Poderes sem regulação no Brasil transferiram ao Judiciário papel
de resolver questões políticas
Descontente com a democracia ateniense, a qual considerava responsável pela condenação de Sócrates à morte, considerava-a dominada por massas anárquicas que estimulavam a desordem e a licenciosidade. Identificou-a com uma nau cujos marinheiros depuseram o capitão, passando a pilotá-la sem dominar a arte de navegar.
Propôs, então, que os governos fossem exercidos por reis-filósofos, mais bem preparados intelectualmente para deliberar acerca dos interesses da coletividade.
Centúrias depois, o pensador francês Montesquieu (1689-1755) concebeu, no século 18 de nossa era, a teoria da separação dos Poderes, segundo a qual o Estado, para impedir a concentração da autoridade em uma só pessoa ou assembleia, dando azo ao despotismo, deveria exercer suas três funções clássicas, a legislativa, administrativa e judiciária, por meio de órgãos distintos, que se controlariam reciprocamente.
Tal sistema foi abrigado na Constituição dos Estados Unidos de 1787, passando a ser conhecido como mecanismo de freios e contrapesos.
Nossas Cartas republicanas, salvo as editadas nos períodos de exceção, adotaram esse paradigma, assim como a hoje vigente, que estabelece: "são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".
Apesar disso, seja por não lograrem os consensos necessários, seja por outras razões que exigem análise mais aprofundada, Legislativo e Executivo têm deixado para o Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal, a solução de questões que, pela relevância, melhor seriam resolvidas por aqueles Poderes, após ampla discussão com a sociedade.
A Suprema Corte, para o bem ou para o mal, recentemente foi levada a decidir sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos; a autorização de pesquisas com células-tronco embrionárias humanas; a proibição do financiamento empresarial de campanhas eleitorais; a vedação de greve no serviço público; a legitimidade das cotas raciais no ensino estatal; a extensão dos direitos da união estável de casais heterossexuais aos parceiros homoafetivos; o estabelecimento de um marco temporal para a delimitação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas; a retroação dos efeitos da denominada Lei da Ficha Limpa; a possibilidade da mudança de nome das pessoas transgênero; a restrição da garantia da presunção de inocência; a limitação do habeas corpus; e o fim do foro especial para os parlamentares.
Certos observadores mais comedidos entendem que os juízes, ao apreciarem temas de tal envergadura, estariam apenas preenchendo, embora de forma heterodoxa, um momentâneo vácuo de poder.
Outros mais irreverentes identificam-nos com os reis-filósofos preconizados por Platão. Todos, no entanto, são unânimes em afirmar que, por mais bem-intencionados que sejam, não lhes é lícito alterar, pela via interpretativa, o sentido da Constituição e das leis que juraram defender.
Por isso muitos pugnam pela integral restauração do mecanismo de freios e contrapesos, que tradicionalmente integra nosso regramento constitucional, temendo que algum desavisado cogite da dissolução do Legislativo e Executivo ou, até mesmo, da abolição das eleições.
Ricardo Lewandowski é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
* Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo (23/5), com o título “Freios e contrapesos”.