
[10] SANTOS, Boaventura de Sousa. A contrarrevolução jurídica. Disponível em: http://www.uc.pt/iii/novidades/CES-boaventura-contrarevolucao12-09.
[*] Para uma crítica às posições assumidas pelo STF nesse caso, ver, por todos: STRECK, Lenio; CATTONI, Marcelo; LIMA, Martonio. A Nova Perspectiva do STF sobre Controle Difuso. ConJur, 3.8.2007. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2007-ago-03/perspectiva_stf_controle_difuso.
Flavio Quinaud Pedron é advogado e doutor e mestre em Direito pela UFMG. Professor adjunto do Mestrado em Direito Público e da Graduação da Faculdade Guanambi (Bahia); professor adjunto da PUC-Minas; professor adjunto do Ibmec. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional (ABDPC) e da Rede Brasileira de Direito e Literatura.
Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia é doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto na Ufop e no Ibmec-BH. Coordenador do Programa de Pós-Graduação “Novos Direitos, Novos Sujeitos” da Ufop e bolsista de produtividade do CNPq.
Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2017, 8h01