CECGP

Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Reforma política via plebiscito é temerária, diz Gilmar Mendes

 

DE BRASÍLIA 

A reforma política feita por meio de um plebiscito é temerária e de “difícil exequibilidade”, diz o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Para ele, a presidente Dilma Rousseff deveria ter se precavido e ouvido previamente mais os chefes dos outros Poderes e os líderes políticos antes de ter lançado a ideia. 

“Acredito até que isso evitasse alguns equívocos na própria abordagem das propostas”, afirma Gilmar em entrevista ao “Poder e Política”, programa da Folha e do UOL. Um “erro rotundo, extremamente grave” já foi abortado –a proposta de convocar uma Constituinte exclusiva. 

Gilmar: Reforma política via plebiscito é temerária (2:09) 

Mas o plebiscito continua com formatação obscura. “Tenho dúvida sobre que perguntas serão dirigidas à população, que terá de decidir sobre temas que têm perfil bastante técnico. Por exemplo: vai se adotar no Brasil o sistema alemão misto distrital e proporcional…? A população saberá distinguir?”, indaga Gilmar. 

O passo seguinte também é incerto: “Quando essa resposta vier, o Congresso vai executar como?”. Teria sido apropriado se Dilma Rousseff tivesse ouvido previamente mais pessoas. “Talvez fosse o caso de ter chamado o presidente da Câmara, do Senado, do Supremo, do TSE, as lideranças partidárias para dizer: nós precisamos priorizar a reforma política. Nós precisamos fazer uma agenda com esse foco”. 

Para o ministro, alguns itens da reforma política podem ser tratados por meio de lei, sem alteração da Constituição. Teria de ser, entretanto, uma reforma gradual. “Quando se diz ‘ah! Agora nós vamos reformar o mundo de uma vez por todas’, a gente já começa a errar”. 

Uma cláusula de desempenho eleitoral para os partidos políticos, regras de democratização interna das siglas e uma lei que comece a valer mais adiante para criar novas agremiações são dispositivos que podem ser feitos a partir de lei e não dependem de plebiscito nem de alteração constitucional. 

Mas o Congresso tem disposição para votar projetos assim? “Falar que o Congresso está em débito tem de ser visto ‘cum grano salis’ [ponderação]. Muitas vezes, essa omissão decorre da falta de articulação por parte do próprio Executivo –que tem o mais amplo apoio que já se formou nesses últimos anos”, responde Gilmar. 

Sobre como o Poder Judiciário deve responder aos protestos de rua, Gilmar cita a “tardança” no trâmite de processos. Mas isso, diz ele, já está mudando. Cita o caso da prisão do deputado federal Natan Donadon (ex-PMDB-RO), decretada na semana passada pelo STF. 

Esse caso terá impacto na execução das penas dos condenados no processo do mensalão. Gilmar fala em finalizar o processo ainda neste ano, e não em 2014 ou 2015, como já disse outro colega seu do Supremo, o ministro Dias Toffoli. 

A seguir, trechos da entrevista gravada na última quinta-feira, dia 26 de junho: 

Folha/UOL – O Supremo Tribunal Federal e o Poder Judiciário também são alvos dos protestos de rua?

Gilmar Mendes – Todo o poder constituído de alguma forma está tendo a atenção chamada por conta destes protestos. Quando as pessoas gritam contra a corrupção, estão gritando em relação ao Legislativo, ao Executivo, mas também em relação ao Judiciário. É o Judiciário que julga esses processos quando não é alvo da própria acusação.

Temos uma grande falha no sistema de justiça criminal. A toda hora noticiamos que um evento como aquele do Carandiru foi julgado 20 anos depois. Um lance importante no procedimento da reforma do Judiciário seria dar atenção específica à Justiça criminal. 

O ex-ministro Cezar Peluso defendia uma reforma que reduzisse o número de instâncias recursais. É uma boa saída para abreviar o tempo entre o início do processo, o final do julgamento e o cumprimento da pena?

A resposta pode se dar no próprio plano legislativo e até no plano jurisprudencial. 

Como assim?

Podemos tanto dizer que a partir do 2º grau já pode ocorrer a prisão se o juiz assim avaliar, se o tribunal assim avaliar. Vamos estar consoantes com todas as declarações de direito, inclusive com a Convenção Interamericana de Direitos. Portanto, não acredito que haja aqui tantos problemas. 

Mas não é necessário fazer uma emenda constitucional?

Não é necessário fazer uma emenda. E aquela emenda, que foi chamada “PEC Peluso”, tinha ainda um problema porque dizia quase que todas as decisões –e aí não era só na esfera penal, mas também na esfera civil em geral– já teriam força executória com a decisão de 2º grau. Nós teríamos uma grande insegurança. Por quê? Porque as decisões do Supremo e do STJ virariam algo lítero-poético-recreativo.

Acabou se atirando no que via e acertando no que não via. Em suma, não foi uma boa proposta. Acho que vale como metáfora. Quer dizer, nós precisamos melhorar a justiça criminal. Nesse ponto a mensagem da PEC Peluso é interessante. Acho que isso tem que ser prioridade mesmo. 

Mas teria que ser feito no âmbito do próprio Judiciário?

No âmbito do próprio Judiciário. E também pode-se fazer uma revisão ou assentar isso em regras de processo penal. Não é preciso, portanto, uma emenda constitucional para isso. 

Para um leigo entender, como funcionaria?

Dizer que em caso tais, em 2º grau e com a condenação, já se cumpra [a pena]. Ontem [26.jun.2013], nós tivemos aquele caso de um deputado de Rondônia [Natan Donandon, ex-PMDB, condenado em 2010 a 13 anos de prisão] já nos segundos embargos de declaração. Tecnicamente, não houve trânsito em julgado, mas o Tribunal disse: “Agora já é abusivo. Vamos considerar, portanto, fictamente que já transitou em julgado”. Manda-se executar a decisão. Não é mais passível de recursos. Então, talvez nós tenhamos que ter algum tipo de referencial a partir do 2º grau e deixar o tribunal avaliar se é o caso de fazer-se logo o decreto de prisão. 

O deputado Natan Donadon, do PMDB de Rondônia, foi condenado no Supremo Tribunal Federal no ano de 2010 a 13 anos de reclusão por formação de quadrilha e peculato. Nós estamos em 2013. O Supremo poderia ter tomado essa decisão de mandar prender antes?

Isso é um aprendizado. Nós agora que estamos tendo a oportunidade de chegar ao fim de um julgamento penal. Antes –como se sabe, embora tenha se alardeado que o Supremo não julgava, não gostava–, na verdade, não havia licença para que os processos fossem submetidos, uma vez que os processos dependiam de licenças da Câmara ou do Senado. Nós estamos nesse aprendizado.

O Tribunal é muito cioso na observância –e tem que ser– dos direitos e garantias individuais porque a decisão reflete não somente no caso, mas também tem um efeito irradiador para todo o sistema jurídico-penal. Mas esse é um bom exemplo. No futuro, decidindo um caso em matéria criminal, teremos que expedir logo a ordem de prisão e não ficarmos a esperar embargos de declaração, que saiam embargos infringentes ou embargos para Deus. Não faz sentido. 

O momento pelo qual passa o país ajudou o Supremo a refletir nesse caso do Donadon e tomar essa decisão nessa semana?

Não. O Tribunal vem refletindo já há muito tempo a propósito do assunto. Na gestão da ministra Ellen [Gracie] criou-se uma secretaria para gerenciar os processos criminais. Depois, houve uma série de ajustes nas várias gestões no sentido de dar prioridade aos processos, evitar as prescrições, que eram muito comuns. Especialmente com esse vai e volta de processos entre o Supremo, Procuradoria-Geral, Polícia Federal. Os próprios inquéritos acabavam tendo um caso de prescrição. Nós temos aprimorado a partir da consciência que se teve de que o Tribunal tinha que julgar sim processos criminais. 

Foi uma coincidência o caso Donadon de ter sido concluído nesta semana? Depois de duas semanas de protestos pelo país contra a impunidade?

Não está associado a isso. Pelo contrário. A própria relatora já vinha fazendo um esforço enorme de colocar o processo em pauta. 

O ministro Dias Toffoli acredita que o processo do mensalão, cujo julgamento terminou no ano passado –2012– talvez ainda dure mais um ou dois anos até transitar em julgado. É isso mesmo?

Tenho a expectativa de que nós encaminhemos esse assunto agora no 2º semestre. Com esse aprendizado institucional que todos nós estamos experimentando, creio que vamos fazer um esforço para encerrar esse assunto. O Tribunal não pode ficar refém do processo do mensalão. É preciso virar essa página. O Judiciário precisa cuidar de outros temas. Tenho a impressão de que muitos colegas estão imbuídos deste propósito. 

O Supremo analisa e julga todos os embargos de declaração do mensalão no 2º semestre?

Tenho a impressão que sim. Ao longo do 2º semestre. 

Aí há ainda embargos infringentes. O Supremo deve aceitá-los?

Nós temos que discutir essa questão tendo em vista não só a competência do Supremo Tribunal Federal, mas todas as regras de processo hoje existentes e que balizam outras cortes, os tribunais de justiça, o STJ [Superior Tribunal de Justiça], e temos que levar isso em conta. 

Qual é a sua posição?

Sou crítico dessa possibilidade. Vamos examinar os argumentos. A mim parece que o sistema já foi disciplinado a partir da própria legislação penal nova, após 88. É um tema que precisa ser discutido. Há argumentos num e noutro sentido. O próprio ministro Celso [de Mello] havia chamado atenção para essa norma do regimento. Nós temos várias normas regimentais que conflitam com as normas legais existentes. Precisamos, então, nos pronunciar de novo. É um experimento porque, como nós não nos pronunciávamos sobre a questão criminal ao fim, tínhamos então essa situação. 

Se os embargos infringentes forem aceitos, o caso do mensalão entrará em 2014?

Pode ser. Mas o prognóstico só depois do jogo. 

Mas se a métrica do caso do deputado Natan Donadon for seguida, o mensalão ainda demora para acabar…

Como tentei dizer antes, estamos aprimorando essa tecnologia de gestão de processo. A rigor, o que se passa num caso como este [de Donadon] mostra toda a irrazoabilidade e a irracionalidade do procedimento. Não é razoável que, condenado em 2010, só agora tenha a conclusão do julgamento. Evidente que isso diz respeito também a outras matérias submetidas ao Supremo Tribunal Federal de modo que nós temos que melhorar a gestão.

Nós precisamos aprimorar para evitar essa delonga. Qualquer recurso que se coloque num tribunal acaba tendo esse efeito dilatório. Por quê? Porque, burocraticamente, ele vai ser tratado e só depois vai chegar à mesa do juiz para ser encaminhado… 

Essa métrica que foi usada para o caso Donadon –três anos entre a condenação e a execução da pena– deve ser evitada a partir de agora pelo Supremo e isso se aplica ao mensalão?

Veja que isso já ocorreu em relação ao mensalão quanto à publicação do acórdão, considerando a complexidade do caso. Nós tivemos uma publicação de acórdão, bastante célere, bastante rápida, o que está permitindo já apreciar os embargos de declaração. Acredito que aqui haverá uma gestão mais adequada… 

O Supremo deve expedir os mandados de cumprimento de pena do mensalão neste ano ainda?

Não vou falar sobre os mandados ou cumprimento de pena. Mas há um ânimo, pelo menos na maioria dos ministros, de virar essa página. 

Mas encerrar é mandar cumprir a pena?

Sim. Nós estamos dizendo em encerrar esse processo. 

Isso talvez seja possível no 2º semestre?

Acho que sim. 

O Poder Executivo fez várias propostas para a sociedade, para o Congresso, por conta das manifestações de rua. O Poder Judiciário deveria ter sido ouvido?

Considerando a complexidade das propostas, todos os setores que têm responsabilidade institucional teriam que ser ouvidos previamente. Acredito até que isso evitasse alguns equívocos na própria abordagem das propostas. 

Quais equívocos?

Já na apresentação havia quase que impulsos… Por exemplo, no que diz respeito ao combate à corrupção. “Ah, transformar em crime hediondo”. Em que isso resulta? 

O Senado acabou de aprovar um projeto que vai para Câmara [e que transforma corrupção em crime hediondo]…

Sim, não há nenhum problema. Pode-se tratar [dessa forma]. Mas veja que nós já criamos outros crimes hediondos, até por iniciativa popular, mas isso não resulta claramente no combate à impunidade. Estamos muitas vezes a falar da funcionalidade do sistema, vamos chamar assim, de Justiça criminal, que envolve polícia, envolve Ministério Público e envolve a própria Justiça. Então, talvez, aqui um pacto contra a impunidade, inclusive contra os casos de corrupção, devia se focar nesse amplo aparato. Maior especialização dessas áreas, em suma, dedicação, prioridade. Como o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] já vem fazendo, por exemplo, nos chamados crimes de improbidade administrativa ou atos de improbidade administrativa. Então, esse é um ponto para o qual eu chamaria atenção. No que diz respeito também ao tema do processo constituinte, como foi chamado, a partir de um plebiscito, a meu ver esse erro é rotundo, extremamente grave. Porque no atual modelo institucional que nós desenhamos na Constituição de 88 não há espaço para essa aventura. 

A presidente já recuou sobre convocar uma Constituinte…

Até porque ela não pode. O Congresso não pode. O Supremo não pode. Não há espaço para isso. Mas digo: esse erro poderia ter sido evitado. 

A presidente foi induzida a esse erro? O que aconteceu?

Não tenho condições de avaliar. Certamente atribuiu gravidade aos movimentos e foi aconselhada a dar uma resposta. Mas para problemas complexos, às vezes há soluções simples… E erradas. E esse foi o caso. É evidente que a resposta é absolutamente equivocada. E lança o país, que está comorando 25 anos de normalidade institucional sob a Constituição de 88, num quadro de insegurança jurídica brutal. Se nós podemos chamar um processo constituinte para resolver a reforma política, seja lá o que venha a ser isso, por que também não chamar para fazer a reforma administrativa? A reforma da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento]? A reforma da Funai [Fundação Nacional do Índio]? Ou qualquer outra? 

O que o sr. acha então do plebiscito para fazer a reforma política?

Estou em dúvida sobre como operacionalizar. Nós temos a autorização no texto constitucional para esse modelo de democracia direta ou semidireta. Iniciativa popular, que vem sendo bem usada, temos tido bons exemplos aí de iniciativa, inclusive com a OAB, CNBB liderando projetos importantes na área eleitoral, captação de sufrágio, ficha limpa. Nós temos também a experiência com o modelo de referendo como aconteceu com a lei de porte de armas, em que houve um grande debate em torno disso.

Tenho dúvida sobre como se vai fazer um plebiscito e que perguntas serão dirigidas à população, que terá de decidir sobre temas que têm perfil bastante técnico. Por exemplo: vai se adotar no Brasil o sistema alemão misto distrital e proporcional…? A população saberá distinguir? Depois, quando essa resposta vier, o Congresso vai executar como? Há muitas nuances nos próprios sistemas políticos eleitorais. Haverá uma série de dificuldades operacionais. Ou será um referendo e não um plebiscito? 

A presidente deseja um plebiscito…

Então eu imagino que haverá um catálogo de questões de difícil escolha, múltiplas escolhas por parte das pessoas. Vai gerar perplexidade, já na sua elaboração, já na sua apresentação na Justiça Eleitoral, já na contagem dos votos. E depois na sua tradução em vontade no Congresso Nacional. 

O sr. acha temerário esse processo? É isso?

Parece que sim. É de difícil exequibilidade. Nós estamos vivendo um momento muito peculiar. Descuidamos de questões importantes na esfera administrativa e agora queremos correr para eventualmente dar atenção a temas que até agora não forma tratados. 

O governo não cuidou da gestão propriamente e estaria indo atrás de outras questões?

A questão da reforma política, você visita esse tema constantemente, é um tema que sempre esteve na agenda. Mas os próprios governos tiveram muita dificuldade de gerenciá-lo uma vez que ele acabava bloqueando outras pautas. Na medida em que o Congresso se concentrasse no tema da reforma política deixaria de dar atenção a outras reformas. E os governos, creio, acabaram por não priorizar [a reforma política]. Mas neste momento de crise, talvez fosse o caso de ter chamado o presidente da Câmara, do Senado, o presidente do Supremo, a própria presidente do TSE, as lideranças partidárias para dizer: nós precisamos priorizar a reforma política. Nós precisamos fazer uma agenda com esse foco. Por quê? Porque as ruas estão dizendo que há uma distância muito grande entre representados e representantes. É preciso pensar nesse modelo. Mas não sei se vai funcionar a partir de perguntas que vão ser dirigidas às pessoas –e que são perguntas inevitavelmente de perfil bastante técnico. 

Por conta da manifestações nas ruas, o Congresso e o Executivo têm tomado decisões de forma mais rápida. Pressionados, podem não tomar a melhor decisão?

Podem não tomar a melhor decisão. Tenho absoluta convicção. Nós vimos no caso da Lei da Ficha Limpa. Hoje apontam-se muitos problemas na sua execução. Por quê? Porque se queria correr para aprovar antes de entrarmos no período eleitoral. Acabam ocorrendo imperfeições.

Eu já tinha conversado sobre isso com o presidente [do Senado] Renan [Calheiros], e também com o presidente [da Câmara] Henrique [Alves], e com outros líderes, com o ex-presidente [José] Sarney: falta uma agenda para o Congresso. Independentemente da agenda governamental, das reformas que vêm sendo conduzidas, muitas delas por medida provisórias, há um espaço de discussão, das reformas na legislação. Na legislação penal, na legislação processual penal. E eu não estou falando de Código [Penal]. Sou até refratário a essa coisa de [reforma de] Código. Porque isso vira, às vezes, uma matéria de marketing político-jurídico.

Estou dizendo coisas pontuais e importantes. Uma reforma bem-sucedida patrocinada pelo governo foi a Lei de Acesso à Informação. Agora, o país se ressente de uma lei de abuso de autoridade. Nós temos um catálogo de abuso de autoridade, de A a Z. O cidadão tem a toda hora os seus direitos vilipendiados por uma autoridade, do guarda de trânsito ao juiz, ao promotor, ao delegado. E nós não temos até hoje uma lei de abuso de autoridade. A última lei foi votada no governo Castello Branco [de 15.abr.1964 a 15.mar.1967], patrocinada por Milton Campos [1900-1972], o famoso ministro da Justiça.

Há uma agenda que precisa ser vitalizada. Veja esse instituto importante do mandado de injunção, que permite que direitos sejam exercidos em razão da omissão inconstitucional. Ironia suprema: até hoje não há uma lei do mandado de injunção. Estamos falando de coisas mais ou menos óbvias. Para combater a corrupção é preciso modernizar a legislação. 

Por que a presidente da República neste momento não faz esse tipo de proposta? O Poder Executivo é muito forte no Brasil…

… E muito organizado. E tem uma assessoria muito grande. Dispersa por todos os ministérios. No governo Fernando Henrique tínhamos um arsenal de propostas que iam sendo submetidas ao Congresso Nacional. 

O que sr. achou do conjunto de cinco pactos apresentados pela presidente?

A iniciativa política é importante. Acho que pouco importa que haja retardo. É importante que haja a discussão. Hoje, nós já estamos atrasados no chamado pacto federativo. Se olharmos o quadro em 88 e agora, nós vemos o quê? Que a União está concentrando recursos. Os Estados e os municípios estão muito mais débeis nessa relação. 

Quem tem de liderar esse processo?

O Senado deveria ter um papel importante como a chamada Casa da Federação. Os governadores. Mas veja que só temos impasses. Hoje nós temos um impasse no Congresso sobre o FPE [Fundo de Participação dos Estados]. Temos um impasse sobre a guerra fiscal. Temos esse impasse sobre os royalties [do petróleo da camada do pré-sal]. Estou falando de três temas que estão ligados à questão federativa. E o governo federal não contribui para o desate dessas questões -até aqui, pelo menos- em razão de considerar que talvez venha a pagar parte da conta, seja chamado a fazer algum fundo compensatório. 

O governo federal fica omisso…?

Fica omisso nesse tema. O que está acontecendo? Uma briga entre as unidades [da Federação]. Veja o impasse do FPE. O Supremo já decidiu há quatro anos que a lei como ela foi concebida em 89 seria inconstitucional. O mesmo ocorreu com a guerra fiscal. 

Quando o Poder Executivo fica omisso sobre esse temas, abre-se um vácuo e criam-se impasses e nada anda?

Eu tenho impressão, porque pelo menos nessa temática é perceptível em relação aos entes federados. Hoje, a União transfere uma série de responsabilidades para os Estados e para os municípios. Veja o que acontece no sistema SUS [Sistema Único de Saúde]. Que é um dos temas que estão na mídia, na discussão sobre a qualidade do serviço. Ou a questão da educação. Veja que os Estados estão no Supremo Tribunal Federal impugnando a lei que fixou o piso salarial para os professores, dizendo que eles não têm condições de pagar. 

Mas se o Senado não toma a frente, quem deveria fazer isso?

Pois é. Esse é um ponto. Acho que os governadores, mas eles também estão muito dependentes. Estão colocando a questão da revisão [do limite e condições de pagamento] da dívida. Estão muito dependentes dessa relação com a União. Talvez também não tenham coordenação. Dependem dos repasses de verbas.

Tenho a impressão de que os próprios governadores poderiam liderar esse processo. É quase que incompreensível como tem acontecido. Acho que há também uma discussão na Câmara sobre uma PEC [proposta de emenda constitucional] a propósito de salário de policial.

O Congresso, sobretudo o Senado, aprova medidas que vão sobreonerar os Estados. Depois, os Estados vão ao Supremo Tribunal Federal para tentar limitar o impacto dessas medidas. Quer dizer, há algo de patológico nesse modelo. As instituições não estão funcionando nesse sistema de ‘checks and balances’ [freios e contrapesos]. 

Em que medida a conta desse problema todo pode ser debitada do Palácio do Planalto?

Em alguns temas tem havido um certo voluntarismo. Por exemplo, suponho, nessa questão dos professores talvez tenha havido um certo voluntarismo… 

… Por parte?

Por parte do próprio Executivo para aprovar uma medida que era necessária, vamos dizer. Que era um piso salarial. Acabou-se produzindo uma distorção. Faltou gradação, faltou medida política. E faltou político nessa história. O que prova o seguinte: que quando o Executivo se engaja, ele aprova. Isso tem sido, de certa forma, a rotina. Por isso que falar que o Congresso é quem está em déficit, que o Congresso está em débito, também tem de ser visto ‘cum grano salis’ [ponderação]. Muitas vezes, essa omissão decorre da falta de articulação por parte do próprio Executivo –que tem, como nós sabemos hoje, o mais amplo apoio, pelo menos, em tese, a mais ampla bancada que já se formou em apoio a um governo nesses últimos anos. 

Ou seja, o Poder Executivo teria de exercer o poder que tem…

… E arbitrar essas relações com competência, com método, com racionalidade. 

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, nesta semana defendeu, entre outros itens, a instituição do recall para políticos eleitos e candidaturas avulsas -ou seja, cidadãos que se candidatariam a cargos públicos não estando filiados a partidos políticos. Qual é a sua opinião sobre essas duas propostas?

Nós não devemos enfraquecer os partidos políticos. Devemos fortalecê-los. Fortalecer, inclusive, a democracia interna dos partidos. Talvez fazer legislação para evitar que grupos oligárquicos tomem conta dos partidos. 

Que, em geral, é o que acontece.

Em geral, acontece. Partidos que são carregados numa pasta. Os partidos políticos continuam a ser mediadores dessa relação entre o indivíduo e o Estado. É importante não perder essa percepção. Mas, se houver propostas consistentes de algum outro experimento institucional, pode-se discutir.

Agora, é preciso que se apresente isso com algum tipo de método. Não basta apenas dizer como isso vai se dar. Estamos falando de temas que exigem uma sintonia fina. Temos que observar a questão da representatividade, mas não podemos perder de vista a governança, a governabilidade. Precisamos observar se vamos produzir um sistema adequado.

Também em relação ao recall. Isso existe no modelo americano. Recentemente, foi praticado na Califórnia. Não sei se os resultados são tão espetaculares que permitam subscrever como uma fórmula ou como um método. Em suma, como um instituto de reserva, vamos chamar assim, uma reserva de competência para dizer: “Olha, em caso de estado de necessidade, nós podemos lançar…” Não pode ser uma matéria para a farmácia de todo dia. 

Em 2006, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional um trecho da lei que tratava da cláusula de desempenho. Seria possível introduzir algum conceito de cláusula de desempenho na política brasileira por meio de alguma lei ou é necessário que seja por emenda constitucional?

No meu voto, se você olhar nesse julgamento, eu sustento essa possibilidade. A rigor, nós já temos uma cláusula de desempenho que é o quociente eleitoral.

Temos um problema nesse modelo proporcional com coligação. Tanto que uma das discussões óbvias seria simplesmente suprimir a possibilidade de coligação. Com isso, haveria enxugamento das siglas partidárias no âmbito do Congresso Nacional. Mas essa é uma questão de opção política. Isso não depende de emenda constitucional.

Naquele caso [julgamento da cláusula de desempenho, em 2006], eu disse: “É inconstitucional porque, a rigor, nós optamos por matar os partidos por inanição, retirando-lhes prerrogativas, tempo de TV, fundo partidário”. Os partidos que não alcançassem o percentual [de 5% dos votos para deputado federal em todo o país]. Eu diria que seria constitucional se nós tivéssemos estabelecido em lei que o partido que não atingisse um dado percentual não teria representação no Congresso, como tem a cláusula de barreira famosa do direito alemão, a cláusula dos 5%. 

E esse dispositivo tem de ir para a Constituição?

Não. Pode ser por lei. 

Mas qual era afinal o defeito então da lei antiga?

Ela poderia ter estabelecido que, se o partido não tivesse atingido um determinado desempenho, ele não seria representado no Congresso, não haveria mandato. Essa seria a fórmula adequada a meu ver. 

Seria excluído do Congresso?

Sim. Como acontece [na Alemanha]. 

O sr. queria que a lei fosse mais dura ainda do que como foi proposta?

Sim. Acho que essa era a fórmula adequada. O que você não poderia era dar o mandato, reconhecer o mandato, reconhecer o partido e dizer: “Você vai morrer de inanição porque você já não terá mais tempo de TV”. 

Mas teria um tempo de TV pequeno…

Sim. Reduzidíssimo.

O grande erro que podemos apontar naquele caso de responsabilidade do Supremo foi ter indeferido a liminar logo que a lei foi aprovada e vir a julgar dez anos depois. E aí, julgou no sentido da inconstitucionalidade.

Isso me parece que foi o grande erro do ponto de vista de política judicial. Por quê? Porque a impressão de todo o sistema político é que o Supremo tinha dado aval à lei. E perdemos uma grande oportunidade de fazer a reforma. 

A composição do Supremo Tribunal Federal hoje poderia aceitar, portanto, uma nova cláusula de desempenho para partidos políticos por meio de lei?

Tenho a impressão de que sim. 

No Congresso criou-se o mito de que agora não se pode mais a cláusula de desempenho a não ser por emenda constitucional.

Não acredito que seja assim. Acho que é possível e acho que há vários votos –teríamos que fazer uma contabilidade– naquele julgamento que indicavam essa possibilidade. A rigor, o próprio quociente eleitoral já é uma cláusula de barreira, não é? 

O sr., portanto, não é contrário à existência de algum tipo de cláusula de desempenho?

Não. Pelo contrário, no meu voto eu disse que esse modelo que dissesse claramente que poderia cair, ao lado do quociente eleitoral, exigisse que os partidos tivessem um dado desempenho para estarem representados no Congresso Nacional seria plenamente constitucional. Estou falando a partir do plano infraconstitucional. 

O sr. acha que a reforma política deve ser ampla ou seria mais prudente escolher dois ou três itens, adotá-los e depois aperfeiçoar mais o sistema?

Não é uma reforma muito fácil por conta da dificuldade de produzir um consenso básico, uma vez que nós estamos tentando consertar o avião em pleno voo. Os atores estão aí e participando da vida política. Fazendo os seus cálculos. Qual é o sistema eleitoral mais adequado para a minha agremiação, para o meu partido?

Na experiência constitucional de outros países, essas reformas são feitas de forma gradual, com modelo de transição, de implementação deferida no tempo. É preciso que nós levemos isso em conta. Eu tenho a impressão de que quando se diz “ah! Agora nós vamos reformar o mundo de uma vez por todas”, a gente já começa a errar. 

Sobre a proposta de lei que inibe, em certa medida, a formação de novos partidos, o sr. acha que esse projeto, se aprovado, será declarado inconstitucional?

Sim. Pelo menos para a aplicação na atual legislatura. O debate em torno dessa questão nunca esteve associado à aplicação para outras eleições, mas para aplicação agora, uma vez que o próprio Supremo Tribunal Federal, apreciando o contexto da lei dos partidos, disse que os partidos que fossem formados por essa agregação de parlamentares, teriam também contabilizado o tempo de TV, fundo partidário e tudo mais.

Com essa lei aprovada, estaríamos criando um duplo standard neste momento. Daí ter se falado com muita ênfase em casuísmo.

Se esse projeto de lei fosse redefinido para valer a partir de uma determinada data, num próximo ciclo político, poderia ser considerado constitucional por meio de lei?

Sim, sem maiores dificuldades. Creio que até no meu voto isso se resulta claro [na decisão sobre a autorização para o Congresso debater o projeto].

Não requer, portanto, alteração constitucional?

Não.

É só um reposicionamento da data de validade?

Da data de validade no tempo. Tendo em vista que o próprio Congresso passou a reconhecer as prerrogativas de determinados partidos que se formaram dessa forma especial.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, tem defendido já há alguns anos que exista uma mudança na forma de punição de menores de idade que cometem crimes. O sr. tem simpatia pela proposta?

Vi essa proposta para alongar o tempo de internação em determinados casos. Não vejo nenhum problema de inconstitucionalidade. Outra questão que pode suscitar debate no próprio Supremo Tribunal Federal, claro, será a discussão sobre a chamada redução da maioridade penal. Nesse caso, certamente, vamos ter um debate agudo a propósito de cláusula pétrea, se a emenda constitucional que viesse a ser aprovada lesaria uma garantia, uma cláusula pétrea.

Agora, essa solução legal parece de difícil objeção. Eu acho que não seria questionável.

Manter por um período mais longo menores infratores que têm continuidade delitiva nos crimes…

Exatamente. Envolvidos em infrações mais graves.

Nas manifestações de rua, o que o sr. acha que leva as pessoas a protestarem também contra o Judiciário e o que poderia ser feito para consertar esse dano de imagem dos juízes?

Continua a ser a tardança no processo decisório. Os atrasos e as não providências num tempo socialmente adequado. Daí quando estive à frente do CNJ ter liderado não só os mutirões carcerários, mas também aqueles cumprimentos de metas para trazer os processos que não foram decididos até 2005, 2006, a fim de que nós estabelecêssemos um outro paradigma.

Além do atraso nos processos, os brasileiros enxergam no Judiciário certos privilégios. Por exemplo, os juízes têm férias de 60 dias. Isso deve ser alterado para melhorar a imagem do Judiciário?

Não pensaria nessa linha de melhorar a imagem do Judiciário. Eu já tinha feito essa proposta e já tinha discutido com alguns colegas a possibilidade de alguma revisão desse modelo.

Mas por que isso não é feito?

Porque há uma série de dificuldades…

Vamos pensar num pequeno Estado, como Alagoas, que tem dificuldade de manter o seu Judiciário. Se dá férias de dois meses para os seus juízes, obviamente que tem lacunas de atendimento, falta juiz substituto. Em São Paulo, nós estamos falando de 360 desembargadores. Portanto, a cada mês teríamos 60 desembargadores em férias.

Há algo de heterodoxo, de errado, nesse sistema. Poder-se-ia pensar, talvez, num período em que o Judiciário trabalhasse para se organizar. Isso ocorre conosco no Supremo Tribunal Federal. Nós temos esse período, recesso e férias, mas, em geral, quem tem o gabinete mais ou menos organizado, fica durante pelo menos um mês trabalhando.

Nós temos que rever isso. Estou absolutamente convencido que isso não se sustenta.

Temos aí muitas discussões. Essa coisa de auxílio-alimentação que foi decidido pelo CNJ e para trazer vantagens do Ministério Público. Já tive oportunidade dizer isso até no plenário do Supremo. Na verdade, as vantagens do Ministério Público é que deveriam ter sido supressas e não se fazer extensão ao Judiciário.

Em resumo, o sr. é a favor de reduzir as férias de juízes de 60 para 30 dias?

De fazer uma revisão desse sistema. Fazer um ajuste para que o juiz, por exemplo, não tivesse expediente externo num dado período, mas que trabalhasse na Vara. Mas sou a favor da revisão do modelo.

O sistema de nomeação de ministros para o Supremo Tribunal Federal deve ser mantido ou alterado?

Os modelos revelam uma cultura constitucional. A gente tem que contemplar não apenas como uma fórmula abstrata, mas como ele funciona. Se fizermos uma análise do produto, das consequências, podemos dizer que o modelo tem funcionado relativamente bem no sistema brasileiro com a escolha pelo presidente e a aprovação pelo Senado, com os debates que ocorrem.

Alguém dirá: “Ah, mas não ocorrem rejeições como no sistema americano”. Mas, de qualquer forma, hoje o processo é bastante público e leva o presidente a fazer ponderações prévias.

Não faz muito tempo, um senador me contava que na gestão do presidente Lula, ele mesmo se dirigiu ao presidente para avisar que determinado nome, se fosse submetido, seria rejeitado pelo Senado. São coisas que nós não sabemos. Que vocês também não publicam na imprensa. Mas veja que é um tipo de controle prévio que ocorre de diálogo alto entre as instituições. Então, tenho a impressão de que esse sistema funciona bem.

O ministro Luiz Fux recentemente deu uma longa entrevista revelando como foi o processo de sua nomeação, e como ele fez campanha para ser nomeado para o Supremo. Esse tipo de campanha é desejável?

Não. Acredito que não.

Eu venho de uma experiência, toda ela, muito especial. Posso falar. É claro que alguém dirá também que é privilegiada. Fui assessor de governo, advogado-geral da União. Um dia, fui chamado pelo presidente da República: “Vou indicá-lo para o Supremo Tribunal Federal”. Portanto, não fiz campanha. Posso dizer por mim. E conheço também outros casos, vários, de pessoas que passaram pelo processo de indicação da minha época que também não fizeram campanha. Pelo menos no sentido que nós estamos a falar.

Então, como evitar isso?

Isso depende muito do estamento político, do establishment num dado momento histórico. Tenho a impressão que o processo de seleção deve mudar de presidência para presidência. No governo Fernando Henrique, eu imagino, não era possível cogitar-se nesse modelo de campanha.

Esse é o modelo errado?

Eu considero equivocado.

O sr. foi advogado-geral da União, e o presidente Fernando Henrique Cardoso o nomeou. O ministro Dias Toffoli, foi advogado-geral da União, e o presidente Lula o nomeou. Há problema nessa indicação de integrantes de um governo para o STF?

Eu não vejo nenhum problema.

Sempre há críticas, de que o indicado vai para o STF para representar o governo no Supremo…

As questões têm que ser vistas no devido contexto. Quando fui escolhido, obviamente eu vinha da posição de advogado-geral da União e de serviços também na assessoria jurídica do governo, mas já com uma longa militância acadêmica, com livros publicados aqui e na Alemanha, com doutorado. As pessoas sabiam o que eu pensava, qual era o meu posicionamento. Às vezes, até me combatiam por isso. Por exemplo: “Defensor do contrato abstrato de normas. Nós não gostamos do controle abstrato de normas” ou coisa do tipo. Ou “quer transformar o Supremo numa corte constitucional”.

Em suma, eu representava um tipo de pensamento. Tanto é que eu disse isso claramente: “Essas posições eu vou defender no Supremo Tribunal Federal. Eu não vou lá para defender a União”. Mas entendo que é importante que se tenha noções, como sempre defendi, de responsabilidade fiscal. Isso era claro nos meus posicionamentos. Agora, eu acho que uma pessoa não pode ser indicada por ser assessor. Isso não pode ser. Quer dizer, ter sido advogado-geral da União, acredito, não qualifica alguém para ser ministro do Supremo. Ou ter sido procurador-geral da República.

O sr. foi alvo em 2011 de um pedido de impeachment por ter recebido presentes de um advogado que é seu amigo, Sérgio Bermudes. O pedido foi arquivado. Mas que tipo de relação deve ser normatizada entre juízes, seus amigos e advogados?

No meu caso, eu sigo as regras hoje existentes. Não vejo nenhuma dificuldade também de se fazer normatização. Receber ou não receber alguém. Por exemplo, quem me pede audiência… Eu posso até retardar, mas qualquer advogado que me peça audiência será recebido. Essa é a orientação que eu tenho no gabinete. Independentemente de ser um grande advogado ou um advogado de província, um advogado modesto.

O fato de o sujeito ser um advogado importante não lhe dá privilégio. Eu tenho a impressão de que essa é um pouco a regra no Supremo Tribunal Federal.

Agora, sempre haverá essas acusações. “Ah, fui ao jogo da seleção e a CBF me ofereceu tíquetes”. Aí se discute como se alguém fosse julgar um caso da CBF porque recebeu, eventualmente, um tíquete para ter acesso a um dado estádio. Aí me parece, realmente, algo um tanto quanto desproporcional.

Ainda que seja desproporcional, não é aquele velho caso da história da mulher de César [que além de honesta precisa parecer honesta]?

Eu não vejo que eu teria, talvez, então que recusar o almoço que muitas vezes, gentilmente, o Otavio Frias [Filho] [diretor de Redação da Folha] me oferece na Folha. E imaginar que eu vou julgar um caso da Folha favorável à Folha, porque eu fui recebido em almoço. Parece-me um tanto ingênuo. É rebaixar demais as relações. É não conhecer minimamente o funcionamento das instituições.

Ainda sobre a imagem do Supremo: as viagens das mulheres dos ministros ao exterior são pagas pelo Tribunal. O sr. acha que esse tipo de gasto é apropriado?

Em relação à viagem ao exterior há sempre muito debate. Em relação também às viagens no Brasil. No caso do Supremo, isso é absolutamente transparente. Essa é uma prática em todos os demais tribunais e também acho que no âmbito do Legislativo. Os ministros usam essa cota dentro desses limites.

Viagem para o exterior, em geral, está associada a algum tipo de evento. Nós participamos de muitos eventos no exterior na minha gestão. Parece óbvio que, quando havia a participação, a viagem de representação com a participação da esposa do anfitrião num dado país, que a mulher fosse, a rigor, por conta dos cofres públicos. Eu estive, por exemplo, na embaixada em Washington e lá estava o juiz [John Glover] Roberts [da Suprema Corte dos EUA, então presidente daquele Tribunal] com a sua esposa num evento que nós participamos. O ministro [Cezar] Peluso estava com a sua esposa, absolutamente normal. Não vejo aí nenhum problema e nenhum abuso. E isso não é escondido. Isso está em norma regulamentada nas normas do Tribunal. Acho que tem que se dizer isso à população. Explicar que isso faz parte das relações.

Nós trabalhamos, por exemplo, hoje naquilo que a ministra Ellen [Gracie, ex-ministra do STF] chamava de diplomacia no âmbito judicial. Nós trouxemos, por exemplo, para o Brasil, em 2011, a Conferência Mundial de Cortes Constitucionais em função desses contatos, dessas visitas, desses trabalhos que são trabalhos de representação que a presidência exerce. Não vejo aí nenhum problema.

Para concluir, nesse momento pelo qual o país passa, com tantas manifestações de rua, o sr. acha que o país necessariamente vai emergir melhor de tudo isso?

Tenho a expectativa de que isso vai sensibilizar os segmentos políticos de que é necessário ter um approach mais ativo no sentido das reformas. Isso diz respeito a todos os poderes. Diz respeito ao Legislativo, diz respeito ao Executivo, diz respeito ao Judiciário. Não vamos nos iludir. Acredito que a população, de alguma forma no seu grito um tanto quanto difuso, no protesto um tanto quanto aberto, no fundo está apontando problemas em todas as áreas. Muitas vezes, eles não indicam claramente, não relacionam causa e efeito. Mas é preciso que nós nos debrucemos sobre todo esse modelo para dar a devida atenção.

 Publicado por FERNANDO RODRIGUES na Folha de São Paulo (http://www.folha.uol.com.br)