AS INCURSÕES DO JUDICIÁRIO NA ESFERA LEGISLATIVA
Sergio Victor Tamer
O Supremo Tribunal Federal, no Brasil, nos últimos meses, tomou algumas posições de acesa polêmica, ora ultrapassando a sempre tênue linha que demarca a separação dos poderes e os atos políticos-jurídicos que lhes são inerentes, ora mitigando garantias expressas no texto constitucional – dentre as quais a da presunção de inocência -, ao estatuir que esta não se configuraria, em si, como obstáculo à execução da pena enquanto pendente de apreciação os recursos especial e extraordinário.
Por seu turno, as prisões preventivas e as medidas cautelares em nome da ordem pública têm sido utilizadas aos borbotões, muitas vezes em nítido atropelo constitucional, mas invariavelmente acompanhadas de excitantes espetáculos midiáticos. O respeitável público, majoritariamente, gosta e aplaude.
Muitos debates acadêmicos e doutrinários que já ocorreram até aqui, tratando sobre essa temática, nos dão bem a dimensão do imbróglio jurídico-constitucional que se formou e que está a desafiar, sobretudo, a argúcia de juízes e advogados.
Não estamos falando – é bom que se ressalve – de omissões legislativas, nem tampouco de normas programáticas que exigem o esforço criativo e constitutivo das decisões judiciais na direção das garantias e dos direitos fundamentais, sobretudo no campo dos direitos sociais, mas sim de decisões que fazem o caminho inverso, afrontando princípios constitucionais garantistas e que nem o “judicial ativism” ousaria tanto!
Os exemplos são muitos e se repetem com frequência preocupante. Sob a égide da primeira Constituição republicana, Rui Barbosa dizia que “a Justiça não pode conhecer de casos que forem exclusiva e absolutamente políticos, mas a autoridade competente para definir quais os casos políticos e os não políticos é justamente essa Justiça suprema”. O constitucionalismo evoluiu e hoje todos os atos jurídico-políticos sujeitam-se à Constituição e, por consequência, ao exame do Poder Judiciário, o qual tem o poder-dever de velar pela constitucionalidade. Dessa forma, tem-se como premissa que nenhum ato do Poder Público deixará de ser examinado pela Justiça, quando arguido de inconstitucional ou de lesivo a direito subjetivo de alguém. A questão, porém, ilustrada acima e que se critica nessa nova postura do STF está no seu ativismo “às avessas”, isto é, em uma interpretação enviesada da Constituição, quando o STF adentra no conteúdo do ato e valora seus motivos, sob o vago argumento de “interesse público”…
Ao STF compete examinar a legitimidade do ato no seu assento constitucional ou legal, ou seja, quando contraria princípios fundamentais e preceitos constitucionais. Não é o que vem ocorrendo a exemplo das bombásticas, midiáticas e discutidas decisões recentemente tomadas. Isso vale, também, para os demais tribunais de cúpula que seguem parâmetros semelhantes. Os poderes estão em crise e a contenção entre eles tem sido feita na base da “desobediência heroica”. Mas os ministros do STF não podem continuar a agir e decidir pelo “clamor das ruas” ou pela maciça campanha midiática contra ou a favor de determinado tema. Convicções pessoais não podem emprestar ao texto constitucional o alcance que ele não tem. A supremacia constitucional é que deverá prevalecer!
Por sua vez o modelo garantista de que nos fala Ferrajoli é uma ampliação do significado de “garantias” justamente no âmbito do direito penal. Ao surgir na cultura italiana de esquerda na segunda metade dos anos setenta, o garantismo aparece associado à tradição clássica do pensamento penal liberal. É típico, pois do iluminismo jurídico, da tutela do direito à vida, à integridade e à liberdade pessoal frente ao poder punitivo. Assim, garantismo e direito penal mínimo são termos sinônimos que expressam um modelo teórico e normativo de direito penal que intenta minimizar a violência da intervenção punitiva.
Dessa maneira, ao falar do fundamento democrático da legitimização do poder punitivo, Ferrajoli afirma que se o significado de “democracia” equivalesse à “vontade da maioria”, ficaria excluída toda possibilidade de fundar uma axiologia democrática e garantista do direito penal. Assim, a legitimação do poder judicial não é “democrática” se a entendemos somente como vontade da maioria, pois o próprio Norberto Bobbio já se referiu ao tema dizendo que “a batalha pelo garantismo sempre foi uma batalha da minoria”. É nesse ponto que Ferrajoli afirma que “não se pode condenar ou absolver a um homem porque convém aos interesses ou à vontade da maioria. Nenhuma maioria, por esmagadora que seja, pode fazer legítima a condenação de um inocente ou a absolvição de um culpado”. É princípio assente, portanto, nas democracias, que o devido processo legal, como garantidor dos princípios constitucionais e processuais, é que torna justa e legítima a aplicação da pena ou a absolvição do réu, restando os demais procedimentos como típicos dos tribunais de exceção.
Ora, a democracia que queremos no âmbito jurídico-político não é a democracia das maiorias volúveis, mas a democracia constitucional, ou “de direito”, a qual faz referência não à maioria, senão “ao que” é o que não pode decidir nenhuma maioria, nem sequer por unanimidade, situação em que as constituições democráticas convencionaram subtrair à vontade da maioria, nomeadamente no campo dos direitos fundamentais. As garantias, incorporadas nas constituições, são como fontes de legitimação jurídica e política das concretas decisões no âmbito penal. Nesse ponto, apoiado no pensamento de Dworkin, o autor de “Democracia e garantismo” afirma que precisamente porque os direitos fundamentais e suas garantias são “direitos e garantias frente à maioria”, também o poder judicial, a quem se encomenda sua tutela, deve ser um poder virtualmente “frente à maioria”.
A leitura do mestre italiano serve de reflexão, nestes tempos de vaidades exacerbadas e de busca de protagonismos midiáticos, onde medra a prática de um “punitivismo populista”, para que nossos juízes do STF não caiam na tentação de fazer uma espécie de “ativismo judicial às avessas”, pois, ao atropelar os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, acabam por retirar perigosamente a legitimidade da jurisdição.
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Sergio Victor Tamer é professor e advogado, presidente do CECGP, mestre e doutor em Direito Constitucional, e autor dos livros: “Atos Políticos e Direitos Sociais nas Democracias”; “Fundamentos do Estado Democrático e a Hipertrofia do Poder Executivo no Brasil” (Fabris Editores, Porto Alegre); “Legitimidad Judicial en la Garantía de los Derechos Sociales” (Ed. Ratio Legis –ES).