Parte Geral – Doutrina
Uma Leitura sobre a Fiscalização da Constitucionalidade na Constituição Portuguesa1
A Reading on the Supervision of Constitutionality in the Portuguese Constitution
DORA RESENDE ALVES
Doutora em Direito pela Universidade de Visgo-Espanha, Professora da Universidade Portuca- lense Infante D. Henrique.
JOSÉ AUGUSTO SILVA LOPES
Pós–Graduação em Direito pela Universidade de Coimbra, Professor da Universidade Portuca- lense Infante D. Henrique.
RESUMO: O Estado de Direito, na sua evolução, veio criar mecanismos de interdependência entre os poderes clássicos. Assim surge a justiça constitucional, que, no caso português, tal como a conhecemos hoje, se desenha com a criação, em 1983, do Tribunal Constitucional. Diversos são os momentos e locais da fiscalização da constitucionalidade na Constituição da República Portuguesa. Atendendo aos pressupostos e objectivos, e considerando a natureza embrionária deste estudo, foi desenhada uma metodologia que se concentra na revisão da literatura sobre os vários temas abordados, com especial enfoque da questão nos conceitos do Direito Constitucional geral e particular português. Dedutivamente, será, assim, possível inferir o contributo do texto constitucional português para a matéria. O estado da arte, de pendor teórico-académico, será coadjuvado e consolidado por meio da interpretação normativa e jurisprudencial sistemática e metodologicamente seleccionada dos textos legais nacionais. O intuito é situar o leitor no tema da fiscalização da constitucionalidade em Portugal.
PALAVRAS–CHAVE: Fiscalização; constitucionalidade; Constituição.
ABSTRACT: The rule of law, in its evolution, has created mechanisms of interdependence between the classic powers. Thus arises the constitutional justice that, in the Portuguese case, as we know it today, is drawn with the creation in 1983 of the Constitutional Court. Several are the moments and places of the review of constitutionality in the Constitution of the Portuguese Republic. In order to meet the assumptions and objectives, and considering the embryonic nature of this study, a metho– dology was designed that focuses on the literature review on the various topics addressed, with a special focus on the concepts of general and particular Portuguese Constitutional Law. Deductively, it will thus be possible to infer the contribution of the Portuguese constitutional text to the matter. The state of the art, theoretical and academic, will be assisted and consolidated through systematic and
1 Conforme palestra proferida no XXVIII Curso de Preparação para o Exame de Admissão ao Centro de Estudos Judiciários de 2016/2017 na Universidade Portucalense Infante D. Henrique, em novembro de 2016.
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methodologically selected normative and jurisprudential interpretation of national legal texts. The aim is to situate the reader in the subject of the review of constitutionality in Portugal.
KEYWORDS: Review; constitutional; Constitution.
SUMÁRIO: 1 Apresentação; 2 A fiscalização preventiva; 3 A fiscalização sucessiva; 4 A fiscalização sucessiva concreta; 5 A inconstitucionalidade por omissão; 6 Nota final; Referências.
1 APRESENTAÇÃO
Como breve apresentação, o objectivo presente é trocar algumas impres- sões sobre a fiscalização da constitucionalidade, conforme tema indicado para estudo na preparação para o exame de ingresso no Centro de Estudos Judi- ciários2.
A justiça constitucional, criação resultante da evolução do Estado para Estado Social e Democrático de Direito, é exercida nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP) e da lei e compete ao Tribunal Constitucional e aos tribunais comuns3. A instituição do Tribunal Constitucional, realizada pela revisão constitucional de 19824, traz um conjunto de modalidades de controlo judicial da constitucionalidade e de certas formas de ilegalidade5.
A fiscalização pode ser preventiva ou sucessiva e, aqui, os termos do direito costumam complicar. Mas era necessária, de facto, essa tarefa de deter- minar um critério para a identificação, acrescentando-se que, no que se refere à distinção, o que conta é o momento.
Se o diploma já foi publicado no Diário da República6, a fiscalização é sucessiva, mas, se ocorrer antes dessa publicação, é, então, preventiva. Mas
2 O tema consta do último Aviso nº 320-A/2017 publicado no Diário da República, 2ª série, nº 5, de 6 de fevereiro de 2017, p. 738(6) a (13), com o Concurso de ingresso no curso de formação inicial de magistrados para os tribunais judiciais. Disponível em: <https://dre.pt/application/file/a/105726362>.
3 Artigos da Parte IV, Título I, da CRP e Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, Lei nº 28/1982 pelo art. 224.º, n.º 1, da CRP.
Sobre a competência dos tribunais nos arts. 3.º, n.º 2, 221.º, 223.º, n.º 1, e 204.º da CRP e 6.º da Lei do Tribunal Constitucional.
4 Lei Constitucional nº 1/1982, de 30 de setembro.
5 António de Araújo e J. A. Teles Pereira, “A justiça constitucional nos 30 anos da Constituição portuguesa: notas para uma aproximação ibérica”, Jurisprudência Constitucional, n. 6, p. 16, 2005.
6 De mencionar o Diário da República nº 240, 1ª série, de 16.12.2016, p. 4728 a 4730, com o Decreto– Lei nº 83/2016, de 16 de dezembro, que estabelece como serviço público o acesso universal e gratuito ao Diário da República, nele incluídos todo o seu conteúdo e as suas funcionalidades, fixando as condições da sua utilização, e procede à extinção do respetivo serviço de assinaturas e reafirma aspectos da lei de publicação, identificação e formulário dos diplomas portuguesa (Lei nº 74/1998, de 11 de novembro, já alterada pelas: Lei nº 2/2005, de 24 de janeiro; Lei nº 26/2006, de 30 de junho; Lei nº 42/2007, de 24 de agosto; e Lei nº 43/2014, de 11 de julho). Tal como na União Europeia, onde, desde 1º de julho de 2013, apenas a edição eletrónica do Jornal Oficial faz fé e produz efeitos jurídicos, nos termos do Regulamento (UE) nº 216/2013 do Conselho, de 4 de março de 2013, relativo à publicação eletrónica do Jornal Oficial da União Europeia. Determina que o Jornal Oficial é publicado sob forma eletrónica, nas línguas oficiais das instituições da União Europeia, JOUE L 69 de 13.03.2013, p. 1 a 3 (Regulamento nº 1, que estabelece o
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por que será importante esse critério? Porque pode-se fiscalizar sucessivamente uma determinada norma, mesmo que ela não esteja em vigor e, portanto, po- demos fazer um tipo de fiscalização sucessiva. Por essa razão, o critério é jus- tamente o da publicação, porque a fiscalização preventiva ocorre sempre antes da promulgação do diploma que parte do Presidente da República. Em todo o caso, o critério, e bem, é o da publicação.
2 A FISCALIZAÇÃO PREVENTIVA
As inconstitucionalidades não surgem, como muitas vezes os alunos jul- gam, quando estão a aprender o direito constitucional, por um acaso ou descui- do. O que acontece é que o surgir de uma inconstitucionalidade é quase uma fatalidade de quem legisla, porque, na realidade, acontece, embora se tente evitar. Quando surge a apresentação de um projecto ou de uma proposta de lei na Assembleia da República, previamente à marcação da discussão na genera- lidade, há sempre uma comissão que vai avaliar a proposta ou o projecto de lei, entre outras, quanto à redacção e ao português, quanto à própria aproximação à linguagem comum dos actos legislativos. Vai também realizar uma história de todo o diploma, para, posteriormente, se ter a noção de qual é a evolução do pensamento do legislador e, de igual modo, verificar se, à luz da legislação já existente (sobre aquela matéria), aquela proposta, ou aquele projecto, clamo- rosamente viola a Constituição. Portanto, há sempre aqui uma triagem inicial possível com a fiscalização preventiva7.
Porém, ainda assim, poderão ocorrer questões de complexidade acres- cida, aquilo a que, a título pessoal, se costuma chamar de hardcore constitu- cional, e, portanto, que determinam a existência de uma inconstitucionalidade, designadamente material, sempre a mais complexa.
Dito isso, quando um diploma é aprovado no órgão legislativo compe- tente (se for na Assembleia, é aprovado em plenário da Assembleia da Repú- blica e, posteriormente, assinado pelo Presidente da Assembleia da República, nos termos do art. 19.º, alínea e), do Regimento Interno da Assembleia da Re- pública8), é depois submetido à reflexão por parte do Presidente da República.
Desencadeado o processo, o Presidente da República tem oito dias (art. 278.º, n.º 3, da CRP9) para decidir se promulga ou se desencadeia a fiscali-
regime linguístico da Comunidade Económica Europeia, no JO 17 de 06.10.1958, p. 385 e 386, rectificado no JO 34 de 29.05.1959, p. 630. Alterações pelos Regulamento (CE) nº 920/2005 do Conselho, de 13 de junho de 2005, em que fixa já 21 línguas oficiais e de trabalho (JOUE L 156 de 18.06.2005, p. 3 e 4); e Regulamento (CE) nº 1.791/2006 do Conselho, de 20 de novembro de 2006, JOUE L 363 de 20.12.2006,
p. 1). Disponível em: <www.dre.pt>.
7 Arts. 278.º, 279.º e 136.º, n.º 5, da CRP e 57.º a 61.º da Lei do Tribunal Constitucional.
8 O RAR – Regimento da Assembleia da República nº 1/2007, Diário da República nº 159, 1ª série, p. 5362 a 5398.
9 E art. 57.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
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zação preventiva. Oito dias é um prazo muito curto, mas tem uma certa lógica comparando com o prazo que o Presidente da República também tem para poder vetar politicamente o acto. Esse prazo, se for para acto da Assembleia da República, é de vinte dias, nos termos do número 1 do art. 136.º da CRP. Então, o Presidente da República tem oito dias para desencadear a fiscalização preventiva. Esse prazo é contabilizado em simultâneo com os vinte dias para o veto político. Ora, se o Presidente da República desencadear ao 5º dia a fisca- lização preventiva, ou seja, se faltarem três dias para o final do prazo, este acto tem um efeito interruptivo desse mesmo prazo10. Para recordar, há a supressão e a interrupção dos prazos, e esse é interruptivo. Assim, caso a apreciação do Tribunal Constitucional venha a declarar a não inconstitucionalidade da norma ou das normas, cuja apreciação o Presidente da República solicitou, o prazo de vinte dias renasce. Por isso é que, lendo o art. 136.º da CRP, diz que são vinte dias a contar da publicação da decisão do Tribunal Constitucional que não se pronuncie pela inconstitucionalidade da norma; logo, esses 20 dias renascem.
Os oito dias são importantes e são ao mesmo tempo uma inovação, ou seja, não existiam logo no texto de criação da Constituição e são o resultado de uma experiência histórica. Quando foi Presidente da República, o General Ramalho Eanes, pela sua acção, aplicou um terceiro tipo de veto. Já, nessa altu- ra, existia o veto político e o veto jurídico, mas, por essa altura, surgiu também o veto de bolso (pocket veto)11, ou o veto de gaveta (metia na gaveta e, en- quanto não fosse promulgado, funcionava a inexistência jurídica do acto, pelo art. 137.º da CRP) e, na prática, havia esse tertius genus de veto, que, obvia- mente, não era consentido em termos éticos12 e, portanto, a Constituição veio, justamente, de encontro a uma dimensão ética da comunidade e, nesse sentido, a revisão de 1982 inseriu esse prazo13.
O Presidente da República desencadeia a fiscalização preventiva, di- rigindo ao presidente do Tribunal Constitucional um requerimento14, em que alega que, no seu entendimento, quais são as normas daquele diploma que são, para ele, inconstitucionais15. Desse modo, compulsado todo o diploma, entende, por exemplo, que a norma constante na alínea a) do número 1 do art. 2.º do Decreto nº X padece ser uma inconstitucionalidade de violação pelo
10 “II – Com a interrupção o tempo decorrido até à causa interruptiva fica inutilizado, depois começa a correr novo prazo (n.º 5, alínea a), desse artigo e art. 326.º, n.º 1, do Código Civil)” (Acórdão da Relação de Lisboa (José Augusto Ramos), de 17 de dezembro de 2008, Proc. 10962/2008-1. Disponível em: <www.dgsi.pt>).
11 Por veto de bolso deve entender aquele em que “nenhuma ação positiva se faz necessária, apenas não dar– lhe continuidade” (Ernesto Rodrigues, O veto no direito comparado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 79).
12 O silêncio presidencial (“veto tácito” ou pocket veto) é considerado ilegítimo (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República portuguesa – Anotada, v. II, 2010, p. 203).
13 Aliás, a revisão de 1982 introduziu um prazo de cinco dias, depois alterado para oito na revisão de 1989. Ver Lei Constitucional nº 1/1982, de 30 de setembro (DR 227), e Lei Constitucional nº 1/1989, de 8 de julho.
14 Art. 51.º, n.º 1, 1.ª parte, da Lei do Tribunal Constitucional.
15 Art. 51.º, n.º 1, 2.ª parte, da Lei do Tribunal Constitucional.
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art. 13.º da CRP (princípio da igualdade) ou padece uma inconstitucionalidade por violação do estado de direito, entre outros.
Duas notas: o que o Presidente da República pedir para apreciação é vinculativo para o Tribunal Constitucional, isto é, o Tribunal Constitucional só pode apreciar aquilo que o Presidente da República indicar (o Presidente da República delimita o objecto da apreciação, é o princípio do pedido)16; todavia, o Tribunal Constitucional não está restrito apenas, e tão só, aos fundamentos de inconstitucionalidade que o Presidente da República enuncia, isto é, ele pode dizer que entende que viola o princípio da igualdade e o Tribunal Constitucio- nal pronunciar-se pela inconstitucionalidade daquela norma, mas por violação do princípio da proporcionalidade. No seguimento do ditame latino iura novit curia, a indicação de direito não vincula o julgador17. E o Presidente da Repú- blica pode até desistir do seu pedido18.
Há aqui prazos muito curtos19. Evidentemente que, quando isto aconte- ce, há o contraditório, isto é, o órgão que produziu o diploma é ouvido e tem o prazo de dois ou três dias para se pronunciar20. Quase sempre oferecem o merecimento dos autos e, depois, o Tribunal pronuncia-se21.
O Tribunal pronuncia-se: ou pela inconstitucionalidade ou pela não in- constitucionalidade22-23. Há aqui, supostamente, um erro gramatical de dupla negativa: não inconstitucional. Mas é um suposto erro gramatical pretendido, porque, se o Tribunal Constitucional declarasse que o diploma era constitucio- nal, então, estaria irremediavelmente afastada qualquer possibilidade de fisca- lizar sucessivamente o mesmo diploma: Se o Tribunal Constitucional já tinha decidido, por que havia de ser de maneira diferente mais tarde? É por essa razão que ele declara como não inconstitucional.
Atenta aqui o Tribunal Constitucional a uma coisa importantíssima, aqui- lo a que se chama o sal e a pimenta da vida ou, para usar uma expressão de Figueiredo Dias: “Um pedaço da vida”, a que podemos acrescentar “um peda-
16 Art. 51.º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional.
17 Art. 51.º, n.º 5, 2.ª parte, da Lei do Tribunal Constitucional.
18 Art. 53.º da Lei do Tribunal Constitucional.
19 Arts. 52.º, 56.º e 60.º da Lei do Tribunal Constitucional.
20 Art. 54.º da Lei do Tribunal Constitucional.
21 Art. 61.º da Lei do Tribunal Constitucional.
22 Muitos serão os exemplos, mas indicando um, no Acórdão nº 770/2014, Processo nº 485/2013 da 2ª Secção do Tribunal Constitucional, no Diário da República, 2ª série, nº 26 de 6 de fevereiro de 2015, p. 3602. O Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do art. 824.º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3 de prestações periódicas (limites à penhorabilidade de pensões ou prestações sociais).
23 O Tribunal Constitucional está impedido, nessa sede, de proferir sentenças manipulativas, ou seja, aquelas que acoplam ao juízo de inconstitucionalidade ou de não inconstitucionalidade, formulações sobre a semântica e sobre os efeitos do segmento normativo que é cuidado em sede de apreciação preventiva, mesmo para aqueles que defendem em outros registos de fiscalização. Nesse sentido, Vitalino Canas, Introdução às decisões de provimento do tribunal constitucional (Lisboa, 1994, p. 39).
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ço de vida cru”, pois, de facto, a vida traz dimensões e colorações totalmente diferentes à aplicação das normas, por vezes não equacionadas pelo legislador. Muitas vezes, elas só foram pensadas em um determinado sentido e a comu- nidade (todos nós), propende a aplicá-la em sentido ligeiramente inflectido ou ligeiramente diferente, e, por essa razão, e em um quadro de honestidade inte- lectual, quando o Tribunal Constitucional se pronuncia pela não inconstitucio- nalidade, como que diz: “Tanto quanto nos parece, tanto quanto conseguimos vislumbrar para a aplicação destas normas neste momento, parece-nos que não viola a Constituição”, mas não pode garantir que, depois, uma aplicação prática do direito não se identifique justamente essa inconstitucionalidade. Por essa razão, o Tribunal Constitucional pronuncia-se pela não inconstitucionalidade.
Outro caso, ligeiramente diferente, é o dos referendos, porque são actos imediatamente realizados. Evidentemente que o referendo é instantâneo, por- tanto, o Tribunal Constitucional é obrigado (e é sempre obrigado nos termos do n.º 8 do art. 115.º da CRP24) a pronunciar-se previamente. O Presidente da Re- pública submete obrigatoriamente à fiscalização preventiva todas as propostas de referendo e o Tribunal Constitucional pronuncia-se sempre ou pela inconsti- tucionalidade ou pela constitucionalidade25.
Ainda, o Tribunal Constitucional pronunciou-se quanto à possibilidade de referendo relativamente à questão da adopção por homossexuais, e a de- clarou inconstitucional. Essa decisão teria de ser política e tem que partir do órgão legitimamente eleito pelos cidadãos. Também por essa razão declarou a inconstitucionalidade26. Mas se entendesse que não havia inconstitucionali- dade, nesse caso, diria que era constitucional porque a partir daí não há mais hipóteses de fiscalizar sucessivamente essa mesma realidade27. O referendo é feito e extingue-se.
A partir do momento em que o Tribunal Constitucional se pronuncia pela não inconstitucionalidade há outros efeitos a saber.
Um, obrigatório, é o veto do Presidente da República28. Quando o Tri- bunal Constitucional se pronuncia pela inconstitucionalidade, o Presidente da República deve vetar o diploma e o mesmo é devolvido ao órgão que o apro- vou, independentemente de ser o Governo ou a Assembleia da República29. Isso é importante porque o resultado será diferente consoante o órgão em causa. O
24 Daí que seja dispensável a fundamentação do pedido de fiscalização.
25 V.g., Acórdão nº 617/2006 do Tribunal Constitucional, de 15 de novembro de 2006, Diário da República – I Série, nº 223, 1º Suplemento, de 20 novembro 2006.
26 Acórdão do Tribunal Constitucional nº 176/2014, DR – I Série, nº 44, de 4 de março de 2014.
27 No mesmo sentido, Jorge Miranda, Manual de direito constitucional (Coimbra, v. VI, 2005, p. 275). Em sentido contrário, Carlos Blanco de Morais, Justiça constitucional – O direito do contencioso constitucional (2. ed. Lisboa, t. II, 2011, p. 116).
28 Com a consequente proibição de promulgar (art. 279.º, n.º 2, da CRP).
29 Estamos por agora a deixar de lado o caso dos decretos legislativos regionais provenientes das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas (conferir arts. 112.º, n.º 1 e n.º 4, 227.º, n.º 1, e 233.º da CRP).
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veto político do Presidente da República relativamente a um decreto do Gover- no é definitivo e absoluto (o diploma não produz mais efeitos).
Qual é o prazo para vetar? Será que poderemos socorrer de algum prazo ínsito na Constituição, uma vez que esta, de facto, não o especifica para esta situação? Na angústia que o então Presidente da República, General Ramalho Eanes, provocava a todos os doutrinadores do Direito Constitucional, houve quem tentasse fazer aqui o paralelismo, por analogia com o artigo 136.º da CRP, mas, sinceramente, não cremos que haja a procedência de motivos para o efeito. Na verdade, só se pode lançar mão da analogia quando razões práticas equivalentes procedem e, aqui, não procedem. Falamos de momentos diversos, com conotações e significâncias totalmente diversas e, portanto, entendemos que não se pode fazer qualquer tipo de analogia.
O prazo é, porém, entendemos, muito simples. É imediatamente30-31, logo que possível, com eyes wide shut (de olhos bem fechados). Porquê? Por- que a Constituição retirou todo e qualquer protagonismo na avaliação da in- constitucionalidade por parte do Presidente da República. A única coisa que o Presidente da República terá de fazer é remeter as suas dúvidas ao Tribunal Constitucional. Temos aqui um sistema de fiscalização concentrada do Tribunal Constitucional (o chamado sistema austríaco) e, portanto, fez-se all in one (ex- pressão do jogo de poker) no Tribunal Constitucional. Conferiu-se-lhe toda essa competência nessa vertente da fiscalização. Pode acontecer, por exemplo, de o Presidente da República estar no estrangeiro32, e, por isso o “logo que possível” deve ser entendido com adequação às circunstâncias. E basta ao Presidente da República remeter para os fundamentos do Tribunal Constitucional o vetar juridicamente com fundamentos expressos na decisão do Tribunal Constitucio- nal33. Quando possível, é só isto!
Há, então, duas situações.
Ou foi o Governo que elaborou o diploma ou foi a Assembleia da Repú- blica que fez o diploma. Mas note-se que, curiosamente, chamamos a ambos os diplomas decretos, porque decreto é a forma que assume o acto depois de apro-
30 Carlos Blanco de Morais, op. cit., p. 77 e 78.
31 “[…] num prazo razoável, correspondente, no máximo, ao decurso do tempo até à publicação da decisão do Tribunal.” (Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, Coimbra, v. VI, 2014, p. 318).
32 Só em casos extremos é que um Presidente da República ou um Chefe de Estado deve praticar um acto de Estado quando se encontra no estrangeiro. Só em casos, por exemplo, como aconteceu para Espanha, em que o Rei D. Juan Carlos, no estrangeiro, foi à sua embaixada, e aí (solo nacional) fez a requisição civil de todos os enfermeiros, porque estava fora, tinha de assinar um decreto de requisição civil e não havia margem para esperar que regressasse a Espanha para a poder assinar, sendo remetido pelo correio pelo País onde ele estava. No entanto, não se deve tratar de questões domésticas de Estado no estrangeiro. Ver, na nossa CRP, o art. 129.º.
33 Com efeito, defendemos que ao Presidente da República foi-lhe retirada qualquer intervenção, ainda que meramente aditiva ou complementar, relativamente aos fundamentos do veto. Esse corresponde ao da pronúncia do Tribunal Constitucional.
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vado e antes de ser promulgado34 e, como ainda não foi promulgado, o nome coincide. O acto de promulgação tem essa virtualidade jurídica, de transmutar o nome do ato. Depois, passará a ser lei se for da Assembleia da República ou decreto-lei se for do Governo35. Portanto, o decreto é vetado e remetido36 ao órgão que o aprovou (art. 279.º, n.º 1, da CRP).
Começando pela situação de ser do Governo. Se for do Governo, ele tem duas hipóteses. Ou desiste37 do diploma ou expurga.
Quanto à desistência, nada de mais natural que possa acontecer; se aquele objectivo político esbarra na Constituição, é melhor pensar, ponderar melhor, arranjar outras alternativas para atingir, porventura, o mesmo objectivo, mas por outra via jurídica38.
Quanto ao expurgar, isto é, retira-se a parte que está inconstitucional39, a parte que o Tribunal Constitucional assinalou, e volta a devolver40 o acto ao Presidente da República em uma nova apresentação.
Caso o Governo entenda que a melhor forma de expurgar a inconstitucio- nalidade assinalada passa por alterar outras normas e acrescentar novas, assim o faça. Ou, ainda, e tomando em consideração que os actos normativos, nesse caso, actos legislativos, têm, necessariamente, uma sistematização, essa purga pode ter desarticulado as restantes normas (ou parte delas) do diploma no seu conjunto. O diploma pode conter normas que, porventura, estavam escoradas precisamente naquelas que foram bulidas e que agora o Governo alterou. Com essa eventual desarticulação, elas próprias poderão tornar-se inconstitucionais. Por essa mesma razão, a Constituição vê a reapresentação do diploma como um novo diploma e permite que o Presidente da República desencadeie novamente
34 Vide art. 159.º do RAR.
35 “[…] no direito constitucional português ‘decreto’ tanto é um acto de um órgão do poder executivo, nomeadamente Presidente da República, ou Governo, ou Conselho de Revolução. Agora, como é no outro sentido que vem das nossas Constituições do século XIX, o nome que é dado aos actos parlamentares, na fase que decorre entre a aprovação definitiva nas Assembleias e a sua promulgação pelo Presidente da República […] tratando-se de decreto da Assembleia dos Deputados, queremos precisamente dizer isso: é um projecto de lei que já foi aprovado mas que ainda não foi promulgado. É este o sentido tradicional n direito constitucional português.” (Jorge Miranda (PPD), Diário da Assembleia Constituinte, de 2 de junho de 1975 a 2 de abril de 1976, Lisboa, Assembleia da República, v. IV, 1995, p. 3828)
36 Note-se que a Constituição não assinala qualquer prazo para esse envio.
37 Note-se que a desistência não obstaculiza a possibilidade de o órgão em causa aprovar novo diploma sobre a mesma temática.
38 A desistência determinará a impossibilidade de o Presidente da República poder promulgar o acto, o que, por sua vez, implica a sua inexistência (art. 137.º da CRP).
39 A expurgação poderá consistir unicamente na eliminação da parte inconstitucional constante da pronúncia do Tribunal Constitucional ou traduzir-se em uma reformulação do texto do diploma a conceder-lhe uma compactação lógico-sistemática, que, inclusive, poderá passar pela introdução de novas normas (cf. art. 162.º do RAR).
40 Também aqui a Constituição não assinala qualquer prazo para essa devolução.
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a fiscalização preventiva (art. 279.º, n.º 2, 1.ª parte, e n.º 3, da CRP)41-42. Em princípio, quase sempre a reformulação é feita em conformidade, mas podia acontecer essa hipótese e o legislador constituinte, cauteloso, assim decidiu, e decidiu muito bem.
Portanto, o Governo só pode fazer essas duas coisas. Já a Assembleia da República pode fazer três, a expor.
Pode fazer as mesmas duas já faladas para o Governo, uma delas, desistir do diploma. E é muito mais razoável que seja a própria Assembleia a desis- tir, porque muitas vezes o diploma em causa necessita de uma maioria para aprovação, até absoluta43, e recorrentemente ocorre que nenhum partido tem maioria absoluta e também não há coligações, pelo que lhe é necessária uma negociação árdua. Ora, se depois se verifica uma inconstitucionalidade quase que se consegue ouvir o que não se diz: “Este diploma foi negociado, foi feito com preocupações específicas e cirurgicamente logrou-se o consenso neces- sário e, agora, é inconstitucional? É melhor desistir porque nesta alteração não vamos conseguir o consenso que necessitamos”.
A Assembleia da República pode alterar o diploma, que é o mais razoá- vel e o mais comum. Note-se que as alterações precisam de ser aprovadas pela mesma maioria que a Constituição determinar para a aprovação do diploma na primeira versão, pois trata-se de um novo diploma, e, por essa razão, muitas vezes a Assembleia desiste quando as inconstitucionalidades encontradas são inibidoras de potenciar novo consenso parlamentar. Mas pode também seguir uma terceira via.
Todavia, o diploma poderá ser confirmado in totum pela Assembleia da República44 sem o reformular. Ou seja, o Tribunal Constitucional disse: “Inconstitucional”45. O Presidente da República vetou, devolveu à Assembleia e
41 Caso ocorra nova inconstitucionalidade, por motivos diversos ou mesmo os mesmos, o processo do veto jurídico repete-se na íntegra, tal como o previsto nos arts. 279.º, 51.º e seguintes da LTC.
42 Justamente por ocorrer uma apresentação de um novo diploma, o Presidente da República passa a deter novo prazo para o veto político, a que alude o art. 136.º da CRP. Com efeito, o preceito em causa apenas refere que a contagem do prazo ocorre por referência à recepção, não especificando alguma em particular, pelo que entendemos que é de aplicar o brocardo latino ubi lex non distinguit nec nos distinguire debemus.
43 Por exemplo, no caso da tramitação das leis orgânicas ou outros casos específicos, arts. 166.º, n.º 2, e 168.º, n.º 5 e 6, da CRP.
44 Só a Assembleia da República poderá usar desta faculdade, o mesmo não ocorrendo com as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, na medida em que o legislador constituinte usou deliberadamente Deputados com letra maiúscula. Ora, a CRP, ao referir-se aos deputados das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, refere-se sempre com letra minúscula (cf. arts. 133.º, alínea b), 166.º, alínea b), 164.º, alínea j), 226.º, n.º 1 e n.º 4, 227.º, alínea e), 234.º, n.º 3, e 281.º, alínea g)), e devemos interpretar as normas reconstituindo a partir do texto o pensamento legislativo e devemos presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º do Código Civil). No mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República portuguesa anotada (3. ed., 1993, p. 1008 e 1009); Carlos Blanco de Morais (op. cit., p. 94 e 95); contra, Jorge Miranda (op. cit., p. 269 e ss.) e Fernando Alves Correia (Direito constitucional, a justiça constitucional (Coimbra, 2001, p. 92).
45 Essa decisão irá relevar, nos termos do art. 280.º, n.º 5, da CRP e art. 70.º, n.º 1, alínea g), da LTC.
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a Assembleia disse, então: “Muito bem, mas nós ainda assim queremos que ele seja publicado e entre em vigor exactamente como está, e se é inconstitucional, nós confirmamos”. Tem de o confirmar por uma maioria de 2/3 dos Deputados presentes, e desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectivi- dade de funções (art. 279.º, n.º 2, 2.ª parte, da CRP).
Pode parecer um pouco estranho a Assembleia poder confirmar as in- constitucionalidades, mas a justificação jurídica actual46 é simples. Quem é que faz a Constituição? Quem é que altera a Constituição? É a Assembleia da Repú- blica que tem poder de revisão e, portanto, se quisermos é uma espécie de revi- são ad hoc, como que subterrânea, não explícita, e sem tocar no texto, porque o texto constitucional mantém-se exactamente igual; então, o que a Assembleia vem dizer é que,
não obstante essa inconstitucionalidade, nós, que até temos o poder constituinte derivado, e se quiséssemos alterar a Constituição, alterávamos. Fa- zíamos aprovar este acto e já deixaria de haver inconstitucionalidade e, por- tanto, se assim é, se nós temos esse poder, nós manifestamos justamente essa autoridade que efectivamente temos.
Imaginemos agora que o diploma foi aprovado pela maioria de 2/3 dos Deputados presentes, correspondente a um número superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (art. 279.º, n.º 2, 2.ª parte, da CRP). A Assembleia, depois de confirmar o diploma, o mesmo segue47 para o Presi- dente da República, e aqui Constituição é silenciosa. Há aqui, manifestamente, uma lacuna voluntária, porque essa lacuna voluntária pretendeu fazer do Presi- dente da República um “árbitro”. Desse modo, temos o Presidente da República como detentor de um “poder arbitral” dessa questiúncula. Repare-se, porque isso é muito interessante: de um lado, temos a Assembleia da República ou o órgão de soberania (art. 110.º da CRP); do outro lado, temos o Tribunal Consti- tucional, também um órgão de soberania (de entre os tribunais, arts. 209.º, n.º 1, 202.º e, também, art. 110.º) e, no meio, o “árbitro”, que é também outro órgão de soberania (sempre art. 110.º).
Portanto, temos aqui três órgãos de soberania, sendo certo que um deles (Assembleia) é o órgão de soberania que representa todos os cidadãos portu- gueses, com uma legitimidade democrática directa (arts. 147.º e 113.º, n.º 1, da CRP). Do outro lado, temos o Tribunal Constitucional em que justamente a Constituição fez o tal all in preventivo (art. 221.º da CRP) e, depois, temos o Presidente da República, que também tem legitimidade democrática directa (art. 121.º da CRP). E o Presidente da República vai decidir se propende para a
46 Essa é a interpretação objectiva actualista, pois não se ignora que, segundo uma interpretação subjectiva histórica, a norma em causa visou dirimir, até 1982, o jogo de forças político entre a Assembleia da República e o Conselho da Revolução.
47 Note-se que a Constituição não assinala qualquer prazo para esse envio.
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decisão da Assembleia da República, ou se propende para a decisão do Tribu- nal Constitucional. Bem, aqui, evidentemente que não há arbitrariedade, mas sim discricionariedade.
Considera-se adequado que o Presidente da República decida48, quase sempre (por cautela jurídica), desta forma: se o Tribunal Constitucional se pro- nunciar pela verificação de uma inconstitucionalidade material, deverá o Presi- dente da República vetar sempre o acto, sem dúvidas de qualquer espécie. Se a inconstitucionalidade for orgânica, isto é, quem aprovou o acto é um órgão sem competência para o efeito, deverá o acto também ser vetado.
Já, em caso de inconstitucionalidade formal, dependerá da formalidade em questão, com este exemplo: supondo uma situação que aconteceu há relati- vamente pouco tempo e que foi corrigida a tempo, mas que podia ter avançado. Na votação da última lei de orçamento para 2015 (art. 106.º da CRP), houve um Deputado de um partido que declarou que ia votar contra. Trata-se de um Deputado com anteriores processos disciplinares, porque em uma matéria em que havia sido determinada a disciplina de voto partidária quebrara essa mesma disciplina de voto. Ora, no momento da votação a Presidente da Assembleia da República disse o resultado da votação em relação ao diploma em causa: “Foi aprovado com os votos a favor do PSD e CDS e votos contra PS e todas as outras em oposição”, dando por encerrada a votação. E, afinal, resultou daquela de- claração de cotação que o Deputado em questão votou a favor, quando no dia anterior tinha dito que ia votar contra. Porém, depois de alertada, a Presidente da Assembleia corrigiu e referiu que houve a abstenção do tal Senhor Deputa- do. Mais uma vez alertada, voltou a corrigir outra vez e disse: “Não, afinal hou- ve um voto contra”. Isto é, a votação poderia ter sido dada por encerrada com desconformidades, mas, nesse caso, foi possível uma correcção em tempo útil.
E vamos agora supor uma situação em que ninguém tinha alertado a Pre- sidente da Assembleia da República e, afinal, o Deputado tinha votado contra e não foi contabilizado dessa maneira esse voto. E vamos imaginar que esse voto contra tinha sido decisivo, ou, melhor, seria decisivo se contabilizado, mas como não se aperceberam o acto foi considerado válido, ou seja, bem aprova- do e, portanto, remetido ao Senhor Presidente da República quando depois se constatou que, na realidade, devia ter sido considerado não aprovado. Portanto, haveria aqui uma preterição de formalidade que é a verificação da maioria ade- quada ao diploma em votação.
Se o Tribunal Constitucional declarar inconstitucionalidade, justamente formal por violação da maioria exigida, o acto é devolvido à Assembleia (e vamos imaginar que era apenas necessária uma maioria simples) e, agora, na confirmação, os outros Deputados foram, entretanto, convencidos e votam a
48 Em uma visão quase pretoriana, muito ao jeito do que acontecia com o preceito que julgamos ter sido a referência da norma em causa: da Constituição da República do Brasil de 1937.
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favor, ou seja, 2/3 dos presentes (que corresponde agora a um número superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções). Em preterição daquela formalidade, que só exigia um regime de maioria simples. Portanto e apesar de não ter ocorrido, bastavam 110 votos a favor, 70 votos contra e o resto em possível abstenção (visto o art. 148.º da CRP) para a primeira votação, é agora reaprovada por maioria de, pelo menos, 117 Deputados. Com efeito, e analisado o que diz o n.º 2 do art. 279.º da CRP: “Desde que superior à maioria absoluta”, obriga a aprovação por, pelo menos, 117 Deputados. Se a maioria absoluta é 115 + 1. Como 116 não é superior, então, tem de ser 117, no míni- mo. Assim, teríamos 117 Deputados a dizer: “Concordamos com o diploma” (quando à partida só precisávamos de 110 ou menos, imagine-se). Não faz sen- tido, agora, o Presidente da República, só por essa questão tão diminuta e já sanada, vetar o diploma e obrigar a repetição ex novo de todos os procedimen- tos, quando, seguramente, o resultado vai ser a sua aprovação. O que se quer evidenciar é que, caso fosse uma questão formal dessas, não se vê qualquer problema na promulgação, mesmo após a declaração de inconstitucionalidade.
Parte da doutrina chama a esse procedimento (quando o Presidente da República concorda com o Tribunal Constitucional) converter o veto em defi- nitivo. É o que acontece na prática, o Presidente da República converte o veto definitivo.
Do ponto de vista teórico, podemos entender que não há uma conver- são do veto – porque esse é o acto que só resulta do Presidente da República quando recebe o diploma directamente do Tribunal Constitucional –, e como aqui o Presidente da República recebe o diploma directamente da Assembleia da República, o que há é a não promulgação do diploma e que determina a inexistência jurídica por via do art. 137.º da CRP. Na prática, o resultado é o mesmo, ou seja, o diploma “fica por ali”49.
Até agora falamos de actos comuns, as leis ordinárias comuns, mas há ainda as leis ordinárias de valor reforçado, com a excepção das leis orgâni- cas50, porque estas últimas têm um formalismo diferente, porque, a par das leis estatutárias (leis que aprovam os estatutos político administrativos das regiões autónomas, arts. 161.º, alínea b), e 226.º da CRP), são as segundas leis mais importantes do Estado, ou seja, estão logo a seguir da Constituição: são leis ordinárias de valor reforçado de alcance geral, que se impõe a todos e demais actos legislativos do Estado. E, por essa razão, o art. 278.º, nos seus números 4, 5, 6 e 7, da CRP, estabelece um regime ligeiramente diferente.
49 Não se trata de defender o uso do famigerado veto de bolso; trata-se, sim, de comunicar à Assembleia da República que não se promulgará o diploma por uso do poder arbitral. Note-se que o Presidente da República tem o poder de efectuar comunicações à Assembleia da República e pode perfeitamente usar desse poder nesse caso concreto.
50 Art. 166.º, n.º 2, da CRP.
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Abre-se aqui uma distinção da Constituição para as leis orgânicas, con- forme é mais adequado e muito importante na prática, só por uma razão. Houve um caso, em 2001, que transpareceu a ignorância, não só dos operadores po- líticos em Portugal, mas também dos meios de comunicação e conta-se muito simplesmente assim: a famosa lei da programação militar de 200151 – como lei orgânica, para ser aprovada, precisa de ser votada por maioria absoluta, ou seja, 116 Deputados52. Dá-se o caso em que as câmaras de televisão estavam ligadas e no dia da votação tinham assento na Assembleia pouco mais do que 70 Deputados e, sendo certo que 70 Deputados nunca serão 116, e, a agravar, nem todos votaram a favor. Em todo o caso, o diploma foi dado como aprovado por uma maioria absoluta, como é necessário.
Esse facto chamou a atenção dos media, foi notícia de abertura dos noti- ciários e deu azo a diversos debates de opiniões, aliás, todas muito interessantes de ouvir, quanto mais não fosse para colocar a descoberto alguma insuficiência no domínio do conhecimento da Constituição. Estaria em causa um acordo de cavalheiros, mas um costume constitucional contra legem53. Pois, em confe- rência de líderes54 quando se agendou a discussão e votação do projecto-lei em causa, acordou-se que a votação seria “por grupo parlamentar”. E que sig- nificava o quê? Significava que, se dez ou quinze Deputados daquele grupo de parlamentares votassem a favor, entendia-se que todo o grupo parlamentar em causa votava a favor. E terá sido isso que aconteceu. E mais: que em um caso desses, nunca se pediria a revisão da contagem de votos, a não ser que hou- vesse um requerimento à Mesa para o fazer55, mas, como os líderes já tinham acordado nessa linha, ninguém chegaria a esse ponto, e assim foi exactamente isso que aconteceu.
Nessa altura, o Primeiro-Ministro António Guterres disse: “Isso é uma questão de Parlamento e, portanto, o Governo não se vai imiscuir nos assuntos do Parlamento. Como tal, nada tem a ver connosco”. Evidentemente que o Primeiro-Ministro não tinha razão naquilo que disse, porquê? Porque a Cons- tituição atribui-lhe também o direito, quando estão em causa leis orgânicas, de desencadear a fiscalização preventiva. E o direito mesmo teria o PSD, cujo líder – Durão Barroso – tentou tirar dividendos políticos da situação, dado que nessa altura tinha mais de 1/5 dos Deputados à Assembleia da República para o fazer também. Isto porquê? Nos termos do n.º 5, o Presidente da Assembleia da República, na data em que envia ao Presidente da República o decreto, envia também para os grupos parlamentares e para o Primeiro-Ministro. No Parlamen- to, se uma força partidária tiver 1/5 dos Deputados, poderá per se desencadear
51 Lei Orgânica nº 5/2001, de 14 de novembro, que aprova a Lei de Programação Militar. 52 Art. 168.º, n.º 5, da CRP.
53 Quem defendia o efeito jurídico do costume contra legem era Marcelo Rebelo de Sousa e teve aqui um caso que favoreceu tal tese (Direito constitucional, Faculdade de Direito, Policopiado, 1979, p. 48).
54 Art. 94.º, n.º 3, do RAR.
55 Art. 98.º, n.º 4, do RAR.
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o processo (n.º 4 do preceito em causa)56. Nada impede que o quórum exigido seja formado por associação adrede de Deputados. Mas o Primeiro-Ministro pode, por si só, desencadear a fiscalização preventiva. O Presidente da Repú- blica, Jorge Sampaio, resolveu a questão, alegando justamente a palavra dada e, um gentlemen agreement e promulgou57.
Evidentemente que promulgou após ter decorrido o prazo de oito dias. Porquê? Se a Constituição atribuiu o mesmo poder a outras entidades, não fazia sentido que ele pudesse promulgar, imagine-se, ao fim de dois dias, visto que retirava o efeito útil que a Constituição atribui às outras entidades (art. 278.º, n.º 6, da CRP).
Assim, se o Primeiro-Ministro ou 1/5 dos Deputados desencadear a fis- calização preventiva, o Presidente da República não pode desistir dela58, uma vez que estamos ao nível das leis orgânicas59. Quanto ao resto, ele pode desistir, daí que, nos termos do n.º 7, sem prejuízo do disposto n.º 1, pretende significar o seguinte: “Se estivermos a falar de dados do n.º 1, o Presidente da República pode desistir. Dos outros, ou seja, o que estão referidos no n.º 4, isto é, as leis orgânicas, já não pode desistir”.
3 A FISCALIZAÇÃO SUCESSIVA
Falando agora da fiscalização sucessiva60.
A fiscalização sucessiva, como se disse há pouco, é uma fiscalização que ocorre depois da publicação, o que significa que podemos desencadear uma fiscalização sucessiva imediatamente a seguir da publicação do acto no Diário da República61, independentemente da entrada em vigor do diploma. Mas, du- rante esse período de vocatio legis, só pode ocorrer fiscalização sucessiva abs- tracta porque a concreta necessita de um caso em Tribunal e, se as normas não estão ainda em vigor, nunca podem ser aplicadas na prática e, portanto, nunca poderão dar origem a um conflito de interesses, a ser dirimido pelos Tribunais. E, portanto, durante esse período de vocatio legis, só pode haver fiscalização sucessiva abstracta, que é aquela que ocorre independentemente do processo judicial62.
56 Por uma questão de lógica cronológica, o texto do n.º 4 do art. 278.º da CRP devia ser o do n.º 5, e vice-versa.
57 Disponível em: <http://jorgesampaio.arquivo.presidencia.pt/pt/noticias/noticias/doc-672.html>.
58 Apesar do que dispõe o art. 53.º da LTC, que deve ser interpretada conjugadamente com o art. 278.º, n.º 7, da CRP.
59 Entendemos que essa impossibilidade ocorre, inclusive, quando é o próprio Presidente da República a desencadear a fiscalização preventiva.
60 Arts. 281.º da CRP e 57.º a 61.º Lei do Tribunal Constitucional.
61 O jornal oficial. Arts. 119.º, n.º 1, alínea c), da CRP e 1.º e 3.º da Lei de Publicação, Identificação e Formulário dos Diplomas, Lei nº 74/1998.
62 E ocorre por via principal.
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Por exemplo, foi a situação referente ao Código do Processo Civil63, em que se estabeleceu um curto período de vocatio legis longo, porventura, para a hipótese de alguém desencadear a fiscalização sucessiva abstracta. Onde, ao não retirar inconstitucionalidade que foi assinalada pelo Tribunal Constitucio- nal, por causa do regime da injunção, a inconstitucionalidade manteve-se para o novo Código do Processo Civil, o que sempre defendemos, a par do que en- tendia o Professor Lebre de Freitas64, e que, entretanto, foi decidido com força obrigatória geral pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 264/2015, de 12 de maio de 201565.
Repare-se, agora, em uma questão que ocorreu recentemente a propósito da lei do orçamento de 2013. O Presidente da República entendeu que, uma vez que nenhum outro Presidente da República alguma vez desencadeou a fis- calização preventiva da lei do orçamento, em face do costume e devido à crise financeira actual, não seria justificável a adopção de uma posição na história de Portugal e preferiu a posição histórica dos Presidentes da República precedentes e, portanto, não desencadeou a fiscalização preventiva da lei do orçamento.
Um parêntesis para dizer que julgamos que este entendimento de que a necessidade de Portugal de um orçamento seria imperiosa para Portugal com- bater e superar a crise que nos assolava e assola poderá não ser assim tão rele- vante como o próprio Presidente revelou na sua mensagem de Ano Novo: “O Orçamento entrou hoje em vigor, no primeiro dia do ano de 2013. Se tal não acontecesse, o País ficaria privado do mais importante instrumento de política económica de que dispõe e as consequências para Portugal no plano externo seriam extremamente negativas”66.
Ora, incorreu em erro, quer político quer jurídico, uma vez que há me- canismos jurídicos de execução e de salvaguarda orçamental e que vigoram enquanto um orçamento não é aprovado nos termos regulamentares67 e acresce que, nos termos do n.º 8 do art. 278.º da CRP, o Tribunal Constitucional tem 25 dias68 para se pronunciar, mas esse prazo pode ser encurtado pelo Presidente da República, desde que justifique esse encurtamento, o que era justamente o
63 Código de Processo Civil pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho de 2013, no DR 121, p. 3518, rectificada no DR 154 de 12.08.2013. Programada para entrar em vigor no dia 1º de setembro de 2013.
64 Veja-se, na Revista da Ordem dos Advogados, ano 73, v. I, jan./mar. 2013, sobre o novo Código de Processo Civil (uma visão de fora), p. 45/54.
65 Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150264.html>.
66 Disponível em: <http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=70860>.
67 Art. 58.º, n.º 4, da Lei nº 151/2015, de 11 de setembro, Diário da República, 1ª série, nº 178. Decreto-Lei nº 253/2015, de 30 de dezembro, Diário da República, 1ª série, nº 254, que estabelece o regime de execução orçamental duodecimal entre 1º de janeiro de 2016 e a entrada em vigor da Lei do Orçamento de Estado para 2016.
68 Questão pertinente prende-se com o facto de eventualmente o Tribunal Constitucional não respeitar esse prazo constitucional. À míngua de uma sanção constitucional, entendemos que se trata de uma mera irregularidade, uma vez que a inconstitucionalidade não prejudica a produção de efeitos da pronúncia, embora acople consequência jurídicas e que, in casu, traduz-se na possibilidade do Presidente da República poder promulgar imediatamente ou exercer o veto jurídico.
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caso. O Tribunal Constitucional tem de estar preparado para responder com ce- leridade quando o país exige dele esse trabalho, e teria sido possível obter uma pronúncia em tempo razoável a não prejudicar os interesses do país.
Simultaneamente, disse o Presidente da República: “Por minha iniciativa, o Tribunal Constitucional irá ser chamado a pronunciar-se sobre a conformida- de do Orçamento do Estado para 2013 com a Constituição da República”69, o que realmente ocorreu70.
Portanto, dentro da fiscalização sucessiva, temos a abstracta. E começando por aqui, importa desde já dizer que há entidades, previstas no n.º 2 do art. 281.º da CRP, bem elencadas, com o poder de a desencadear.
No entanto, em nossa opinião, falta adicionar aí uma que seria o basto- nário da Ordem dos Advogados. Faz todo o sentido que o bastonário da Ordem dos Advogados tenha o poder de a desencadear. Repare-se, que “o advogado está obrigado a defender os direitos, liberdades e garantias, a pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e instituições jurídicas”71.
Os advogados, por intermédio da sua Ordem, buscam “promover o aces- so ao conhecimento e aplicação do direito [e] contribuir para o desenvolvi- mento da cultura jurídica e aperfeiçoamento da elaboração do Direito”72. Os advogados não buscam decisões apenas legalistas, mas sim as que se revelem conforme o Direito e, portanto, têm até uma função muito mais abrangente do que alguns operadores judiciários. E, por essa razão, faria todo o sentido que, em uma próxima revisão constitucional, se incluísse o bastonário da Ordem dos Advogados, isso porque, vendo quem lá está, vê-se quem lá falta e, quem falta, é o bastonário da Ordem dos Advogados73.
Os cidadãos não têm a possibilidade de, directamente, desencadear a fiscalização sucessiva abstracta. Terão de o fazer sempre por interposta pessoa, usando do seu direito de petição (art. 52.º da CRP) e dirigindo a uma qualquer entidade, prevista no n.º 2 do art. 281.º da CRP, sendo certo que o mais natu- ralmente adequado, atendendo ao conteúdo e à natureza das suas funções, será o Provedor de Justiça (art. 23.º da CRP). Portanto, o cidadão74 deverá rogar-lhe,
69 Disponível em: <http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=70860>.
70 Essa temática será tema a que regressaremos porque algumas decisões do Tribunal Constitucional, designadamente os cortes de subsídios, foram relevantes e ainda hoje continuam a ser relevantes e objecto de estudo por parte da doutrina, mas já veremos.
71 Art. 90.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro.
72 Art. 3.º, alíneas h) e i), do EOA.
73 A Constituição da República de Angola no art. 230.º, n.º 2, alínea f), atribui tal competência à Ordem dos Advogados.
74 Note-se que um único cidadão detém essa prerrogativa constitucional.
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obviamente de modo fundamentando, que desencadeie a fiscalização sucessiva abstracta de determinada norma.
Por exemplo, também há cerca de três ou quatro anos, uma associação pretendia fundamentar uma iniciativa legislativa do cidadão (ILC)75 relativamen- te à aplicação do novo acordo ortográfico76 e pudemos emitir parecer demons- trando que não fazia sentido optar pela ILC, uma vez que o legislador tinha acabado de legislar em sentido contrário e era mais do que óbvio de que não iria contraditar-se tão pouco tempo depois. Fazia sentido, sim, desencadear a fiscalização sucessiva abstracta pedindo ao Provedor de Justiça que desencade- asse essa fiscalização sucessiva junto do Tribunal Constitucional, por violação do princípio da proporcionalidade.
Note-se que o Provedor de Justiça, caso o cidadão lhe peça para desen- cadear77, não é obrigado a fazê-lo. Em alguns pedidos, verifica-se a falta de fundamentação, sem rigor jurídico ou cuidado, fruto do nosso pouco activismo cívico. Ao contrário, por exemplo, de Inglaterra, em Portugal não há a propen- são do cidadão para se envolver com essas questões.
Desencadeada uma fiscalização sucessiva abstracta, o Tribunal Cons- titucional irá pronunciar-se. Desse modo, se for uma inconstitucionalidade originária (art. 282.º, n.º 1, da CRP), a declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade determinará igualmente a repristinação das normas eventualmente revogadas pelo acto nulo. Porque produz efeitos retroactivos, ex tunc, ou seja, desde que a norma foi aplicada. Isto porque a norma está inquinada originariamente em uma inconstitucionalidade e, portanto, se “des- de então” já era inconstitucional, evidentemente que o Tribunal Constitucional deve declarar essa inconstitucionalidade desde esse momento anterior, que, no
75 Com base no art. 167.º da CRP e na Lei nº 17/2003, de 4 de junho. Note-se, no paralelo, a nível da União Europeia. O Tratado de Lisboa veio introduzir uma nova apetência de democracia participativa na feitura de actos legislativos da União Europeia. A partir de 1º de abril de 2012, os cidadãos europeus detêm o direito de requerer legislação europeia em assuntos que lhes interessem, com a entrada em vigor da iniciativa de cidadania europeia. Os particulares podem pedir à Comissão que proponha iniciativas legislativas, desde que consigam recolher um milhão de assinaturas, de pelo menos sete Estados-membros, e que a proposta seja em matéria da competência da União Europeia, nos termos do Regulamento (UE) nº 211/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, sobre a iniciativa de cidadania que estabelece os procedimentos e as condições para a apresentação de uma iniciativa de cidadania, JOUE L 65 de 11.03.2011, p. 1 a 22. Alterado pelo Regulamento Delegado (UE) nº 268/2012 da Comissão, de 25 de janeiro de 2012, que altera o Anexo I do Regulamento (UE) nº 211/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a iniciativa de cidadania, JOUE L 89 de 27.03.2012, p. 1 e 2, e pelo Regulamento Delegado (UE) nº 887/2013 da Comissão, de 11 de julho de 2013, JOCE L 247 de 18 de setembro de 2013, rectificado no JOUE L 354 de 11.12.2014, p. 90.
A primeira iniciativa de cidadania europeia bem-sucedida em curso (depois de mais de 20 lançadas desde 2012), traduzindo o empenho e interesse dos cidadãos europeus em participar na elaboração das políticas europeias, foi sobre o tema “Comunicação da Comissão sobre a iniciativa de cidadania europeia – A água e o saneamento são um direito humano! A água não é um bem comercial, mas um bem público!”, no documento COM (2014) 177 final e o Parecer do Comité Económico e Social Europeu 2015/C 012/05, JOUE L 351 de 20.12.2012, p. 1 a 32.
76 Ver nota final.
77 Disponível em: <http://www.provedor-jus.pt/?idc=90>.
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caso, é inicial. E terá efeitos repristinatórios, ou seja, se essa norma, porventura, revogou outra, essa voltará a vigorar78.
Uma coisa interessante é a de saber como proceder se essa norma, entre- tanto, repristinada também o for, ela própria, inconstitucional. O Tribunal Cons- titucional também pode pronunciar-se quanto à questão da norma repristinada, mas sempre a pedido. Suponhamos que foi o Provedor de Justiça que desenca- deou a fiscalização sucessiva e o Tribunal decide-se pela “inconstitucionalida- de, com efeitos retroactivos e determina a repristinação das normas”79. Se agora, ou seja, perante essa decisão do Tribunal Constitucional, o Provedor de Justiça, apercebendo-se que a norma repristinada é também inconstitucional, ele tem que voltar a proceder da mesma forma, em mensagem ao princípio do pedido.
Se a fiscalização for superveniente, a norma em crise é totalmente sã relativamente à Constituição que estava em vigor, no momento em que foi feita e publicada. Entretanto, dá-se a publicação de um novo texto constitucional – lei de revisão80. Por efeito de uma nova revisão constitucional, e só a partir daí, essa norma tornou-se inconstitucional.
Evidentemente, que só releva nesse tipo de inconstitucionalidade a in- constitucionalidade material, porque a formal e a orgânica são regidas pelo acertado brocardo tempus regit actum, e o mesmo é dizer que o diploma é re- gido, quanto a esses aspectos, à luz da legislação (nesse caso, da Constituição) que se encontra em vigor na data em que o mesmo foi elaborado.
A ciência a seguir é a da aplicação dos números 1 e 2 do art. 282.º da
CRP.
legal.
Há que cuidar, em todo o caso, dos números 3 e 4 do mesmo preceito Assim, e pelo que reza o número 3, ficam ressalvados os casos julgados,
salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional, quando a norma respei- tar a matéria penal, disciplinar o ilícito de mera ordenação social e que seja de conteúdo menos favorável ao arguido. Aí, evidentemente, que o Tribunal Cons- titucional pode entender que, se essa norma, que é inconstitucional, desfavore- cia o arguido, deverão ser reconsiderados certos processos para se favorecer o arguido; caso contrário, ficam sempre ressalvados os casos julgados.
78 Entendemos que, quando o Tribunal conhece e declara a inconstitucionalidade originária de determinada norma, deverá, oficiosamente, mesmo que não lhe seja pedido, a repristinação das normas revogadas por aquela, uma vez que esse efeito jurídico é decorrência lógica da invalidade da norma revogatória, sem que, com isso, se viole o princípio da proibição de condenação em quantidade superior ou em coisa diversa da pedida. Com efeito, trata-se de matéria jurídica, pelo que é do conhecimento oficioso do Tribunal Constitucional, dado que a repristinação surge resultado ope legis ou ipso iuris.
79 A repristinação da norma revogada não carece de ser pedida, na medida em que, constituindo uma determinação legal, opera ipso iuris.
80 Art. 166.º, n.º 1, da CRP.
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A maior parte dos manuais de introdução de Direito afirma, categori- camente, que não há retroactividade de primeiro grau na ordem jurídica por- tuguesa. Todavia, erra por defeito, na medida em que ignora a norma em es- crutínio. Evidentemente que a retroactividade de primeiro grau não se verifica directamente, ope legis ou ipso iuris, mas porque está na lei, in casu, na lei constitucional, a qual permite, por decisão do Tribunal Constitucional, afectar os casos julgados. Poderemos dizer que o nosso ordenamento jurídico admite a retroactividade de primeiro grau. Mas é uma situação singular, dado que na maior parte dos casos, de facto, vale a não retroactividade de primeiro grau.
O n.º 4 art. 282.º da CRP foi utilizado há pouco tempo pelo Tribunal Constitucional (Acórdão nº 353/2012, de 5 de julho de 201281), e pensamos que parcialmente mal, em um caso de segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo (o qual deverá ser fundamentado).
Claudicou, em todo o caso, o Tribunal Constitucional, não medida em que não pode actuar como legislador, e nesse aresto fê-lo ostensivamente82. Por força do princípio da separação de poderes, o Tribunal Constitucional não pode apontar caminhos ao legislador. O Tribunal Constitucional, em um primeiro acórdão, apontou caminhos, designadamente dizendo que só se estava a tribu- tar rendimentos do trabalho e decorrentes do rendimento do trabalho e não, por exemplo, rendimentos do capital83. O Tribunal Constitucional não deve seguir uma via de aconselhamento84-85.
81 Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120353.html>.
82 Pode ler-se: “A diferença de tratamento é de tal modo acentuada e significativa que as razões de eficácia da medida adoptada na prossecução do objectivo da redução do défice público para os valores apontados nos memorandos de entendimento não tem uma valia suficiente para justificar a dimensão de tal diferença, tanto mais que poderia configurar-se o recurso a soluções alternativas para a diminuição do défice, quer pelo lado da despesa (v.g., as medidas que constam dos referidos memorandos de entendimento), quer pelo lado da receita (v.g. através de medidas de carácter mais abrangente e efeito equivalente à redução de rendimentos). As referidas soluções, podendo revelar-se suficientemente eficientes do ponto de vista da realização do interesse público, permitiriam um desagravamento da situação daqueles outros contribuintes que auferem remunerações ou prestações sociais pagas por verbas públicas” (Disponível em: <http://www. tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120353.html>).
83 “Ora, nenhuma das imposições de sacrifícios descritas tem equivalente para a generalidade dos outros cidadãos que auferem rendimentos provenientes de outras fontes, independentemente dos seus montantes.” (Idem)
84 Curiosamente, na Constituição polaca há uma norma que determina que, se o Tribunal Constitucional se aperceber que um diploma vai causar consequências económico–financeiras, designadamente colidir com a lei orçamental, deverá criar-se uma comissão ad hoc, em que participam o Tribunal Constitucional, o Governo e representantes dos trabalhadores.
A Constituição da Polónia, de 3 de maio de 1791, foi a primeira da Europa e a segunda do mundo, embora logo seguida da Constituição francesa, de 3 de setembro do mesmo ano. Recentemente, foi consagrada pela Decisão da Comissão 2015/C 83/03, de 10 de março de 2015, que designa os 16 sítios aos quais é atribuída a Marca do Património Europeu em 2014, JOUE C 83 de 11.03.2015, p. 3. A União Europeia criou, em 2011, uma acção de atribuição da designação da Marca do Património Europeu (European Heritage Label), que destaca patrimónios que comemoram e simbolizam a integração europeia, os ideais e a história da União Europeia, pela Decisão nº 1194/2011/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de novembro de 2011, JOUE L 303 de 22.11.2011, p. 1 a 9.
85 Dispõe o art. 190.º, n.º 3, segunda parte, da Constituição polaca: “Quando a decisão tenha consequências financeiras não previstas no orçamento, o Tribunal Constitucional deve especificar a data de cessação da força obrigatória do acto normativo em causa, após parecer do Conselho de Ministros” (tradução dos autores).
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A adopção dessa posição, julga-se, passou por dar um sinal do que pode- ria acontecer em decisões futuras e quis já marcar posição, apesar de tal capa- cidade não pertencer às suas funções86. O Tribunal Constitucional é o guardião do ordenamento jurídico, no plano constitucional, claro está, e, portanto, diz apenas: “Esta norma, conforme está, não entra no ordenamento”. Apenas pode vedar a norma e não deve apontar caminhos porque decisões de política legis- lativa cabem aos órgãos que a Constituição determinou, que são os órgãos com competência legislativa. O Tribunal Constitucional é o guardião e barómetro da constitucionalidade em Portugal.
Pelo número 4, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos de in- constitucionalidade ou da ilegalidade, com alcance mais restrito do que o pre- visto nos n.º 1 e n.º 2 do art. 282.º da CRP.
4 A FISCALIZAÇÃO SUCESSIVA CONCRETA
Agora falando da fiscalização sucessiva concreta87, aquela que, na práti- ca, preenche de forma mais intensa a actividade do Tribunal Constitucional88.
Para que surja, é necessário decorrer um processo em um tribunal judi- cial ou administrativo. Ocorre por via incidental, isto é, um incidente da instân- cia, o que significa que o pedido principal nunca pode corresponder ao pedido de declaração de inconstitucionalidade.
O recurso aos tribunais por partes das pessoas (físicas ou colectivas) tem como finalidade o dirimir de, pelo menos, um conflito de interesses, por exem- plo, para a extinção ou modificação de uma relação jurídica. Um exemplo mais concreto, imagine-se que o senhorio pretende cessar a vigência de um contrato de arrendamento, por incumprimento do arrendatário e este, quando é citado para se defender, querendo evitar o seu despejo, irá contestar a acção, contra- dizendo a causa de pedir e, em ultima ratio, o pedido principal. A propósito da sua defesa e em razão da matéria em causa pode surgir uma questão de incons- titucionalidade e convirá ao arrendatário argui-la.
Como é que se alega? Não há uma forma padronizada de o fazer. O Tri- bunal Constitucional considera que tem que ser suficientemente argumentado ao ponto de o juiz do processo se ver obrigado a pronunciar-se. O Tribunal Constitucional já admitiu um recurso, dizendo que estava suficientemente bem alegado, na medida em que o próprio juiz do processo sentiu a necessidade de
86 Houve já quem dissesse que por este aresto o Tribunal Constitucional pretendeu dar uma “prova de vida”.
Nesse sentido, Carlos Blanco de Morais, “As mutações constitucionais implícitas e os seus limites: autópsia de um acórdão controverso” (Separata de JURIS-MAT, Portimão, 2013, p. 62, nota 12).
87 Arts. 280.º da CRP e 51.º a 56.º da Lei do Tribunal Constitucional.
88 Por exemplo, “96% do total das decisões proferidas no âmbito normativo entre 1993 e 1996 respeitaram ao controlo concreto da constitucionalidade” (António de Araújo e J. A. Teles Pereira, “A justiça constitucional nos 30 anos da Constituição portuguesa: notas para uma aproximação ibérica”, Jurisprudência Constitucional, n. 6, p. 15, 2005).
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se pronunciar sobre aquela alegação. Assim, poderá formular-se um princípio geral a propósito dessa questão formulado nos seguintes termos: a alegação da inconstitucionalidade deverá ocorrer de modo a determinar o Tribunal a pronunciar-se sobre tal excepção89.
Depois, no próprio requerimento de requisição do recurso, a Lei Orgâ- nica do Tribunal Constitucional obriga que se indique a norma90, cuja inconsti- tucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie e em que peça processual surge a questão de alegada inconstitucionalidade91. Há ainda que fundamentar o pedido de declaração da pretensa inconstitucio- nalidade referindo a norma da Constituição ou do princípio constitucional ou legal que se supõe violado. Há, também, que identificar a peça processual, em que se questiona a constitucionalidade e ser claro na identificação da norma considerada inconstitucional face a que artigo da Constituição92.
Até o encerramento de uma audiência de julgamento, poder-se-á fazer um requerimento e dizer: “Alega-se a inconstitucionalidade da norma constante da segunda parte da alínea n do n.º x do art. y.º da Lei n.º n, na probabilidade de essa disposição vir a ser aplicada ao caso concreto”, no sentido de o juiz da causa não a aplicar. Porque o juiz ainda não decidiu e, portanto, quando for decidir a causa, pode justamente cuidar dessa inconstitucionalidade.
Importante é saber até que momento é que se pode pedir a declaração da inconstitucionalidade de uma certa norma aplicável ao judicativo processo. A esse propósito poder-se-á formular um princípio geral nos seguintes termos: a
89 O disposto no n.º 2 do art. 72.º da LTC contribui, sobremaneira, para o estabelecimento deste princípio ao determinar que a inconstitucionalidade deve ser arguida no processo e junto do tribunal “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (destaque nosso).
90 “[…] como é evidente, a jurisdição constitucional só conhece da inconstitucionalidade de normas e não de outros actos jurídicos. Em particular, o Tribunal Constitucional não pode conhecer da inconstitucionalidade de decisões judiciais, por elas eventualmente violarem directamente normas constitucionais. As decisões judiciais só são impugnáveis junto do TC na medida em que elas apliquem normas arguidas de inconstitucionais ou na medida em que não apliquem normas por razões de inconstitucionalidade” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 162/1988. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19880162. html>). A mesma doutrina em outro aresto do Tribunal Constitucional: “Na verdade, recurso para o Tribunal Constitucional só existe quando esteja em causa a inconstitucionalidade de normas jurídicas, e não também de actos jurídicos de índole diversa, como, v.g., actos administrativos ou decisões judiciais (sobre esta fundamental distinção, v. o Acórdão nº 26/85, no Diário da República, 2ª série, de 26 de abril de 1985). É isso o que clara e expressamente resulta, não apenas do teor do art. 280º da Constituição, mas de todo o conjunto de normas e princípios constitucionais respeitantes à fiscalização da constitucionalidade e à natureza e configuração do Tribunal Constitucional. Este é um órgão jurisdicional aí basicamente concebido para o controlo normativo; e se a Constituição, além de lhe haver atribuído outras funções (que aqui não vêm ao caso), permite ainda [art. 213º, nº 2, alínea e)] que o legislador alargue o respectivo quadro de competências, o facto é que este último, pelo menos até agora, e nomeadamente na Lei nº 28/1982, não estendeu esse quadro, no que toca ao controlo da constitucionalidade, para além do que se encontra estabelecido no diploma fundamental” (Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19850090.html>).
91 Art. 75.º-A, n.º 2, in fine, da Lei do Tribunal Constitucional.
92 Veja-se Isabel Alexandre, “A norma ou princípio constitucional ou legal violado como elemento do objecto dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade ou da legalidade” (Jurisprudência Constitucional, n. 6, p. 30, 2005).
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arguição da inconstitucionalidade terá que ser concretizada em momento que permita ao juiz do processo poder decidir93.
O Tribunal pode, note-se, oficiosamente declarar a inconstitucionalidade das normas. Imagine que um juiz julga aplicável determinada norma e detecta-
-lhe uma inconstitucionalidade, isto é, no seu entendimento, a norma padece uma inconstitucionalidade. Se assim for que, declare na sua decisão, a título prejudicial, a inconstitucionalidade da norma em causa. Com efeito, nos termos do art. 204.º da CRP, nos feitos submetidos a juízo, os tribunais não podem aplicar normas consideradas inconstitucionais.
Nesse caso, o Tribunal deverá recusar a aplicação da norma que jul- gue inconstitucional e, se estiver perante uma inconstitucionalidade originária, deverá repristinar a norma revogada pela declarada inconstitucional e decidir o caso de acordo justamente com a norma repristinada. Todavia, se não hou- ver lugar a repristinação, porque a norma inconstitucional não havia revogado qualquer outra, deverá verificar se o judicativo caso concreto poderá ser deci- dido com recurso às regras da interpretação94.
Poderíamos ser precipitados e entender que este art. 204.º da CRP é ta- xativo e não contempla as ilegalidades; todavia, há que interpretar esse preceito conjugadamente com os arts. 280.º da CRP e 70.º da LTC.
À parte que arguiu a inconstitucionalidade, o que lhe interessa é só mes- mo a decisão, porque é dessa decisão que lhe será possível interpor recurso, nos termos dos arts. 280.º da CRP e 70.º e seguintes da LTC.
Uma questão a ter em conta é que não se declara inconstitucionalidade de artigos ou preceitos, apenas declara-se a inconstitucionalidade de normas. Porventura, um artigo pode só conter uma norma, mas nem sempre. Tem de se indicar que se declara inconstitucionalidade da norma constante de determina- do artigo de certo diploma.
Por isso é que o Tribunal Constitucional, quando se declara a inconsti- tucionalidade com sentido interpretativo, ou seja, indicando o sentido que é conforme com a Constituição ou indicando o sentido que é inconstitucional, indica expressa e exactamente isso.
Com efeito, não é razoável que as normas sejam inconstitucionais. É su- posto justamente o inverso, ou seja, que a ordem jurídica não detenha normas inconstitucionais. A função judicial, na sua actividade quotidiana de dirimir conflitos de interesses mediante a aplicação do direito, deve presumir que o di-
93 Note-se que a parte final do n.º 2 do art. 72.º da LTC é decisiva quanto a esse aspecto, ao determinar que a inconstitucionalidade deve ser arguida no processo e junto do tribunal “em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
94 Por todos, vide J. Baptista Machado, Introdução ao direito e ao discurso legitimador (2. Reimp., Coimbra: Coimbra, 1987, p. 192 e ss.).
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reito forma um todo correcto, perfeito, justo e conforme a Constituição. Assim, quando se detecta uma inconstitucionalidade, ela surge como uma excepção, sempre por via incidental, e sempre por meio de um incidente da instância inominado para resolver.
Se for suscitada a inconstitucionalidade de alguma norma e o tribunal judicial ou administrativo entender que efectivamente se verifica a inconstitu- cionalidade, não deverá aplicar a norma95, sendo que neste caso o Ministério Público, nos termos do n.º 3 do art. 280.º da CRP e art. 72.º, n.º 3, da LTC, é obrigado a recorrer para o Tribunal Constitucional, recorrendo directa e ime- diatamente96.
Havendo essa quebra de adesão ao direito, ainda que legítima e justifica- da, por essa via, a Constituição determina o recurso imediato, de forma a resol- ver logo essa questão, para não poder sentir-se quebra da confiança jurídica. O Tribunal Constitucional vai poder confirmar ou entender diversamente do juiz, e vai fazê-lo imediatamente em termos processuais.
Todavia, acrescente-se que o Ministério Público só recorre directamente quando estão em causa os diplomas previstos: actos legislativos, tratados e de- cretos regulamentares, ou seja, só diplomas que dependem da promulgação do Presidente da República. Os restantes diplomas, isto é, os não catalogados no n.º 3 do art. 280.º da CRP, não ficam, ipso iuris, abrangidos pela previsão do n.º 4 do mesmo preceito, isso porque, interpretando, uma vez mais, a contrario da norma constante do art. 70.º, n.º 2, da LTC, que não obriga ao esgotamento de todos os patamares de recurso ordinário, devemos concluir que o recurso das partes, com legitimidade, deverá ser interposto directamente junto do Tribunal Constitucional97.
Se ao processo couber recurso, e a arguição da inconstitucionalidade não tiver acontecido logo na primeira instância, não estão as partes impedidas
95 “III – Constitui violação da reserva do juiz, já que atribui poderes quase automáticos de composição definitiva a uma entidade administrativa, estando vedada a sindicabilidade da aposição da fórmula executória. IV – Deve assim entender-se que o n.º 2 do art. 814.º do Código de Processo Civil viola o disposto nos arts. 20.º, n.º 4, e 202.º, n.º 4, e 202.º, n.º 1, da CRP, devendo, ao abrigo do disposto no art. 204º da CRP, com fundamento em inconstitucionalidade material, ser recusada a aplicação daquele normativo. V – A desaplicação do n.º 2 do art. 814.º do Código de Processo Civil, com fundamento em inconstitucionalidade material conduz a que seja admissível a invocação de factos impeditivos em oposição a acção executiva fundada em requerimento de injunção a que foi aposta a fórmula executória.” (Acórdão da Relação de Lisboa (Maria Amélia Ameixoeira), de 06.12.2012. Disponível em: <www.dgsi.pt>)
96 As partes também poderão, nesse caso de recusa de aplicação de norma julgada inconstitucional, recorrer directamente para Tribunal Constitucional, considerando-se suspensos todos os prazos de interposição de outros recurso que porventura coubessem ao caso, conforme dispõe o n.º 1 do art. 75.º da LTC. E tal regime decorre da interpretação a contrario da norma constante do art. 70.º, n.º 2, da LTC, que não obriga ao esgotamento de todos os patamares de recurso ordinário. Em todo o caso, as partes não são obrigadas a recorrer directamente, pois podem ter outros e mais valiosos argumentos (do ponto de vista do processo concreto) para interporem o recurso ordinário cabível ao processo em causa.
97 É estranha a solução, uma vez que, nesse caso, o Ministério Público não poderá recorrer directamente para o Tribunal Constitucional, a não ser que seja parte no processo e detenha legitimidade e interesse em agir.
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de arguir no recurso, porque o art. 204.º da CRP também se aplica aos tribunais superiores, e, portanto, nas alegações e nas conclusões de recurso, pode-se justamente alegar a inconstitucionalidade pretendida.
Pelo n.º 5 do art. 280.º da CRP e art. 72.º, n.º 3, da LTC, o Ministério Público é obrigado98 a recorrer das decisões que apliquem norma caso o Tribu- nal Constitucional99 já se pronunciara pela inconstitucionalidade da norma100. Note-se que há uma decisão (anterior) do Tribunal Constitucional que, como órgão especializado, já julgou inconstitucional certa norma, daí que, se um juiz “comum” contrariar a decisão do Tribunal Constitucional, há que pacificar essa fissura no ordenamento jurídico e, portanto, também aqui o recurso do Ministé- rio Público é obrigatório e directo para o Tribunal Constitucional.
A parte ad cautelam poderá fazer um requerimento ao processo, dizendo que a decisão em causa dispõe em sentido contrário a um acórdão do Tribu- nal Constitucional (identificando-o) e, portanto, requer que seja dada vista ao Ministério Público para recorrer. Poderá também recorrer e recorre tal qual o Ministério Público, ou seja, directamente para o Tribunal Constitucional101.
É importante que as questões concretas sejam levadas ao Tribunal Consti- tucional, porque, pelo n.º 3 do art. 281.º da CRP102, ao fim de três casos concre- tos em que o Tribunal decida sempre da mesma forma, ou seja, sempre pela in- constitucionalidade de uma norma em casos de fiscalização concreta, poderá103
98 O Ministério Público é ainda obrigado a recorrer quando: i) há uma decisão positiva de inconstitucionalidade de norma constante de convenção internacional, de acto legislativo ou de decreto regulamentar (art. 280.º, n.º 3, CRP e art. 72.º, n.º 3, da LTC); ii) uma decisão recusa a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional; e iii) o Tribunal Constitucional vier a julgar a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso para o plenário do Tribunal, quando o Ministério Público intervier no processo como recorrente ou recorrido (art. 79.º-D, n.º 1, da LTC).
99 Ou da Comissão Constitucional, nos termos do art. 70.º, n.º 1, alínea h), da LTC.
100 Aqui cabem as decisões de pronúncia proferidas no âmbito da fiscalização preventiva da constitucionalidade e que não impossibilitaram a entrada em vigor do diploma e da(s) norma(s) julgadas inconstitucionais (art. 279.º, n.º 2, da CRP).
101 Está aqui em causa a aplicação do princípio da igualdade de armas, sendo certo que o art. 280.º, n.º 4, só se aplica aos casos em que a parte argui a inconstitucionalidade e não há procedência desta excepção. O art. 70.º, n.º 2, da LTC apenas obriga a esgotar os patamares de recurso nos casos das alíneas b) e f) do n.º 1, e não neste caso, pois dispõe expressamente que “os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam” (destaque nosso). A igualdade de armas justifica a posição exposta no texto, pois decorre do art. 20.º da CRP e do art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Jornal Oficial das Comunidades Europeias, C 364/1 (Disponível em: <http://www.europarl. europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf>). É também preconizado como princípio pelo Ali/Unidroit Principles Of Transnational Civil Procedure, ponto 3 (Procedural Equality of the Parties) (Disponível em: <www.unidroit. org/instruments/transnational-civil-procedure>).
102 E art. 82.º da Lei do Tribunal Constitucional.
103 Note-se que é um poder-dever, mas não há uma obrigação concreta, determinada por norma imperativa, antes pelo contrário, por força do art. 82.º da LTC claramente que a norma em causa é dispositiva facultativa.
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decidir pela declaração, com a força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma. Ao fazê-lo, fá-lo-á com os efeitos previstos no art. 282.º da CRP.
5 A INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO
Por último, apenas uma menção à inconstitucionalidade por omissão, que é um mecanismo que apenas alerta o legislador para ter que legislar, não há efeitos adicionais, visto o art. 283.º da CRP104. Passam-se anos sem que essa via seja utilizada105.
6 NOTA FINAL
Pretendeu-se apresentar uma abordagem aos elementos constituintes do sistema de fiscalização da constitucionalidade, em uma abordagem preparató- ria do estudo para o exame de ingresso no Centro de Estudos Judiciários. Deixa-
-se alguma bibliografia indicada para o efeito.
Outra vertente necessária, mas que não foi aqui focada, é o estudo da temática relativa aos direitos fundamentais.
O texto apresentado foi escrito de acordo com a antiga ortografia, prévia ao acordo ortográfico106.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRE, Isabel. A norma ou princípio constitucional ou legal violado como elemento do objecto dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade ou
104 E arts. 67.º e 68.º LTC.
105 Veja-se o estudo em Ana Catarina Santos, Papel político do tribunal constitucional (2011, p. 230).
106 Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, convenção internacional assinada pela Academia das Ciências de Lisboa, Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Publicado no DR 193, I-A Série, de 23 de agosto de 1991, p. 4370 a 4388, foi ratificado pela Resolução da Assembleia da República nº 35/2008, de 16 de maio no DR 145, I Série, de 29 de julho, p. 4802, e pelo Decreto do Presidente da República nº 52/2008, de 29 de julho. A Resolução da AR prevê um período de transição pelo prazo de 6 anos para adopção oficial da nova ortografia, a contar de 13 de maio de 2009, data do depósito do instrumento de ratificação, segundo o Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros nº 255/2010, de 17 de setembro, no DR 182, I Série, p. 4116.
O Comunicado do Conselho de Ministros de 9 de dezembro de 2010 indica o conversor Lince como ferramenta gratuita de conversão ortográfica para a nova grafia (Disponível em: <www.portaldalinguaportuguesa.org>) e a Resolução do Conselho de Ministros nº 8/2011, de 25 de janeiro de 2011, aprovou a introdução da nova grafia a partir do ano lectivo de 2011/2012 por meio de uma adopção gradual do processo de conversão ortográfica.
As instituições, os órgãos e os organismos da União Europeia decidiram aplicar, a partir de 1º de janeiro de 2012, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. A partir dessa data, os textos publicados no Jornal Oficial da União Europeia foram redigidos segundo as regras da nova ortografia. Aviso constante do respectivo Jornal Oficial no mês de dezembro (nomeadamente JOUE C 350 de 01.12.2011 e C 351 de 02.12.2011).
O prazo de transição de 6 anos, a ter-se contado desde a data do depósito internacional da ratificação, terminou, então, a 13 de maio de 2015. Porém, nos termos do art. 119.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da CRP, só a publicação publicita e valida o acto de depósito, pelo que só aí se poderia ter começado a contar o prazo que só terminaria, por esse entendimento e com a vacatio legis de 5 dias, em 22 de setembro de 2016.
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Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, Lei nº 28/1982, de 15 de novembro, atualizada na versão da Lei Orgânica nº 1/2011, de 30 de novembro.
Lei da Publicação dos Diplomas – Lei nº 74/1998, de 11 de novembro (com a 4ª altera- ção pela Lei nº 43/2014, de 11 de julho, DR nº 132, 1ª série, p. 3805 a 3810).