Garantismo penal e investigação criminal: um diálogo necessário
Por Leonardo Marcondes Machado
O garantismo apresenta-se como importante base teórica para uma nova sistemática penal e, por consequência, à fundação de outro modelo jurídico de investigação preliminar, mais alinhado a um viés de redução dos danos/das dores. Justo porque o paradigma constitucional garantista, nos moldes propostos pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli[1], determina “o estabelecimento de limites e vínculos tanto à atuação pública como à atuação privada, com fins para o Estado de Direito, sobretudo pela proposição de uma democracia substancial”[2].
Aliás, conforme destaca o próprio Ferrajoli, a expressão garantismo foi introduzida no léxico jurídico no contexto italiano dos anos 1970, mais especificamente no âmbito do Direito Penal, muito embora possa ser estendida a todo o sistema de garantias dos direitos fundamentais. Nesse sentido, o garantismo seria sinônimo de “Estado Constitucional de Direito”[3].
Com efeito, a chamada “teoria geral do garantismo” passa a exigir uma interpretação (e aplicação) das normas conforme a Constituição; um tipo de postura absolutamente necessária à contenção dos espaços normativos de emergência ou de exceção construídos, segundo os interesses de determinados grupos sociais, mas no interior do próprio Estado de Direito (real), o que acabaria por enfraquecer o arquétipo estatal como artifício político a serviço de toda a comunidade[4].
O que se tem, portanto, em nível epistemológico, é uma teoria embasada na centralidade da pessoa, em nome de quem o poder deve constituir-se e a quem deve o mesmo servir[5]. De fato, a dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentais apresentam-se na base do ideal garantista, uma vez que somente a democracia material seria capaz de conferir legitimação ao Estado (Democrático) de Direito[6].
Nas palavras de Bobbio, ao prefaciar a primeira edição da obra Direito e Razão, o “sistema geral do garantismo jurídico” se confunde com a “construção das colunas mestras do Estado de direito, que tem por fundamento e fim a tutela das liberdades do indivíduo frente às variadas formas de exercício arbitrário de poder, particularmente odioso no direito penal”[7].
Não resta dúvida, portanto, de que se trata de um modelo vinculado à tradição iluminista, que prega a necessidade de limitação (formal e material) dos poderes em face das liberdades individuais (principalmente no campo penal); um verdadeiro sistema de freios às violências e aos abusos.
Conforme Salo de Carvalho, na busca por novos mecanismos de tutela dos direitos fundamentais e da democracia, a teoria garantista propõe uma releitura de três dimensões da esfera jurídico-política que subordinam a prática penal: “(i) a revisão crítica da teoria da validade das normas e do papel do operador jurídico (plano da teoria do direito); (ii) a redefinição da legitimidade democrática e dos vínculos do governo à lei (plano da teoria do Estado); e (iii) a reavaliação conceitual do papel do Estado (plano da teoria política)”[8]. São esses os (sub)campos fundamentais de uma “teoria geral do garantismo como parâmetro de racionalidade, justiça e legitimidade da intervenção punitiva”[9].
Em que pese limitações naturais e críticas possíveis, o sistema de garantias (penais e processuais penais) estabelecido por Ferrajoli apresenta ainda considerável potencial transformador para o exercício concreto da Justiça criminal brasileira. As indagações a respeito do “quando e como punir?”, “quando e como proibir?”, “quando e como julgar?”, que redundam em uma série de garantias relativas à pena, ao delito e ao processo não são coisa qualquer[10].
Muito embora não se encontre em Ferrajoli nenhuma crítica radical ao poder punitivo, no sentido de sua completa ilegitimidade[11], inclusive pela sua formação clássica, juspositivista e utilitarista, há uma importante busca pela redução das violências, oficiais e oficiosas, públicas e privadas, que atingem os sujeitos concretos do sistema penal.
Nesse sentido, a conhecida justificação minimalista enquanto “lei do mais fraco”, sempre direcionada à tutela de direitos contra a “violência arbitrária do mais forte”. Lugar de maior fragilidade ocupado pelo ofendido (ou vítima) em relação ao ofensor no momento do crime e pelo ofensor em relação ao ofendido ou aos sujeitos públicos ou privados que lhe são solidários quando da vingança[12].
Por óbvio, todas essas ideias servem também para uma nova estruturação do modelo de investigação preliminar. Afinal de contas, a investigação representa justamente a fase inicial de exercício do sistema de persecução criminal. Logo, o garantismo penal pode e deve servir, respeitados os seus limites teóricos e consciente do seu âmbito libertário, a um movimento de maior tutela dos direitos fundamentais na investigação criminal. Por isso, o diálogo, muito embora não exclusivo, é absolutamente necessário.
[1] Não custa lembrar que o professor Ferrajoli, nascido em Florença (Itália), em 6 de agosto de 1940, atuou como juiz entre os anos de 1967 e 1975, ligado ao movimento “magistratura democrática”. Quanto à atividade docente, lecionou na Università di Camerino as disciplinas de Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito, sendo que, desde o ano de 2003, figura nos quadros da Università degli Studi Roma Tre. Tornou-se bastante conhecido no campo penal por sua teoria garantista, especialmente depois da publicação, em 1989, de Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale (Direito e Razão: teoria do garantismo penal), cuja primeira tradução espanhola data de 1995, e a edição brasileira, do ano de 2002. Destaque-se, contudo, que a produção bibliográfica de Luigi Ferrajoli não se limita à popular obra Direito e Razão, tampouco fica circunscrita à esfera penal. São inúmeros trabalhos nas áreas de Filosofia, epistemologia, ética, Teoria do Direito e democracia (dentre outras). Pode-se citar, a título de exemplo, as seguintes obras: Teoria assiomatizzata del diritto, La sovranità nel mondo moderno, La cultura giuridica nell’Italia del Novecento, La sovranità nel mondo moderno, Diritti fondamentali, La democrazia attraverso i diritti, Poteri selvaggi, La logica del diritto e Principia iuris (3 volumes).
[2] COPETTI NETO, Alfredo; FISCHER, Ricardo Santi. O Paradigma Constitucional Garantista em Luigi Ferrajoli: a evolução do constitucionalismo político para o constitucionalismo jurídico. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, Jul./Dez. 2013, p. 414. Disponível em: <http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/423>. Acesso em: 7.nov.2017.
[3] PISARELLO, Gerardo; SURIANO, Ramón. Entrevista a Luigi Ferrajoli. Isonomía – Revista de Teoría e Filosofia del Derecho, Mexico, n. 9, pp. 187-192, 1998 apud TRINDADE, André Karam. Revisitando o Garantismo de Luigi Ferrajoli: uma discussão sobre metateoria, teoria do direito e filosofia política. Revista Eletrônica – Faculdade de Direito de Franca, v. 5, n. 1, Jul. 2012, p. 4. Disponível em: <http://www.revista.direitofranca.br/index.php/refdf/article/view/156/98>. Acesso em: 10.nov.2017.
[4] CADEMARTORI, Sergio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. 2 ed. Campinas: Millennium, 2007, p. 92.
[5] CADEMARTORI, Sergio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. 2 ed. Campinas: Millennium, 2007, p. 91.
[6] MORAIS DA ROSA, Alexandre. O que é garantismo jurídico? Florianópolis: Habitus, 2003, p. 20.
[7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 7.
[8] CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 96.
[9] CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 96.
[10] Decálogo Axiomático Garantista Penal (SG). Quando e como punir? Garantias relativas à pena. Princípios de Direito Penal: A1 – “nulla poena sine crimine” (princípio da retributividade). A2 – “nullum crimen sine lege” (princípio da legalidade). A3 – “nulla lex (poenalis) sine necessitate” (princípio da necessidade) / Quando e como proibir? Garantias relativas ao delito. Princípios de Direito Penal. A4 – “nulla necessitas sine injuria” (princípio da lesividade). A5 – “nulla injuria sine actione” (princípio da materialidade). A6 – “nulla actio sine culpa” (princípio da culpabilidade) / Quando e como julgar? Garantias relativas ao processo. Princípios de Direito Processual Penal. A7 – “nulla culpa sine judicio” (princípio da jurisdicionaridade). A8 – “nullum judicium sine accusatione” (princípio acusatório). A9 – “nulla accusatio sine probatione” (princípio do ônus da prova). A10 – “nulla probatio sine defensione” (princípio do contraditório). FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 91.
[11] Ao contrário do que alguns inadvertidamente têm sustentado, o garantismo penal não constitui uma vertente abolicionista. Segundo Copetti, dizer que o garantismo defende a abolição do sistema penal é antitético ao seu próprio modelo de Direito. Não custa lembrar que Ferrajoli, diante de sua formação positivista crítica, desenvolve seu raciocínio jurídico a partir de autores como Kelsen, Hart, Ross e Bobbio, cujas obras enaltecem o Direito como mecanismo idôneo à promoção da paz (COPETTI NETO, Alfredo. A Democracia Constitucional: sob o olhar do garantismo jurídico. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 20). Vide, a título de exemplo, uma das críticas de Ferrajoli: “abolicionismo e justificacionalismo apriorísticos revelam-se, em resumo, para as hipotecas ideológicas que recaem sobre ambos, paradoxalmente convergentes na legitimação daquele obsoletismo do direito penal no qual a realidade parece concorrer com a utopia” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 317).
[12] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 311.
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Leonardo Marcondes Machado é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.
Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 12 de junho de 2018.