Política de cuidados em saúde de pessoas que vivem e convivem em prisões: as principais diretrizes nacionais e os aspectos relevantes das medidas de salvaguardas implementadas
Policy on health care for people living and living in prisons: the main national guidelines and relevant aspects of the safeguards measures implemented
Railander Quintão de Figueiredo[1]
Silvia Helena Tedesco[2]
Resumo:
São diversas as salvaguardas previstas no sistema normativo brasileiro e internacional, definindo o direito à saúde como universal. Nessa direção, a justiça criminal, em interfaces com a política de saúde pública, produziu medidas de salvaguardas importantes que objetivam garantir às pessoas custodiadas pelo Estado brasileiro o acesso às redes de atenção, em seus diversos serviços e programas. O artigo sintetiza resultados de uma pesquisa empírica realizada junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ), com o objetivo de promover a revisão da Política Nacional para Atenção Integral à Saúde da Pessoa Privada de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP). De cunho colaborativo e concebida por meio de análise documental e observação participante, a pesquisa evidenciou a relevância dessa política de cuidados como um paradigma que tem levado propiciado o acesso de parte importante da população custodiada ao SUS e interferido positivamente nos contextos prisionais, humanizando-os.
Palavras-chave: Justiça Criminal, Saúde Pública, Prisões.
Abstract:
There are several safeguards foreseen in the Brazilian and international normative system, defining the right to health as universal. In this direction, criminal justice, in interfaces with the public health policy, has produced important safeguards measures that aim to guarantee to the people guarded by the Brazilian State the access to the networks of attention, in its various services and programs. The article summarizes the results of an empirical research carried out with the United Nations Development Program (UNDP) and the Ministry of Justice and Public Security (MJ), with the objective of promoting the revision of the National Policy for Comprehensive Care Health of Persons Deprived of Liberty in the Prison System (PNAISP). Collaborative and conceived through documentary analysis and participant observation, the research evidenced the relevance of this care policy as a paradigm that has led to the access of an important part of the population guarded to the SUS and interfered positively in the prison contexts, humanizing them.
Keywords: Criminal Justice, Public Health, Prisons.
1. INTRODUÇÃO
Ao observamos as realidades das prisões, com os riscos sanitários, as impropriedades em formas de aplicação da sanção penal e a escassez de medidas de salvaguardas destinadas às pessoas custodiadas[3] em grande parte das unidades, com seus efeitos residuais na vida pós-prisional e na sociedade, compreendemos que o sistema público e a sociedade, sendo os produtores dessas realidades, devem buscar alternativas que não sejam baseadas em critérios punitivistas e de exclusão social. A intensa política de encarceramento e as ambiências inadequadas das prisões reduzem as possibilidades de criação de condições saudáveis, tornando difícil a superação de doenças e agravos decorrentes das passagens (breves ou longas) de sujeitos sob custódia e de trabalhadores em serviços penais nesses contextos.
A saúde, entendida como “salvação e conservação da vida” (do latim salute), como bem definida na Carta de Ottawa (OMS, 1986), é “um conceito positivo, que enfatiza os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas”, que dependem de “condições e os recursos fundamentais para a saúde” tais coo paz, moradia, educação, alimentação, renda, justiça social, equidade, dentre outros. Mas, como atender às necessidades de saúde de pessoas em prisões brasileiras, dadas as suas comuns e trágicas realidades, e propiciar essas condições de vida seguras e saudáveis?
A nossa abordagem considerou as iniciativas para atenção à saúde da população privada de liberdade no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), conduzidas sobretudo pelos Ministérios da Saúde (MS) e da Justiça e Segurança Pública (MJ).
Esses esforços, a partir do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), instituido pela Portaria Interministerial MS/MJ nº 1.777, de 09/09/2003, levaram à Política Nacional para Atenção Integral à Saúde da Pessoa Privada de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), por meio da Portaria Interministerial MS/MJ nº 01, de 02/01/2014, esta alicerçada na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), consignada na Portaria MS/GM nº 2.488, de 21/10/2011. Criando interfaces entre a execução penal e a saúde coletiva, a PNAISP pretende viabilizar a inclusão dos custodiados no SUS e contribuir para transformação das realidades das prisões e para redução do quadro intenso de violação de direitos vivida pelas pessoas que nelas se encontram[4].
Assim, pudemos realizar um trabalho avaliativo junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), entre 2016 e 2017, como parte do Projeto de Cooperação Internacional BRA 14/011 (MJ e PNUD, 2014), sob a coordenação do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Essa pesquisa empírica objetivou buscar conhecimentos acerca das experiências inerentes à PNAISP e propor melhorias, evidenciando as interações entre o SUS e os sistemas prisionais e seus aspectos facilitadores e obstaculizadores.
A metodologia foi efetivada em dois eixos: análise documental; e observação participante.
Com a análise documental, textos legais, relatórios e planos foram estudados, enfatizando-se práticas de cuidado, processos de gestão junto às redes de saúde, implementação de estratégias de justiça, dentre outras. Além disso, foram utilizadas notas de campo e registros históricos do processo de avaliação do PNSSP e de constituição da PNAISP, elaborados ao longo dos nossos trabalhos consultivos no MJ e no MS, entre 2009[5] e 2013.
Foram utilizadas duas fontes oficiais que traduziam relativamente as realidades dos sistemas de execução penal: o Sistema de Informações Penitenciárias (INFOPEN), com dados consolidados em dez/2014 (MJ, 2016a), retratando 1.436 unidades prisionais, em 970 municípios, e 584.758 custodiados; e o Cadastro Nacional de Informações sobre Estabelecimentos Penais (CNIEP), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com os resultados das inspeções periódicas em prisões realizadas por juízes da execução penal, registrando 2.763 unidades, em 1.782 municípios, e 649.167 custodiados (CNJ, 2016).
Os dados do INFOPEN apresentaram-se limitados: o número de unidades de custódia e de municípios que as abrigava era insuficiente. Já o CNIEP (CNJ, 2016) foi mais representativo, pois permitiu a crítica aos dados do INFOPEN e uma percepção mais clara sobre as realidades dos territórios. Desse modo, ao confrontar e adequar as duas fontes, obteve-se o perfil de 2.835 unidades de custódia, totalizando 660.024 pessoas custodiadas (MJ, 2016b), com uma variação positiva de 1,7% em relação ao número apresentado pelo CNIEP (CNJ, 2016). Com isso, tornou-se possível a estruturação de uma terceira base de dados, adequada à realização do nosso estudo.
Além disso, foram consultadas fontes de dados populacionais, como o censo demográfico de 2010 e estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), além do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) publicado pelo PNUD (2016b). Quanto às bases do SUS, considerou-se os dados referentes às redes e aos serviços de saúde pelas seguintes fontes: Sala de Apoio à Gestão Estratégica (SAGE), com indicadores sobre ações e serviços nos territórios e população referenciada (MS, 2016a, 2016b); Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), com registros dos serviços válidos, tais como localização, especialidade, equipes, infraestrutura, etc. (MS, 2016c); e Índice de Desempenho do SUS (IDSUS) e respectivos indicadores municipais (MS, 2012).
As reuniões técnicas e observações participantes, com a produção de diários de campo, ocorreram entre julho/2016 e fevereiro/2017 em contextos de gestão prisional, no DEPEN e em âmbitos estaduais, e em serviços de saúde dos seguintes locais: São Paulo, Franco da Rocha e Limeira, no estado de São Paulo; Porto Alegre e Rio Grande, no Rio Grande do Sul; São Luis, no Maranhão; e Teresina, no Piauí.
A obtenção dos dados verbais constituiu-se como importante fator, sendo que a opção pela “posição narrativa” favoreceu a articulação em torno das políticas em jogo, tal qual afirmaram Passos e Barros (2009, p. 150), numa tomada de posição que, em busca da produção do conhecimento necessário, implicava a todos politicamente, sendo considerados os sujeitos que atuavam no campo, numa tentativa de “apreender esta dimensão expressiva própria das práticas de saúde” (PASSOS; BARROS, ibid, p. 151). Essa dimensão política, esclareceram os autores (apud FOUCAULT, 1977), foi descrita como uma “forma de atividade humana que, ligada ao poder, coloca em relação sujeitos, articula-os segundo regras ou normas não necessariamente jurídicas e legais”, fazendo-se também “em arranjos locais, por microrrelações, indicando esta dimensão micropolítica das relações de poder”.
Os estudos de campo e as expressividades dos interlocutores foram fundamentais para compreensão das práticas locais, além de evidenciar interjeições, muito em razão dos cenários dramáticos com os quais os profissionais tinham que lidar e das respostas favoráveis advindas, à medida que se conduziam na implementação das práticas de cuidado.
O sistema prisional brasileiro é marcado por superlativos, sendo um dos mais críticos e complexos dentre as várias políticas existentes, retratando condições institucionais e realidades humanas preocupantes. Como atesta o DEPEN em seu relatório sobre o sistema prisional brasileiro (2014, p. 13), o aumento do encarceramento associado às inadequadas condições de custódia e às dificuldades decorrentes da administração da justiça, colocam o país em uma posição desconfortável, com a quarta maior população prisional mundial, inferior apenas aos Estados Unidos, à Russia e à China.
Os dados adaptados a partir do CNIEP (CNJ, 2016) e do INFOPEN (MJ, 2016a), em jun/2016, somaram 2.835 unidades, entre Penitenciárias, Cadeias, Delegacias, Casas de Albergado, Colônias Agrícolas, Centros de Remanejamento (CR), Centros de Detenção Provisória (CDP) e Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), localizadas em 2.132 municípios, mantendo 660.024 pessoas custodiadas (MJ, 2016b), sendo 94% do gênero masculino e 6%, do feminino[6]. Na Tabela 1 tem-se o detalhamento por unidade federativa:
Tabela 1 – Unidades de custódia e população privada de liberdade, por tipo de unidade e UF
UF |
Cadeia Detenc prov |
Casa do albergado |
Col. Agric. ou similar |
Delegacia |
HCTP/Ala de Tratam |
Patronato |
Penitenciária |
TOTAL |
||||||||
Popul |
Unid |
Popul |
Unid |
Popul |
Unid |
Popul |
Unid |
Popul |
Unid |
Popul |
Unid |
Popul |
Unid |
Popul |
Unid |
|
AC |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
4.952 |
13 |
4.952 |
13 |
AL |
0 |
0 |
0 |
0 |
2.277 |
1 |
0 |
0 |
81 |
1 |
0 |
0 |
3.896 |
8 |
6.254 |
10 |
AM |
3.951 |
55 |
497 |
1 |
271 |
1 |
79 |
5 |
25 |
1 |
0 |
0 |
1.933 |
11 |
6.756 |
74 |
AP |
800 |
4 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
11 |
1 |
0 |
0 |
1.852 |
3 |
2.663 |
8 |
BA |
2.101 |
106 |
0 |
1 |
721 |
2 |
1.328 |
159 |
146 |
1 |
0 |
0 |
11.370 |
17 |
15.666 |
286 |
CE |
14.658 |
162 |
2.848 |
4 |
6 |
2 |
2 |
1 |
147 |
2 |
0 |
0 |
4.877 |
6 |
22.538 |
177 |
DF |
118 |
1 |
0 |
0 |
1.542 |
1 |
0 |
0 |
104 |
1 |
0 |
0 |
13.195 |
6 |
14.959 |
9 |
ES |
7.071 |
12 |
0 |
0 |
0 |
0 |
2 |
1 |
66 |
1 |
0 |
0 |
12.158 |
23 |
19.297 |
37 |
GO |
11.347 |
140 |
318 |
4 |
731 |
2 |
0 |
6 |
0 |
0 |
0 |
0 |
4.379 |
12 |
16.775 |
164 |
MA |
2.977 |
15 |
273 |
4 |
10 |
1 |
2.149 |
141 |
0 |
2 |
0 |
0 |
2.453 |
11 |
7.862 |
174 |
MG |
28.955 |
233 |
329 |
11 |
117 |
1 |
53 |
1 |
367 |
3 |
0 |
0 |
37.541 |
54 |
67.362 |
303 |
MS |
1.155 |
56 |
1.759 |
13 |
885 |
1 |
44 |
10 |
0 |
0 |
0 |
0 |
11.530 |
28 |
15.373 |
108 |
MT |
6.196 |
65 |
0 |
1 |
2 |
1 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
4.890 |
8 |
11.088 |
75 |
PA |
3.011 |
37 |
0 |
0 |
795 |
1 |
264 |
82 |
176 |
1 |
0 |
0 |
10.158 |
30 |
14.404 |
151 |
PB |
2.699 |
60 |
0 |
0 |
238 |
1 |
0 |
0 |
83 |
1 |
0 |
0 |
7.985 |
20 |
11.005 |
82 |
PE |
4.190 |
68 |
0 |
0 |
3.053 |
2 |
0 |
0 |
494 |
1 |
0 |
0 |
23.159 |
16 |
30.896 |
87 |
PI |
270 |
2 |
1 |
1 |
335 |
1 |
0 |
0 |
40 |
1 |
0 |
0 |
3.322 |
11 |
3.968 |
16 |
PR |
13.765 |
202 |
0 |
0 |
1.846 |
4 |
187 |
6 |
746 |
1 |
0 |
0 |
14.123 |
23 |
30.667 |
236 |
RJ |
22.883 |
21 |
430 |
2 |
69 |
1 |
3 |
1 |
366 |
7 |
0 |
1 |
26.022 |
23 |
49.773 |
56 |
RN |
3.236 |
125 |
79 |
2 |
0 |
0 |
8 |
34 |
44 |
1 |
0 |
0 |
4.753 |
8 |
8.120 |
170 |
RO |
1.859 |
15 |
1.633 |
9 |
383 |
4 |
0 |
0 |
13 |
1 |
0 |
1 |
5.621 |
23 |
9.509 |
53 |
RR |
388 |
5 |
228 |
2 |
0 |
0 |
1 |
8 |
0 |
0 |
0 |
0 |
1.486 |
2 |
2.103 |
17 |
RS |
1.095 |
1 |
1.109 |
12 |
356 |
2 |
0 |
0 |
388 |
2 |
68 |
1 |
29.208 |
85 |
32.224 |
103 |
SC |
2.289 |
16 |
59 |
1 |
388 |
1 |
0 |
0 |
92 |
1 |
0 |
0 |
15.105 |
35 |
17.933 |
54 |
SE |
396 |
28 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
4 |
99 |
1 |
0 |
0 |
4.361 |
7 |
4.856 |
40 |
SP |
71.167 |
146 |
0 |
0 |
7.411 |
6 |
176 |
8 |
1.139 |
4 |
0 |
0 |
149.874 |
114 |
229.767 |
278 |
TO |
2.370 |
50 |
0 |
0 |
0 |
1 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
884 |
3 |
3.254 |
54 |
TOT |
208.947 |
1.625 |
9.563 |
68 |
21.436 |
37 |
4.296 |
467 |
4.627 |
35 |
68 |
3 |
411.087 |
600 |
660.024 |
2.835 |
Fontes: MJ (2016b)
Vê-se que as unidades mais numerosas abrigavam populações menores, especialmente as 1.625 Cadeias/CDP (1.625) e 467 Delegacias, que somavam 213.243 custodiados (31,7%)[7]; já as 600 Penitenciárias, mantinham 411.057 pessoas (62,3%).
O DEPEN estimou o aumento médio anual da população sob custódia em 7,5% (MJ, ibid), considerando que, em dez/2000, a população custodiada era de 232.755 pessoas. Entretanto, aos ajustarmos as bases do MJ e do CNJ (MJ, 2016b), verificamos que o crescimento médio, entre dez/2000 e jun/2016, foi de 6,7%.
O crescente o deficit de vagas nos sistemas estaduais parece ser um insolúvel problema. Segundo o relatório publicado pelo DEPEN (MJ, 2015), em 2010 a população privada de liberdade somava 496.251 pessoas, em 281.520 vagas, sendo 164.683 presos provisórios (33% do total); em 2014, por sua vez, a população custodiada chegava a 622.202, em 371.884 vagas, sendo 249.668 presos provisórios (40% do total); em 2016, esse número representava 38,1% do total. Ainda em 2016, 3.618 pessoas cumpriam medidas de segurança, sendo 2.677 (74%) em HCTP e Alas de Tratamento Psiquiátricos (ATP), e 941 (26%) em outras unidades, além de 1.009 pessoas sem medida determinada (provisórios ou condenados aguardando laudo pericial; ou já condenados, em tratamento).
O DEPEN estimou que a população que transitou pelas unidades prisionais foi superior a 622.202 (MJ, ibid), sendo que, em dez/2013, havia 581.507 custodiados e que, entre jul/2014 e dez/2014, foram inseridas 279.912 pessoas e desligadas outras 199.100. Assim, concluiu-se que “pelo menos 1 milhão de pessoas passaram pelo sistema prisional brasileiro ao longo do ano de 2014” (MJ, 2015, p. 23). Entretanto, não houve mensuração clara da população que dinamicamente passou pelas prisões, ressaltando o MJ que a sua estimativa baseou-se em parte da população movimentada – 49,7%, em jun/2014, e 81,5%, em dez/2014 – (MJ, ibid).
Em relação às condições das prisões verificadas no CNIEP, do total de 2.835 unidades, 2.752 foram avaliadas pelos juízes da execução e publicadas pelo CNJ. Dessas unidades, 38% foram consideradas ruins ou péssimas, mantendo 238.079 pessoas presas (36%), além de 1.407 unidades em condições regulares, com 301.050 pessoas (45,6%). As 2.493 unidades em condições regulares, ruins e péssimas abrigavam 539.129 pessoas (81,7%), indicando estrutura geral e módulos de vivência inadequados, escasso número de profissionais, deficit de vagas, serviços e tecnologias, etc.
Quanto às características epidemiológicas dessa população em prisões destacaram-se alguns agravos prevalentes identificados pelo SUS e informados ao DEPEN (MJ, 2015, p. 46). Os mais comuns, associados à superlotação, às condições estruturais e sanitárias inadequadas, eram: a Tuberculose (94,7/10.000 custodiados)[8], o HIV (126,8/10.000 custodiados), a Sífilis (51/10.000 custodiados) e as Hepatites Virais (57,5/10.000 custodiados). Com ampla dimensão coletiva, também foi considerado o sofrimento psíquico, agravado pelo isolamento social, pelas condições das unidades, pelas tensas relações com outros custodiados e oficiais dos serviços penais, pela escassa oferta de programas assistenciais, dentre outros.
Os dados de desenvolvimento humano também auxiliaram a refletir sobre as realidades sócioterritoriais de municípios com prisões. Pelo IDHM (PNUD, 2016b)[9], verificou-se que 500.548 pessoas (75,8%) estavam custodiadas em 723 municípios com altos ou muito altos índices de desenvolvimento humanos, e 10.292 (1,6%) em 541 municípios, com baixos e muito baixos. A maior proporção de municípios encontrava-se na faixa de IDHM médio, totalizando 868, com 149.184 custodiados (22,6%).
Isso sugere que as pessoas aprisionadas tendem a não usufruir do sistema de garantia de direitos no território, dadas as condições gerais de prisão verificadas e seus efeitos, sendo escassamente referenciada pelas políticas setoriais locais (FIGUEIREDO, 2016a, 2016b). Muitas dessas unidades localizavam-se em municípios cujos IDHM se destacavam em níveis superiores, privando a população custodiada do acesso pleno às políticas locais e seus mecanismos de cuidado e inclusão sociais, dependendo apenas dos subsistemas assistenciais ofertados pelas instituições prisionais. Depreendeu-se, com isso, que crescimento econômico e social no território “não se traduz automaticamente em qualidade de vida” para as populações alijadas, sendo que, frequentemente ocorre o “reforço das desigualdades” (PNUD, 2016b, p. 23), especialmente nas vidas dos que vivem em prisões.
Além da população custodiada, coube considerar demandas dos trabalhadores em serviços penais, também profundamente afetados pelas condições das prisões, organização do trabalho e interações humanas em seu contexto. Segundo o DEPEN (MJ, 2015), havia, ao final de 2014, 86.542 profissionais em atividade, seja com a operação da custódia ou na prática do cuidado (representando um profissional para 7,1 custodiados). Esses profissionais foram identificados entre as 1.476 unidades registradas no INFOPEN (MJ, 2016a), o que representava a maior parcela de trabalhadores, já que essa base registrou as unidades mais populosas.
Algo relatado pelas equipes de saúde com as quais interagimos, o sofrimento psíquico é comumente vivenciado pelos profissionais das diversas funções, especialmente os agentes de segurança, impactando o equilíbrio interno e agravando as situações de violência e sofrimento. Além disso, “a disseminação de doenças contagiosas, em especial a infecção pelo HIV/AIDS e tuberculose, constitui sério risco à saúde dos detentos, seus contatos (especialmente familiares e pessoal penitenciário) e para as comunidades nas quais irão se inserir após o livramento”, pois “no ambiente confinado das prisões” os trabalhadores em serviços penais “estão em contato cotidiano e direto com os presos e expostos, como eles, aos riscos infecciosos, especialmente à tuberculose” (AMADO et al, 2008, p. 1.887-1.888).
3.1. Da política de cuidados em saúde para a população privada de liberdade
Marco fundamental, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (art. V), que “todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei” (art. VI) e que “todos são iguais perante a lei e tem direito, sem distinção, a igual proteção da lei” (art. VII). Ainda que criminalizadas, as pessoas mantêm-se titulares de direitos, salvo aquelas restritas por aplicação da sanção penal.
Essas garantias constam nas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos, ou Regras de Mandela (ONU, 2015), destacando-se, em relação à saúde: a Regra 24, estabelecendo que a atenção à saúde será resultante da integração aos serviços de saúde coletiva ofertados pelo Estado; e a Regra 25, fazendo alusão às abordagens interdisciplinares e à relevância da oferta de serviços, levando-se em conta as condições peculiares dos custodiados, tais como as condições de deficiência física, sensorial e psicossocial, dificuldades em reabilitação e doenças crônicas.
No Brasil, a Constituição Federal (CF) estabeleceu, pelo art. 5º, XLVII, que serão assegurados às pessoas custodiadas “o respeito à integridade física e moral”, endossando que os direitos sociais são considerados inalienáveis e que a garantia da seguridade social, educação e outras políticas sociais básicas, são universais, ainda que privadas de liberdade. As salvaguardas sociais encontram correspondências na Lei nº 7.210/1984, a Lei de Execução Penal (LEP), art. 1º, que determina que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Especialmente, no art. 14, considera-se a obrigatoriedade da oferta de atenção à saúde, sendo esta referenciada por normas publicadas pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), CNJ e SUS, tratando de interfaces com a política pública de saúde.
Com a publicação do PNSSP, em 2003, já se atribuía à atenção primária do SUS o papel de política estruturante da saúde da população privada de liberdade, baseado em diretivas do CNPCP, especialmente a Resolução nº 07, de 14/04/2003, que estabelecia que a atenção à saúde da população custodiada observaria a política nacional de atenção básica[10]. Esse plano colocou-se como a primeira referência nacional para articular premissas e práticas inerentes à execução penal e ao SUS.
As experiências vividas 2004 e 2009 indicaram necessidade de se ampliar as diretrizes e possibilidades do PNSSP, transformando-o em uma política ampla. Em especial, o subfinanciamento das equipes (cujo valor do subsídio não ultrapassava a R$ 5.400,00/mês) desencorajava adesões ao plano, notadamente entre os municípios.
Entre 2009 e 2010, o MJ e o MS sistematizaram estudos e propostas para concepção de uma política para atenção integral, intensificando-os entre 2011 e 2013, o que levou ao desenho da PNAISP. Esses esforços contaram com as participações de instituições do judiciário, do executivo, movimentos sociais e pesquisadores, inspirados, em grande medida, por experiências de focalização da atenção à saúde durante o PNSSP – a territorialidade como um dos[11] princípios da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) -, como as realizadas no Rio Grande do Sul, em Mato Grosso do Sul, na Bahia e em Rondônia.
Dentre as mudanças propostas para a nova política, redimensionou-se a estrutura dos serviços, ampliando-se o valor do incentivo financeiro, sendo utilizados mecanismos para reconhecer as realidades sóciosanitárias e adotar formas de compensação em função das iniquidades territoriais, enfatizando o papel do governo local enquanto eixo estratégico e operativo preferencial. Outra alteração importante foi a adoção do repasse financeiro fundo-a-fundo para a assistência farmacêutica, abandonando-se os kits de medicamentos previstos no PNSSP.
Quanto às pessoas com transtorno mental criminalizadas, especialmente mantidas em unidades da justiça criminal, a PNAISP propôs uma alternativa útil. Baseando-se na Lei nº 10.216/2001, a Lei da reforma psiquiátrica, nas experiências do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI), em Goiás, e do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAIPJ), em Minas Gerais, foi a publicada a Portaria MS/GM nº 94, de 14/01/2014, criando o Serviço de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP), objetivando orientar estratégias e práticas intersetoriais que considerassem os dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), previstos na Portaria MS/GM nº 3.088, de 23/12/2011. Em artigo posterior, trataremos das especificidades desse serviço que assumiu um caráter transitório na PNAISP, devendo ocorrer a sua republicação no contexto da RAPS.
Considerando que a cobertura da PNAB ampliou-se consideravelmente, esperava-se que ocorresse o preenchimento de lacunas assistenciais e se alcançasse a população custodiada de modo mais efetivo. Como se vê na Tabela 2, a seguir, o acesso potencial pelos custodiados ainda é limitado:
Tabela 2 – Dados de cobertura da PNAISP e do PNSSP, em março/2016
UF |
Pop 2015 (1) |
Num municipios (1) |
% cobert ACS (2) |
% cobert ESF (2) |
Municípios com unid custódia (3) |
Unid custódia (3) |
População custodiada (3) |
% acesso potencial PNSSP PNAISP (3) |
AC |
803.513 |
22 |
97,16 |
79,87 |
6 |
13 |
4.952 |
54,5 |
AL |
3.340.932 |
102 |
78,46 |
75,91 |
3 |
10 |
6.254 |
49,6 |
AM |
3.938.336 |
62 |
67,54 |
60,47 |
61 |
74 |
6.756 |
62,2 |
AP |
766.679 |
16 |
83,15 |
74,53 |
2 |
8 |
2.663 |
37,6 |
BA |
15.203.934 |
417 |
83,07 |
71,9 |
248 |
286 |
15.666 |
59,4 |
CE |
8.904.459 |
184 |
82,81 |
82,01 |
159 |
177 |
22.538 |
34,2 |
DF |
2.914.830 |
1 |
20,93 |
30,87 |
1 |
9 |
14.959 |
50,1 |
ES |
3.929.911 |
78 |
70,76 |
61,39 |
14 |
37 |
19.297 |
29 |
GO |
6.610.681 |
246 |
65,73 |
67,28 |
146 |
164 |
16.775 |
37 |
MA |
6.904.241 |
217 |
89,4 |
79,43 |
132 |
174 |
7.862 |
52,1 |
MG |
20.869.101 |
853 |
75,73 |
79,3 |
236 |
303 |
67.362 |
31,6 |
MS |
2.646.085 |
78 |
93,78 |
70,34 |
59 |
108 |
15.373 |
74,8 |
MT |
3.265.486 |
141 |
76,93 |
65,85 |
61 |
75 |
11.088 |
36,1 |
PA |
8.191.477 |
143 |
81,56 |
53,89 |
120 |
151 |
14.404 |
41 |
PB |
3.972.202 |
223 |
98,37 |
93,73 |
65 |
82 |
11.005 |
34,5 |
PE |
9.345.173 |
185 |
87,59 |
76,82 |
79 |
87 |
30.896 |
65,7 |
PI |
3.211.289 |
225 |
100 |
98,99 |
9 |
16 |
3.968 |
12,6 |
PR |
11.163.018 |
399 |
62,46 |
67,54 |
188 |
236 |
30.667 |
13,7 |
RJ |
16.550.024 |
92 |
51,41 |
52,04 |
8 |
56 |
49.773 |
18,1 |
RN |
3.442.175 |
167 |
81,86 |
80,95 |
143 |
170 |
8.120 |
43,1 |
RO |
1.768.204 |
52 |
83,28 |
75,53 |
24 |
53 |
9.509 |
58,9 |
RR |
505.665 |
15 |
69,7 |
75,67 |
11 |
17 |
2.103 |
23,8 |
RS |
11.245.148 |
497 |
51,88 |
56,38 |
76 |
103 |
32.224 |
53,1 |
SC |
6.797.337 |
293 |
77,38 |
80,39 |
39 |
54 |
17.933 |
49,1 |
SE |
2.242.937 |
75 |
93,4 |
85,56 |
26 |
40 |
4.856 |
20,6 |
SP |
44.396.484 |
645 |
40 |
40,42 |
169 |
278 |
229.767 |
13,5 |
TO |
1.515.126 |
139 |
99,77 |
93,84 |
47 |
54 |
3.254 |
86 |
Fontes: (1) IBGE (2010); (2) MS (2016a); (3) MJ (2016c)
Até mar/2016, o país alcançou uma cobertura de 63,83% de Equipes da Saúde da Família (ESF) e 66,54% em serviços de Agentes Comunitários de Saúde (ACS): o total de ACS era de 265.480, em todos os municípios brasileiros, e 183.282, naqueles com unidades de custódia; 40.155 ESF estavam implantadas no país, sendo 27.439 em municípios com unidades de custódia; 24.462 Equipes de Saúde Bucal (ESB) atuavam no país, sendo 14.172 em municípios com unidades de custódia; e 4.317 Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), no país, sendo 2.257 em municípios com unidades de custódia.
Nesses contextos, verificou-se que 455 equipes validadas pelo SUS eram tipificadas como PNAISP ou PNSSP e atendiam à população de 437 unidades, propiciando acesso potencial a 276.173 pessoas (41,8%)[12]. As UF que apresentaram melhor potencial de acesso foram: PB (51,1%), CE (51,5%), MT (53,4%), BA (59,7%), RS(60,5%), RR (65%), PE (77,4%), AP (98,7%), e DF (99%).
Desde a publicação da PNAISP, houve ampliação do acesso potencial aos serviços de saúde, de 23%, em 2013, para 41,8%, em 2016. Algo marcante nesse processo foi a crescente adesão dos municípios, motivados pelo aumento do incentivo financeiro: representavam 23% das equipes PNSSP sob gestão municipal, em 2013, ampliando-se para 70%, em 2016 (MS, 2016b).
As unidades federativas que mais promoveram a requalificação das equipes previstas no PNSSP e consequente conversão aos serviços da PNAISP e ampliação da cobertura, obtiveram ganhos de incentivo significativos em relação ao exercício de 2013, sendo elas: AC (93%), AM (76,5%), DF (84,4%), MA (97,3%), MS (84,7%), PE (93,6%), PR (82,8%), RS (88%), SC (94,6%) e TO (92,2%). Neste período, o aumento médio de valores de incentivos, no país, foi de 76,8%.
Com estabelecimento de termos de convênios entre as UF, o DEPEN contribuiu para a extensão da PNAISP, apoiando financeiramente a estruturação de unidades de saúde, alcançando a mais de 70% da população custodiada. O levantamento de infraestrutura realizado pelo DEPEN (MJ, 2016a) retratou a existência de ambiências para atenção em saúde em 928 unidades, sendo que cerca de 611 foram aparelhadas ou reaparelhadas e 421 validadas pelo SUS (MS, 2016b).
A política de cuidados em saúde da população custodiada emergiu como alternativa estratégica crucial, numa forma diversa de cooperação com os entes federativos, afetando de modo sensível as práticas na gestão das prisões e execução penal, colocando-se como viés para humanização e reorientação de práticas. A PNAISP, em especial, interpõe-se entre dois sistemas complexos e diferenciados em concepções político-institucionais e percepções acerca dos destinatários das suas ações.
Como se trata de uma experiência de certo modo inovadora, a PNAISP se apresentou como bom propósito para assegurar medidas de salvaguardas em prol da das pessoas que se encontram em contextos prisionais, possibilitando a produção de arranjos intersetoriais que se estendem aos contextos locais. Esses fatos foram observados em diversas regiões, podendo ser destacados: o estado do Rio Grande do Sul, que instituiu uma política estadual específica, integralizando o valor correspondente ao financiamento participativo previsto na PNAISP e conduzindo à municipalização dos serviços; e o estado de São Paulo, com a adesão de cerca de 46 municípios, por uma deliberação da Comissão Intergestores Bipartite (CIB), adotando estratégias que possibilitam a pactuação de governos locais, incentivam financeiramente a oferta de serviços e favorecem o acesso de custodiados às redes de saúde.
Com o auxílio dos interlocutores locais e das observações de práticas, entendemos que as mudanças de realidades não se dão apenas pela combinação de modelos e ferramentas de governança e imperativos legais. Essas transformações ocorrem pela intersetorialidade, de modo colaborativo e participativo, em arranjos que propiciem a permanente “interação de mútuo entendimento intersetorial a respeito de um ou mais projetos ou questões sociais”, colocando-se “como alternativa a uma anacrônica lógica setorial, fragmentada, vertical e autônoma” (JUNQUEIRA, 2004, COSTA e LIONÇO, 2006, apud CARRETA et al, 2014, p. 1464). Nesse sentido, as experiências locais mostraram ser possível recontextualizar saberes inscritos no SUS e afetar positivamente os campos da execução penal, em movimentos adaptativos, adotando a unidade de custódia como um ponto de atenção, enquanto locus de vivências, de trabalho e de cuidado.
No entanto, alguns fatores serviram como barreiras para inclusão da população custodiada em redes de saúde, reduzindo o ritmo dos processos de pactuação e constituição de serviços. Ainda que as equipes mantivessem contínua utilização de protocolos de porta de entrada, rastreamento de demandas, com a detecção precoce de doenças, a superlotação associada ao reduzido número de agentes de custódia e às precárias condições ambientais das unidades comprometiam a adoção dessas práticas essenciais. Assim, ao contrário do que pretendia, as principais condutas clínicas adotadas passavam a ser eminentemente curativas, os procedimentos de urgência e emergência e a intensa medicalização, comprometendo, também, os deslocamentos de custodiados para as redes locais.
As restrições aos subsídios financeiros, pelo Fundo Nacional de Saúde (FNS), entre 2015 e 2016, reduziram momentaneamente as perspectivas para novos serviços e interesses dos governos locais[13], mantendo ainda apartada a maioria da população custodiada, mesmo com as evidências dos dramas carcerários[14] e das consequências trágicas das vivências em locais de confinamento.
Não se pode deixar de considerar fatores que atuaram como impeditivos para a adoção de medidas de salvaguardas em saúde da população privada de liberdade. Pela natureza crítica dos contextos de custódia, além da resistência de alguns atores locais e dos restritos recursos financeiros, distinguiram-se vários obstáculos ao acesso dessa população ao SUS. Por um lado, a saúde coletiva que, em grande medida, reduziu as necessidades de saúde da população em prisões a um problema exclusivamente do sistema de justiça; por outro, alguns órgãos da administração prisional que buscaram produzir, de modo inequívoco, subsistemas e sobreposições, levando a descompassos entre o que se operava nas prisões e as redes de saúde.
Mas, o que nos parece mais impactante e que deve ser seriamente revista, é a sistemática política de encarceramento que tem levado ao crescimento acelerado da população em privação de liberdade, colocando-se como impeditivo para melhores estruturas e serviços penais e oferta ampla do cuidado. Reforçando práticas demasiadamente cristalizadas na cultura punitivista e penitenciarista, esses aspectos agravam as condições de vivência e saúde nas unidades, minimizando perspectivas para a reconstrução de projetos de vida e a adequada inclusão social. E, como agravante, observamos a redução da capacidade estatal de garantir a devida proteção financeira (pois, os recursos jamais serão suficientes diante do crescimento exponencial da população encarcerada) e assegurar as necessárias medidas de salvaguardas.
Por fim, sabemos que a melhoria das condições de saúde em prisões não se resumiria ao rebuscamento de uma política de cuidados e ao seu amplo enredamento em formas convergentes com as demais políticas setoriais. Não se pode esperar que seja possível criar um bom sistema de cuidados nesses locais se o crescimento exponencial da população criminalizada e submetida a condições inadequadas de encarceramento não cessar. Caso contrário, todo esforço pela adoção de medidas de salvaguardas em unidades de custódia que apresentam predominantemente cenários inadequados e críticos, se resumirá a soluções que serão apenas esboços e terão caráter unicamente paliativo.
5. AGRADECIMENTOS
Ao DEPEN e ao PNUD, por apoiarem este trabalho e consentirem na utilização dos relatórios produzidos por um dos seus autores, entre 2016 e 2017, por intermédio do Projeto BRA/14/011.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SANTOS, Alexandre; RIGOTTO, Raquel. (2011), “Território e territorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na atenção básica à saúde”. Trabalho e Educação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 8, nº 3: 387-406. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em 19 jun 2016.
Railander Quintão de Figueiredo – email: railander_figueiredo@id.uff.br
Silvia Helena Tedesco – email: shtedesco@gmail.com
Observatório de Saúde Mental e Justiça Criminal, Instituto de Psicologia, UFF
Campus do Gragoatá – Rua Prof Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n bloco O, sala 214, Gragoatá – Niterói, RJ – Cep: 24210-201
[1] Pesquisador do Observatório de Saúde Mental e Justiça Criminal da Universidade Federal Fluminense (ObservaSMJC/UFF), do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal do Espírito Santo (ODHES/UFES) e do Observatório Nacional do Sistema Prisional da Universidade Federal de Minas Gerais (ONASP/UFMG); Consultor em programas das Nações Unidas para projetos de cooperação no Brasil; graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMINAS); Mestre em Educação pela UFMG; e Doutor em Psicologia pela UFF.
[2] Professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF); coordenadora do Observatório de Saúde Mental e Justiça Criminal da UFF (ObservaSMJC/UFF); Graduada e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP).
[3] Sob sanção penal, vigilância e proteção do Estado; nesses casos, encontram-se pessoas privadas de liberdade provisoriamente, como forma de adoção de medidas cautelares – prisão em flagrante, temporária ou preventiva -, ou definitivamente, sob condenação á pena de prisão ou em cumprimento de medida de segurança (por tratar-se de pessoa com transtorno mental criminalizada).
[4] A Constituição Federal (CF) afirma os direitos sociais, ainda que o indivíduo esteja privado de liberdade, tais como “educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” (art. 6º). As salvaguardas em saúde são garantidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), alicerçado por um sistema normativo amplo, destacando-se a Lei nº 8.080, de 19/09/1990, a Lei nº 8.142, de 28/12/1990, e pelo Decreto nº 7.508, de 28/09/2011.
[5] Quando pudemos realizar estudos sobre o PNSSP por meio do Projeto BRA 05/038: Modernização do Sistema Penitenciário Nacional, sob a coordenação do MJ (PNUD, 2005).
[6] Nesse período, foram registradas 534 gestantes e 316 nutrizes, sendo que o número de crianças que ultrapassaram a fase da amamentação não foi encontrado.
[7] Coube incluir as unidades da Segurança Pública, que mantinham boa parte da população privada de liberdade, ainda que não fossem atribuídas a elas funções para custódia a longo prazo.
[8] Bem acima da taxa considerada aceitável pela OMS, cuja meta global foi estabelecida em 25,9/100.000 habitantes, para até 2015 (MS, 2012d, p. 1).
[9] Composto por indicadores de longevidade, educação e renda, esse índice traduz-se num conceito de desenvolvimento humano como expressão de “liberdades pessoais” na relação com as oportunidades disponíveis em seus contextos de vivência Os índices foram agrupados, segundo agrupa o PNUD (2016b), nas seguintes faixas: 0 a 0,499 – "Muito baixo"; 0,500 a 0,599 – "Baixo"; 0,600 a 0,699 – "Médio"; 0,700 a 0,799 – "Alto"; e 0,800 acima – "Muito alto".
[10] Posteriormente, esta norma foi revogada pela Resolução CNPCP nº 4, de 18/07/2014, que aprovou as novas diretrizes básicas para atenção à saúde da população prisional.
[11] A Portaria MS/GM nº 2.446, de 11/11/2014, que redefine a PNPS, art. 4º, adota o conceito de territorialidade como algo que “diz respeito à atuação que considera as singularidades e especificidades dos diferentes territórios no planejamento e desenvolvimento de ações intra e intersetoriais com impacto na situação, nos condicionantes e nos determinantes da saúde neles inseridos, de forma equânime.
[12] Os serviços PNAISP foram dimensionados pela Portaria MS/GM nº 482, de 01/04/2014, que institui normas para sua operacionalização, sendo: a) Equipe de Atenção Básica I, para até 100 custodiados; b) Equipe de Atenção Básica I, com saúde mental, para até 100 custodiados; c) Equipe de Atenção Básica II, para 101 a 500 custodiados; d) Equipe de Atenção Básica II com saúde mental, para 101 a 500 custodiados; e e) Equipe de Atenção Básica III, para 501 a 1.200 custodiados.
[13] O art. 21 da Portaria Interministerial MJ/MS nº 01/2014 (MJ; MS23) estabeleceu que as conversões das equipes habilitadas ao PNSSP em equipes PNAISP deveriam ocorrer até 31/12/2016. Por seu turno, a Portaria Interministerial MJC/MS nº 24, de 05/01/2017 (MJ; MS24), art. 1º, prorrogou esse prazo para 31/12/2017, sendo que, a partir dessa data, as equipes existentes e ainda estruturadas segundo o PNSSP serão desabilitadas.
[14] Usamos a categoria ‘território” com o sentido de espaço vivido, considerando o espaço concreto, o “cotidiano vivido no qual se dá a interação entre as pessoas e os serviços de saúde no nível local”, caracterizado, portanto, “por uma população específica, vivendo em tempo e espaço determinados, com problemas de saúde definidos, mas quase sempre com condicionantes e determinantes que emergem de um plano mais geral”.(MIRANDA et al., 2008, apud SANTOS e RIGOTO, 2011, p. 389).