Sexta-feira passada recordamos a São Luís dos anos sessenta, com pouco mais de duzentos mil habitantes, pacata, segura, onde vivíamos então o bucolismo da nossa urbe de centenárias tradições literárias e políticas. Estas últimas granjeadas na década anterior, por força dos movimentos populares deflagrados contra o grupo político liderado pelo senador Victorino Freire, ganhando em 1951, antes de Cuba, o apelido de “Ilha rebelde”.
Morávamos nos altos do comércio do meu pai, na Praça João Lisboa, verdadeira ágora, lugar de discussão da política, da literatura, dos mexericos, ali, se faziam as rodas por ordem de interesse. Nos anos da adolescência tive o privilégio de percorrê-las. Recebi aulas de civismo, de cultura, convivi com personalidades da envergadura do economista e poeta Bandeira Tribuzi; dos jornalistas Erasmo Dias e Amaral Raposo; dos estudantes Nagib Jorge Neto, José Fernandes, Nei Melo, Fernando e Emílio Santos Moreira, Laudemiro Rabelo, João Alberto e José Raimundo Campos, José Carlos Salgueiro; do vereador José Mário Santos; dos deputados Benedito Buzar e Sálvio Dino. Peco pela omissão de alguns nomes de igual importância, por lapsos de memória e pela exiguidade do espaço. Espero redimir-me ao escrever o livro relatando as estórias por mim lá presenciadas. Receberei a colaboração mnemônica dos frequentadores sobreviventes.
Na sessão comemorativa dos 28 anos de fundação da Academia Maranhense de Letras Jurídicas recebi do presidente Raimundo Marques a incumbência de apresentar Sálvio Dino, convidado pela direção da entidade a proferir palestra sobre as academias e os papeis por elas exercidos ao longo da História. O conferencista utilizou-se, com sucesso, dos recursos da rebuscada oratória de advogado criminalista. Desempenhou com maestria e brilho a tarefa deferida, remontou de início, aos tempos de Athenas, ao filósofo Platão e ao seu discípulo Aristóteles, fundadores das “academus”, escolas para o aprendizado da filosofia, das artes, dentre elas a retórica, e das ciências. O cosmos era o seu objeto de estudo. Tal como em Athenas, naquela ágora se pretendia decifrar São Luís, o Maranhão, o Brasil, o mundo. Tinha-se a pretensão de fazê-lo, e pela ousadia muito se aprendia. Digo sempre, a João Lisboa foi a minha ágora, a minha régua e compasso. Ali dei os primeiros passos para ingressar na política estudantil. Temas como a legalidade, a renúncia de Jânio e a posse de Jango; as reformas de base; a justiça social; se pautavam constantemente nas rodas de conversa. Rapidamente passou a pugna havida entre Graça Aranha e Coelho Netto em torno das finalidades das academias. Coelho, segundo Josué Montello, era o mestre do estilo retórico. Os dois maranhenses fulguravam na constelação das letras nacionais. No memorável discurso proferido na sessão da Academia Brasileira de Letras Graça asseverou: “se a Academia não se renova, morra a Academia. Morra a Grécia”. Na réplica de grande orador Coelho enfatizou: “mas eu serei o último heleno”. Em seguida enumerou os oradores dos anos sessenta, entre eles, o Cônego Ribamar Carvalho, depois acrescentei o meu tio pelo lado materno, Cônego Antônio Bonfim, os dois emulavam, e tinham torcidas aguerridas.
Celso Coutinho estava presente. Ex-prefeito de Guimarães, ex-deputado estadual, exímio orador da turma de bacharelandos de 62 da Faculdade de Direito. Lembrei-lhe que à época um imberbe secundarista, assinava com Edson Vidigal a coluna “Plantão Estudantil” no “Jornal do Dia”, nela, reproduzimos o seu discurso cheio de imprecações contra as injustiças daqueles dias.
Na apresentação de Sálvio, comecei por dizer da desnecessidade de fazê-lo, tratava-se de um homem público por excelência, continuava na ágora, na praça pública, discutindo ideias em suas crônicas semanais. O conheci na João Lisboa daquele tempo, na roda chamada de “Clube do Urucuzeiro”, onde se reuniam os mais à esquerda: nacionalistas, socialistas, comunistas, democratas-cristãos. Após o golpe de 64 teve o mandato cassado seguido de prisão. Não desistiu, prosseguiu na advocacia, defendendo os perseguidos pelo regime, depois, voltou à política, elegeu-se prefeito do munícipio João Lisboa, no sul do Estado, regressou as origens tocantinas, com a bravura típica dos sertanejos daquela região.
Nos encontrávamos nas reuniões do Conselho Editorial da OAB, depois em Grajaú, sua terra natal. Como seu conterrâneo honorifico, participei das comemorações do bicentenário da cidade, a convite do prefeito Mercial Arruda. Ao avistá-lo sempre dizia: “salve Sálvio”. O apoiei no que pude na fundação da Academia Grajauense de Letras, em homenagem a sua luta de semeador da cultura na região, berço da minha família do lado materno. Também em reconhecimento ao homem de elevado espírito de serviço público, que tanto falta faz no Brasil de hoje.
Sálvio, agora de cãs brancas é o mesmo que conheci na João Lisboa dos anos sessenta. O mesmo entusiasmo, os mesmos arroubos oratórios, como ficou comprovado no sarau literário do dia 21 passado.