Em 1970 o cineasta Glauber Rocha filmou na Espanha algumas locações do filme “Cabeças Cortadas”, reproduzindo a visão da América Latina povoada de caudilhos, de líderes religiosos e do povo usado como massa de manobra, perdido nos descaminhos do obscurantismo político. Passados tantos anos, impactado pelas cenas inacreditáveis desenroladas na Penitenciária de Pedrinhas, convenci-me da procedência da secular frase: a ficção antecipa-se a realidade. Esta é mais cruel que os delírios cinematográficos do diretor baiano, expressivo nome do cinema novo brasileiro.
Ao tempo das filmagens de Glauber o Brasil encontrava-se mergulhado na ditadura, ansiava pela luz no fim do túnel, enquanto as torturas, os desaparecimentos, os crimes contra os Direitos Humanos eram cometidos a pretexto de defesa dos valores da civilização ocidental e cristã. Veio a nova Constituição, a democracia, e os mesmos crimes continuaram a ser praticados contra a dignidade essencial da pessoa humana. Como chamar de cristã uma sociedade complacente ou tolerante com tais práticas? A socióloga Julita Lemgruber, Coordenadora do Centro de Estudos da Cidadania da Universidade Candido Mendes do Rio de Janeiro, com a experiência de ex-diretora do sistema penitenciário do Rio de Janeiro, responde a pergunta: “a guerra é contra a pobreza. Quem é preso e morto são os pobres, os negros e favelados. Quem tem o poder na sociedade está preocupado com o seu próprio umbigo. Corações e mentes não se mobilizam pela questão penitenciária”.
Julita estaria dizendo alguma inverdade? Claro que não. Todos sabem que não. Avizinham-se as eleições e muitas mentiras serão disseminadas. A situação dos presídios não dá votos, muito embora guarde relação íntima com a segurança pública. Pouco importa. As elites dispõem de segurança, enquanto o restante da população vê-se exposta a sanha dos marginais, produzidos pela pobreza, tráfico de drogas, ausência do Estado na prestação dos serviços essenciais de saúde, de educação, moradia, mobilidade urbana.
A situação carcerária do Maranhão mereceu atenção primordial dos principais órgãos de comunicação, dos jornais, emissoras de rádios e televisão, revistas semanais de circulação nacional. O impacto midiático levou o governo federal, o Ministério Público, o Poder Judiciário, e os organismos internacionais, ONU, OEA, a se manifestarem sobre o problema dos presídios do Estado. Não há articulista que não se tenha manifestado sobre o assunto.
A socióloga pondera que a situação é nacional, particularmente agravada no Maranhão, embora os dados sejam comuns e aponta: “quase 50% dos aprisionados estão em situação ilegal, foram absolvidos ou tiveram uma pena diferente de prisão. Isso se repete no Brasil”. Nada que não possa ser resolvido pela atuação de mutirões ou forças-tarefas permanentes integrando Ministério Público, Judiciário, Defensoria e OAB. Executadas as ações se teria a redução da população carcerária. Ao mesmo tempo o Executivo terá que desenvolver políticas de assistência social aos familiares dos detentos, presas fáceis nas mãos de organizações criminosas, inclusive pela omissão das políticas públicas estatais.
É difícil fazer isso? Não. Para começar é necessário existir a vontade política de parte do Executivo, Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Defensoria, OAB, todos irmanados pela mesma causa. Não basta aparecer e dar notas na hora do incêndio ou após, justificando ou apresentando propostas que depois serão jogadas na lata de lixo e no esquecimento. A sociedade civil, através de seus organismos de representação, os existentes e os futuros, cabe à tarefa da cobrança permanente aos líderes das instituições do Estado. Não há quem não deseje sair bem no filme, mas é imprescindível sair do universo da mídia para as ações concretas do cotidiano que conduzam ao efetivo funcionamento da justiça criminal.
Todos sabem: a cultura maranhense dos nossos avós repugna a violência. Nela, prepondera o humanismo e o amor às letras, o que não impediu que episódios como a Balaiada, ligada ao regime escravocrata acontecessem aqui. Os descendentes dos escravos são as principais vítimas desses episódios macabros. Para a sua eclosão concorreram a migração de marginais de outros estados e os erros crassos cometidos pela gestão carcerária. Se as providências anunciadas não forem executadas pela administração pública, eles se repetirão, e ampliando-se, atingirão os membros dessa própria elite. As ações concretas terão de ser tomadas, em defesa da população, das famílias das vítimas, dos presos e de seus familiares. A não adoção das providencias conduzirá fatalmente a novas tragédias, com elevadas perdas de vidas humanas, nelas, a realidade superará a ficção. Infelizmente novas cabeças rolarão.