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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

O início do cumprimento da pena de prisão, por Carlos Nina

 

O início do cumprimento da pena de prisão

Carlos Nina*

O açodamento causado por fanatismo, ignorância, paixão e radicalismo não permite que os sujeitos dominados por quaisquer dessas circunstâncias reflitam sobre a questão suscitada pelo habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para evitar o início do cumprimento da pena de prisão a que foi condenado.

Não cabe nesta reflexão analisar o mérito da condenação. Qualquer jurista sabe que para emitir uma opinião sobre uma decisão é necessário conhecer todo o processo. A não ser para opinar em tese, o que não é a mesma coisa. Fazer isso aludindo a qualquer caso pode ser tendenciosidade.

A jurisdição do juiz federal Sérgio Moro

Aquela influência não permite sequer que as pessoas entendam que o juiz federal Sérgio Moro, que condenou o ex-Presidente na primeira instância, não escolhe as pessoas e os fatos que julga. Só decide sobre o que lhe compete o ordenamento jurídico. Não pode, portanto, aquele magistrado, alcançar condutas alheias à sua jurisdição.

Interesse sobre início da pena de prisão

A fixação do início do cumprimento da pena de prisão não era assunto de interesse da população. Veio à tona com o julgamento no STF do HC do ex-Presidente.

Eu mesmo, como estudante de Direito, Promotor de Justiça, Juiz de Direito, já retornado à advocacia e atuante perante o Tribunal do Júri, não havia até então refletido detidamente sobre os fundamentos jurídicos do início do cumprimento da pena, embora defendesse que tal se deveria dar apenas após o trânsito em julgado da decisão condenatória, salvo se o condenado optasse em iniciar logo seu cumprimento.

O julgamento do HC do ex-Presidente no STF fez-me refletir sobre o caso, independentemente das motivações jurídicas, políticas ou outras que tenham ensejado os votos dos ministros. Uns mais, outros menos, todos levantaram questões que fizeram cada telespectador da longa sessão pensar no assunto.

Casuísmo

Duas semanas antes, o STF já havia tomada uma decisão inusitada, sem qualquer previsão legal, que foi conceder um salvo conduto ao ex-Presidente, apenas porque seu HC não tinha sido julgado. Os advogados sabem que nenhum Tribunal do País concede esse benefício a seus constituintes.

Então, é inegável a inconstitucionalidade do privilégio dado ao julgamento desse HC. Inúmeros outros estavam na fila e nela continuarão, indefinidamente, mesmo tratando-se de pessoas presas, algumas até sem condenação e até sem sequer denúncia. Pior: em condições carcerárias absolutamente contrárias às leis vigentes, sob o beneplácito do Poderes Públicos, do Ministério Público, da Defensoria Pública e de instituições como a OAB, que se ouriçam quando a situação envolve alguém que abre os espaços da mídia.

O voto da ministra Rosa Weber

Tratando especificamente do mérito do referido HC, o voto da ministra Rosa Weber foi uma rica aula de Lógica, Direito, Direito Penal e Processual e, acima de tudo, de coerência, apesar do suspense até o final.

Com o caso todos ficaram sabendo que o STF, em 2016, contra o entendimento e o voto da ministra Rosa Weber, adotou a posição de que o início do cumprimento da pena de prisão poderia ser determinado a partir da condenação em segunda instância. Ou seja, a partir daquela decisão do STF, a alegação de trânsito em julgado da decisão condenatória, como requisito para início do cumprimento de pena, não tinha mais cabimento após o julgamento do recurso de apelação criminal.

Todos ficaram sabendo, também, que há duas ações no STF objetivando a revisão desse entendimento.

O caso concreto do HC

O HC do ex-Presidente era contra uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e poderia até suscitar a rediscussão da posição do STF sobre o tema. Mas se tratava de um caso concreto. A questão efetivamente posta era: o Supremo Tribunal Federal poderia reformar a decisão do Superior Tribunal de Justiça que negou o habeas corpus ao ex-Presidente se esta foi tomada com base no entendimento do próprio Supremo?

Poder, poderia. Tanto que cinco ministros votaram nesse sentido. Aí surge outra questão: onde estará a segurança jurídica se o Supremo, que é intérprete da Constituição, muda suas posições de acordo com a parte envolvida?

Violação ao princípio da igualdade

Dizer que não se tratou disso – casuísmo – seria tentar tapar o sol com peneira, pois a própria ministra Rosa Weber informou que já havia negado 57 habeas corpus depois da decisão de 2016 do STF. E o fez da mesma forma como julgou o do ex-Presidente: com base no entendimento da Corte, mesmo contra sua posição pessoal. Nenhum desses casos, porém, ensejou o debate do tema. Não causou sequer de indignação!

O Supremo não julga só habeas corpus. Quantas outras vezes o STF já terá julgado ou julgará temas relevantes para a sociedade, mudando sua posição para atender interesses que violam o elementar princípio da igualdade?

Norma e dispositivo

A reflexão que fiz sobre o tema, provocado pelas argumentações expostas naquele julgamento e ponderações que me foram feitas pelo professor Alberto Tavares Vieira da Silva, ex-ministro, instalador e primeiro presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, e pelo advogado e cientista político Nelson Paes Leme, ex-orador do Instituto dos Advogados Brasileiros, levou-me a releituras de Becaria, Bobbio, Carnelutti, Cossio e Kelsen e a atentar para o fato de que o dispositivo constitucional que fala do trânsito em julgado não pode ser considerado isoladamente, mas em conjunto com outros, que, sistemicamente, compõem a norma aplicável.

Uma norma não é um dispositivo, mas o que se extrai de vários dispositivos e princípios vigentes no ordenamento jurídico. Ademais, o dispositivo constitucional que trata do trânsito em julgado nem fala em prisão, mas em conceito de culpa: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Art. 5º, LVII). A mesma Constituição prevê também a prisão por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, independentemente de condenação: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (Art. 5º, LXI).

Se, portanto, a Constituição assegura ao Poder Constituído mandar prender, sem condenação, por que não poderia tal Poder determinar a prisão de quem já estivesse condenado, se a decisão for fundamentada nas mesmas previsões legais para a hipótese do inciso LXI?

Além do mais, o inciso LVII não veda a prisão antes do trânsito em julgado, mas a qualificação de condenado, em definitivo.

Estímulo à impunidade e incremento da criminalidade

Concluo, assim, que a decisão do STF não obriga o início do cumprimento da pena a partir da condenação em segunda instância. Mas não pode vedá-la, se assim tiver sido determinado em decisão legalmente fundamentada.

Se o STF vedar o início do cumprimento da pena determinado na segunda instância, destoará das regras vigentes no ordenamento jurídico de países civilizados, estimulará a impunidade e intensificará de forma indescritível a criminalidade, especialmente a corrupção, a violência e o terrorismo que já atormentam a população.

 

Do lado errado das grades

Quanto à polêmica no STF, a revisão de sua posição pode até beneficiar o ex-Presidente, mas não será só por causa dele que será feita. Ele é apenas o biombo que encobre outros condenados, já sob custódia estatal, e os corruptos que ainda estão no lado errado das grades, até agora impunes, usando e abusando do exercício dos Poderes, chafurdando para locupletar-se à custa de chantagem, negociatas com recursos públicos e privados e espoliação dos contribuintes tributários.

Polícia, Ministério Público

Alcançá-los não é tarefa exclusiva do juiz federal Sérgio Moro, mas de muitos outros a quem compete julgar os crimes sob sua jurisdição. E os há, muitos, pelo País afora. Magistrados e tribunais. Só dependem da atuação eficiente e eficaz das polícias e do Ministério Público.

Extinção do foro privilegiado e Constituinte

Extinguir o foro privilegiado seria uma simples alteração normativa, mas de alcance inestimável, pois tiraria dos Tribunais e, especialmente do STF, o julgamento dos suspeitos mais perigosos, pelo poder que concentram em suas mãos e mentes criminosas.

Tal medida, porém, depende do Congresso, que só legisla visando interesses pessoais. Extinguir o foro privilegiado seria como dar um tiro no pé.

Não o farão. A esperança pode estar na Constituinte.  Não novamente congressual, como a que tivemos na década de 1980. Mas uma Constituinte Originária, Exclusiva, Autônoma, como vem sendo defendida pelos juristas Modesto Carvalhosa e Nelson Paes Leme.

 *Advogado