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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Não é papel da Justiça criar regras sem qualquer compromisso com a Constituição, por Sergio Ferraz

 

Não é papel da Justiça criar regras sem qualquer compromisso com a Constituição

 

Esse ativismo injustificado, além de corroer o apreço que o Supremo sempre mereceu (além de ensejar atritos que a liturgia do cargo não deveria permitir), gera no jurisdicionado insegurança jurídica, de proporções danosas institucionais ainda de difícil, mas certamente muito negativa quantificação.

 

Por Sérgio Ferraz

 

Ainda recentemente, escrevi, para uma obra coletiva (coordenada e co-escrita — dentre outros autores — pelas figuras destacadas de Ives Gandra, Renato Nalini e Gabriel Chalita), uma apreciação crítica sobre o fenômeno denominado ativismo judicial (ou, também, consequencialismo judicial). Não obstante tal iniciativa, a matéria é tão importante, suas incidências concretas se multiplicando quase diariamente, que suponho conveniente antecipar um tanto do que ali lancei.

O ativismo ou consequencialismo traduz uma tendência judicial (sobretudo do Supremo Tribunal Federal), iniciada a partir da Constituição de 1988 e robustecida pela nova composição do Supremo, consistente em recorrer, para decidir, mais aos princípios que aos textos constitucionais. Só que a natural abstração extrema do conteúdo dos princípios, aliada à amplitude dos campos materiais de sua aplicabilidade, acarreta uma consequência indesejável: pela impossibilidade de se dispor de marcos semânticos nítidos, o princípio diz aquilo que o julgador prefere que ele signifique, variando assim seu preenchimento tal qual uma biruta soprada por ventos de rumos conflitantes.

No dia a dia do Supremo (mas também do Judiciário como um todo), essa corrente “pós-positivista” (pouco importa o que isso seja precisamente) e “neoconstitucionalista” (idem), com a pretensão de ter criado uma nova técnica de hermenêutica da Constituição, findou por “consequencializar” dois desastres: abriu, no seio da corte, uma cisão profunda, traduzida em múltiplas decisões por 6 votos a 5, ora num sentido, ora noutro, banalizando-se, no debate de ideias, a troca de insultos!; consolidou-se, na comunidade dos operadores do Direito, a convicção de que o Supremo é uma loteria, na qual a segurança jurídica se desmancha e qualquer julgamento é possível. O que é pior: desses julgamentos saem, sem legitimação constitucional ou devido processo legal de criação normativa, regras endereçadas ao Executivo, ao Legislativo, à nação (exemplos? Proibições de doações eleitorais, condições administrativas para demarcação de áreas indígenas etc.).

Veja-se, para sublinhar tal diagnóstico, o que se deu na sessão plenária do Supremo do último dia 19: o tribunal decidiu que o cabimento de embargos infringentes a decisão de suas turmas está condicionado ao registro de dois votos divergentes. Ora, trata-se de regra de processo civil, cuja edição normativa refoge à competência do Supremo e que, aliás, sequer consta do Regimento Interno da corte.

Esse ativismo injustificado, além de corroer o apreço que o Supremo sempre mereceu (além de ensejar atritos que a liturgia do cargo não deveria permitir), gera no jurisdicionado insegurança jurídica, de proporções danosas institucionais ainda de difícil, mas certamente muito negativa  quantificação. Interpretar com generosidade e visão sistemática, sim. Criar regras gerais, sem qualquer compromisso com o texto, só pensando com máxima subjetividade individual no contexto, não — esse não é o papel do Judiciário.

 

Sérgio Ferraz é advogado, parecerista, procurador aposentado do estado do Rio de Janeiro, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da PUC-Rio e doutor em Direito pela UFRJ. É membro efetivo e presidente da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e fundador e membro do Conselho Superior da Associação Paulista de Direito Administrativo (APDA).

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 26 de abril de 2018