Publicado por Flávio Cardoso em JusBrasil
A possibilidade de se realizar o interrogatório do réu, no processo penal, pelo sistema de videoconferência sempre despertou polêmica. Ante a oscilação da jurisprudência em relação ao tema, o legislador cuidou de disciplinar referido ato e, após longa discussão, entrou em vigor no dia 09 de janeiro de 2009 a Lei nº 11.900, alterando os artigos 185 e 222 do Código de Processo Penal e acrescentando, ainda, o art. 222-A ao referido Diploma.
É de se notar, primeiramente, que o legislador manteve como regra a realização do interrogatório do acusado solto na sede do juízo, pois deixou intacto o caput do art. 185 do Código de Processo Penal. No que toca ao réu preso, também conservou como regra a realização do interrogatório no estabelecimento prisional onde estiver recolhido, em sala destinada a esse fim, desde que estejam garantidas a segurança dos profissionais que ali vão atuar e a presença de defensor, bem como a publicidade do ato, nos termos do § 1º.
Já a utilização da videoconferência propriamente dita, vem disciplinada no § 2º do art. 185, que tem a seguinte redação:
“§ 2º Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:
I – prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento;
II – viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal;III – impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código;
IV – responder à gravíssima questão de ordem pública”.
Destaque-se que, nos termos explícitos da Lei, a medida é excepcional, ou seja, nunca é demais repetir, a regra para o interrogatório permanece como exposto acima: réu solto na sede do juízo, réu preso no estabelecimento em que se encontra recolhido. Apenas deve ser adotado o método em caso de justificada necessidade e nas hipóteses taxativamente enumeradas nos incisos do referido parágrafo.
Pelas situações permissivas elencadas no referido parágrafo, percebe-se que o legislador preocupou-se com a garantia da ordem pública, notadamente com a possibilidade de fuga do acusado, no percurso até o fórum, ou, melhor dizendo, com a possibilidade de ser ele resgatado nesse trajeto, o que nos debates sobre processo penal tem sido apontado como principal motivo para se adotar o interrogatório à distância. A “fundada suspeita” de participação em organização criminosa também autoriza a medida, mostrando o caminho que nossa legislação tem seguido de presumir o risco à ordem pública pela ligação com atividade criminosa organizada. Mas não só: qualquer questão de ordem pública, desde que gravíssima, pode constituir motivo autorizador.
Nesse aspecto, é extremamente necessário que os operadores do Direito observem a disposição em todos os seus termos, observando a excepcionalidade da medida e principalmente não permitindo que eventuais e tão comuns problemas de ordem administrativa, tais como indisponibilidade de viaturas para transporte do réu, número insuficiente de agentes para sua escolta, necessidade de economia de dinheiro público, tornem-se justificativas para a oitiva do acusado pelo sistema de videoconferência. Lembremos que a falta de estrutura para um bom desempenho da justiça criminal é resultado da incompetência do Estado, sendo-lhe vedado utilizar sua própria desídia para justificar supressão de direitos e garantias individuais da pessoa que figura como réu em ação penal.
Cuida também o Código, através da nova redação, de assegurar a participação do réu no ato processual, quando existe dificuldade para seu comparecimento, por razão de doença ou outro motivo pessoal. Insistimos que também aqui o magistrado deve se pautar por circunstâncias concretas, que indiquem a real impossibilidade de comparecimento, sob pena de se ferir as garantias individuais do réu no processo.
De difícil aplicação, em nossa ótica, a regra que prevê a oitiva do acusado por videoconferência para que ele não influencie no ânimo de testemunhas ou vítimas. Primeiro porque, como a própria lei dispõe, tal medida só será adotada se não for possível ouvir estas por videoconferência, como dispõe o novo art. 217 do Código de Processo Penal; mas o próprio art. 217 estabelece que nessa impossibilidade, o réu será retirado da sala de audiências. Segundo, porque o interrogatório é o último ato de instrução, logo, quando o acusado vier a ser interrogado, já foram colhidas as declarações da vítima e os depoimentos das testemunhas, não havendo que se falar em influência em seu ânimo. Se porventura o legislador objetiva, com este dispositivo, impedir tal influência fora da sala de audiências, então é caso de o Estado cuidar para que isso não aconteça, através de seu poder de polícia, e não de interrogatório por videoconferência.
Dispõe ainda o Código que as partes deverão ser intimadas da decisão que determina a realização do interrogatório por videoconferência com 10 dias de antecedência (art. 185, § 3º). Poderá o réu acompanhar todos os atos anteriores da audiência una pelo mesmo método (art. 185, § 4º) e, antes de ser interrogado, deverá ser assegurada a comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiências do fórum, bem como a entrevista deste com o preso, por canais telefônicos reservados (art. 185, § 5º). O preso deve contar com a presença de defensor no ambiente onde será ouvido, não bastando a presença de seu advogado na sala onde se desenvolverá a audiência de instrução e julgamento. Salutar a providência, no sentido de impedir qualquer irregularidade na realização dos trabalhos e na garantia da ampla defesa do acusado.
Por fim, esclarece nossa lei processual que, não sendo possível a realização do ato no interior do estabelecimento prisional, nem através da videoconferência, o réu preso deverá ser apresentado em juízo para seu interrogatório (art. 185, § 7º) e que todo o exposto acima se aplica à realização de atos processuais que dependam da participação de pessoa presa (art. 185, § 8º).
Devemos lembrar, contudo, que a entrada em vigor de referidas alterações não significaram a pacificação do tema, pois há muito que é discutida a viabilidade da realização do interrogatório pelo recurso da videoconferência e até mesmo sua constitucionalidade, vez que poderia ferir garantias do acusado. Boa parte da Doutrina ainda se opõe à realização do ato dessa forma.
Nos Tribunais Superiores, seguiu-se entendimento de que a medida não poderia ser utilizada por falta de previsão legal (agora superada), porém, em julgados emblemáticos, é possível se extrair posição que vai além, examinando o próprio mérito do interrogatório à distância. É o que se nota na ementa do julgamento do Habeas Corpus nº 88.914, relatado pelo Ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal:
“Limitação ao exercício da ampla defesa, compreendidas a autodefesa e a defesa técnica. Insulto às regras ordinárias do local de realização dos atos processuais penais e às garantias constitucionais da igualdade e da publicidade”.
Em famoso julgamento do mesmo Supremo Tribunal Federal (HC 90.900, relatora Ministra Ellen Gracie), foi declarada a inconstitucionalidade formal de lei paulista que permitia a realização do interrogatório por videoconferência, onde se decidiu que o Estado da Federação não tem competência para legislar sobre processo penal. É de se apontar, porém, que os Ministros Marco Aurélio e Carlos Brito votaram pela inconstitucionalidade material do ato, o que indica a possibilidade de tal caminho vir a ser adotado em eventual futuro questionamento da matéria junto ao mesmo Tribunal.
A título de ilustração, e para finalizar, cumpre anotar que a Lei nº 11.900 tornou possível a oitiva de testemunha que residir fora da comarca por videoconferência ou recurso similar, permitida a presença de defensor, podendo o ato acontecer durante a audiência de instrução e julgamento (art. 222, § 3, do CPP). Dispôs ainda, que as cartas rogatórias só serão expedidas se demonstradas sua imprescindibilidade, devendo a parte requerente arcar com os custos do envio (art. 222-A, do CPP).