Publicado por José Domingos Rodrigues Lopes em JusNavigandi
Resumo: Este artigo aborda os conceitos de integridade do Direito e da única resposta correta de Dworkin e avalia as contribuições desses conceitos para a concretização dos direitos fundamentais, base moral da comunidade política.
Palavras-chave: Integridade do Direito. Força normativa dos princípios. Concretização direitos fundamentais.
A teoria de Dworkin defende que a Constituição institui uma comunidade fundada sobre princípios, a chamada comunidade de princípios. Uma comunidade que se alicerça sobre o reconhecimento recíproco da igualdade e da liberdade de todos e cada um de seus membros. Esses princípios que constituem a base dessa comunidade são princípios que o Direito tomou emprestado da moral, uma moral de princípios extramamente abstratos e universais. Porém, o Direito, ao recepcionar esse abstrato conteúdo moral, empresta-lhe maior densidade e concretude, ao passo que a moral fornece ao Direito sua legitimidade. Esse conteúdo moral incorporado ao Direito como direitos fundamentais, submete-se ao código próprio do Direito, ou seja, funciona como Direito, e não mais como moral (CARVALHO NETO, 2013b, p. 7).
Assim, na teoria de Dworkin, o Direito é concebido como um sistema aberto de princípios e regras, ambos dotados de natureza normativa, cuja aplicação requer adequabilidade à unicidade e irrepetibilidade das características do caso concreto, sem produzir injustiça, em face aos demais princípios da comunidade, momento em que o texto normativo adquire o seu verdadeiro sentido. Eis aí a ideia da única resposta correta e o conceito de integridade do direito concebidos por Dworkin, ou seja, o direito interpretado levando-se em conta todos os princípios que estão na base da comunidade política.
O conceito de integridade, na teoria de Dworkin, possui duas dimensões. Carvalho Neto (2013b, p. 11) assim expõe os dois sentidos da integridade do Direito:
A integridade do Direito significa, a um só tempo, a densificação vivencial do ideal da comunidade de princípios, ou seja, uma comunidade em que seus membros se reconhecem reciprocamente como livres e iguais e como co-autores das leis que fizeram para reger efetivamente a sua vida cotidiana em comum, bem como, em uma dimensão diacrônica, a leitura à melhor luz da sua história institucional, como um processo de aprendizado em que cada geração busca, da melhor forma que pode, vivenciar esse ideal. Desse segundo sentido decorre a metáfora do romance em cadeia.
Para a teoria do direito de Dworkin, a tarefa fundamental de uma comunidade de princípios é exatamente densificar e interpretar reflexivamente esses princípios.
Nesse contexto, não se concebe possa ainda se falar em “lacunas do ordenamento jurídico” que impeçam a concretização de direitos fundamentais, uma vez que os princípios constitucionais, embora sejam abertos e indeterminados, são passíveis de serem densificados nas situações concretas de aplicação, segundo a sua adequabilidade à unicidade e irrepetibilidade das características do caso concreto, sendo exigido apenas que essa densificação seja feita levando-se em conta os demais princípios que compõem o ordenamento jurídico.
Tal como as regras, os princípios também têm força normativa e podem servir de base para o reconhecimento de direitos, embora esse direito não esteja totalmente delineado e definido no texto constitucional, até porque, como sabemos, nenhum princípio busca controlar previamente sua própria situação de aplicação.
No atual estágio do constitucionalismo, não se pode conceber que a concretização dos direitos fundamentais fique na dependência apenas da atuação do legislador, uma vez que, sendo os direitos fundamentais a base moral da comunidade de princípios referida por Dworkin, a sua concretização é interesse e tarefa de todos os cidadãos e é dever do Poder Público, aí incluídos a Administração Pública e o Judiciário.
Além disso, se havia alguma dúvida acerca da força normativa dos princípios em nosso ordenamento jurídico, tal dúvida foi dissipada pelo Constituinte de 1988, que estabeleceu expressamente que as normas instituidoras de direito fundamentais tem aplicabilidade imediata (art. 5, parágrafo 1, CF/88).
Aqui, a única exigência que se impõe é que se faça a diferenciação entre argumentos política e argumentos de princípio (Dworkin), bem como entre discursos de justificação e discursos de aplicação do Direito (Habermas e Günther). Scotti (2013, p. 05), ao tecer severas críticas à teoria positivista da interpretação, expõe muito bem a diferença entre argumentos de política e argumentos de princípio:
A teoria positivista da interpretação, ao igualar em essência as tarefas legislativa e judicial, especialmente diante de hard cases, nivela as distintas lógicas subjacentes, causando uma profunda confusão entre argumentos, cuja distinção é cara a toda a estrutura política das sociedades modernas: argumentos de política e argumentos de princípio. Os primeiros se referem à persecução de objetivos e bens coletivos considerados relevantes para o bem-estar de toda a comunidade, passíveis de transações e compromissos, enquanto os segundos fundamentam decisões que resguardam direitos de indivíduos ou grupos, possuindo assim um papel de garantia contra-majoritária.
Nesse sentido, o Legislativo tem à sua disposição discursos das mais variadas ordens: discursos éticos, discursos morais e discursos pragmáticos, ao passo que o Executivo e Judiciário somente podem se valer legitimamente de discursos jurídicos, com seu código binário de validade (jurídico/não jurídico), de caráter deontológico.
Por certo, na concretização de direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito de greve do servidor público, dentre outros, está-se diante de um argumento de princípio, perfeitamente possível de ser manejado seja pela Administração Pública seja pelo Poder Judiciário.
Não há que se cogitar que essa postura representaria uma violação ao princípio da separação de poderes. Esse princípio, inicialmente, foi concebido em termos rígidos e buscava evitar que o poder se tornasse absoluto. Ao longo da histórica do constitucionalismo, esse princípio sofreu diversas releituras, sendo que, no Estado Democrático de Direito, a sua releitura deve ser feita em termos dos discursos postos à disposição de cada uma das funções estatais envolvidas (execução, legislação e jurisdição).
Nesse sentido, apesar de muitos autores já terem apregoado a superação desse princípio, em verdade, o Estado Democrático de Direito está a exigir apenas que sua releitura se faça em termos argumentativos, ou seja, em termos dos discursos que podem ser utilizados pelo Legislativo, Executivo e Judiciário, a fim de que a confusão de discursos não leve novamente à concentração de poderes em um único órgão.
No entanto, a análise de diversos casos julgados do Supremo Tribunal Federal[1], permite afirmar que a referida Corte Constitucional faz uma leitura axiológica da Constituição Federal, em contraposição a uma leitura deontológica, pois, não raramente, busca solucionar o caso com a aplicação do chamado princípio da proporcionalidade, com uso de ponderação de bens, em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
A contraposição entre as leituras axiológicas e deontológicas da Constituição para a solução de conflitos entre normas, pode ser atribuída à posição doutrinária de dois autores contemporâneos: Robert Alexy e Ronald Dworkin. O primeiro concebe os princípios como valores e defende que a solução de eventuais conflitos entre eles deve ser feito mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, com uso de ponderação de bens. Já Dworkin entende que o conflito aparente entre princípios é um conflito entre normas jurídicas e, como tal, deve ser resolvido mediante o reconhecimento do caráter deontológico dos princípios, tendo em vista o caso concreto e considerando o direito em sua integridade.
No julgamento da MC na ADI 855/PR[2] e da ADC 9/DF[3], como em tantos outros casos, observa-se que o STF valeu-se da doutrina defendida por Alexy, uma vez que a Corte buscou solucionar o caso mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, numa espécie de ponderação de valores, que, como se sabe, envolve a utilização de argumentos éticos-políticos.
Azevedo (2013, p. 16) tece severas críticas ao uso do princípio da proporcionalidade para solucionar casos de conflitos entre normas, afirmando que
Se um juiz ou tribunal adota como método essa argumentação orientada por valores mais desejáveis que outros, ele acaba por impor seus próprios valores à sociedade, agindo numa espécie de tutela moral, como se sua condição de julgador lhe atribuísse um papel pedagógico sobe os cidadãos.
Porém, esse mesmo autor adverte que o Estado Democrático de Direito tem como pressuposto a existência de uma democracia pluralista e a convivência entre diferentes formas de vida sem que seja necessário sopesar ou estabelecer prioridades entre os diversos valores culturais existentes na sociedade, não cabendo ao juiz substituir os valores das partes pelos seus próprios ou por aquilo que acredita a melhor forma de bem-viver (AZEVEDO, 2013, p. 17).
Ao utilizar o princípio da proporcionalidade para solucionar os conflitos entre normas, a nossa Corte Constitucional, ao fim e ao cabo, termina por fazer uma certa confusão entre Política e Direito, entre argumentos de política e argumentos de princípios de princípios, entre discursos de aplicação e discursos de justificação, o que viola o princípio da separação de poderes, agora entendido em termos discursivos, e compromete a concretização dos direitos fundamentais, sobretudo das minorias, na medida em que pode negar validade a determinadas culturas, religiões ou preferências sexuais que não estejam de acordo com os valores morais colocados pelo juiz no topo de sua escala de valores.
Para não incorrer nesse mesmo erro, é necessário ter em mente a teoria de Dworkin, a qual defende que o conflito aparente entre princípios é um conflito entre normas jurídicas e, como tal, deve ser resolvido mediante o reconhecimento do caráter deontológico dos princípios, tendo em vista o caso concreto e considerando o direito em sua integridade, como já mencionado acima.
Assim, quando o caso envolver a concretização de direitos fundamentais, tanto o Poder Judiciário quanto o Poder Executivo podem legitimamente se valer dos chamados argumentos de princípio ou discursos de aplicação para reconhecer o direito fundamental reivindicado, ainda que esse direito não esteja totalmente delineado e definido, seja no texto constitucional seja na legislação infraconstitucional, sem que isso configure violação ao princípio da separação de poderes. .
Na solução do caso veiculado no MI 708/DF[4] (direito de greve do servidor público), por exemplo, o Poder Judiciário poderia legitimamente se valer da argumentação acima exposta para reconhecer o direito de greve aos servidores públicos, porquanto, por se tratar de um direito fundamental, cuja força normativa é reconhecida pela própria Constituição Federal, o reconhecimento desse direito estaria no âmbito da aplicação do direito e não no âmbito da legislação, portanto, um argumento de princípio e não um argumento de política.
Em conclusão, os conceitos de integridade do Direito e da única resposta correta de Dworkin levam à afirmação de que, no atual estágio do constitucionalismo, não se concebe possa ainda se falar em “lacunas do ordenamento jurídico” que impeçam a concretização de direitos fundamentais, uma vez que os princípios constitucionais, embora sejam abertos e indeterminados, são passíveis de serem densificados nas situações concretas de aplicação, segundo a sua adequabilidade à unicidade e irrepetibilidade das características do caso concreto, sendo apenas exigido que o direito seja interpretado levando-se em conta todos os princípios que estão na base da comunidade política. E a tarefa de concretização dos direitos fundamentais, base moral da comunidade de princípios, não é incumbência apenas do Poder Legislativo, mas também do Poder Judiciário e do Poder Executivo.
Referências:
AZEVEDO, Damião Alves de. Ao encontro dos princípios: crítica à proporcionalidade como solução aos casos de conflito aparente de normas jurídicas. 2008.
CARVALHO NETO, Menelick de. Texto-base 1: Público e Privado na Perspectiva Constitucional Contemporânea. Brasília – DF: CEAD/UnB, 2013a.
DWORKIN, Ronald. As ambições do direito para si próprio. Traduzido por Emílio Peluso Neder Meyer e Alonso Reis Siqueira Freire. 1984.
__________, Menelick de. Texto-base 6: Lutas por reconhecimento e a cláusula de abertura da Constituição. Brasília – DF: CEAD/UnB, 2013b.
__________, Menelick de. A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito. In: CATTONI, Marcelo (Coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 25-44.
HABERMAS, Jürgem. FATICIDADE E VALIDADE: Uma introdução à teoria discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito. 2003. Tradução: Menelick de Carvalho Netto.
SCOTTI, Guilherme. Texto-base 2: Teorias jurídicas positivistas. Brasília – DF: CEAD/UnB, 2013.
STF, ADI 855 MC/PR-Paraná, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 01/07/1993, Tribunal Pleno, DJ de 01-10-1993, p. 71.
STF, ADC 9/DF- Distrito Federal, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 13/12/2001, Tribunal Pleno, DJ de 23-04-1993, p. 06.
STF, MI 708/DF- Distrito Federal, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25/10/2007, Tribunal Pleno, DJE de 30-10-2008, p. 207.
Notas
[1] Apenas a título de exemplo, cite-se o julgamento da ADI 855 MC/PR-Paraná, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, ocorrido em 01/07/1993, Tribunal Pleno, DJ de 01-10-1993, p. 71 e o julgamento da ADC 9/DF- Distrito Federal, Rel. Min. Ellen Gracie, ocorrido em 13/12/2001, Tribunal Pleno, DJ de 23-04-1993, p. 06.
[2] STF, ADI 855 MC/PR-Paraná, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 01/07/1993, Tribunal Pleno, DJ de 01-10-1993, p. 71.
[3] STF, ADC 9/DF- Distrito Federal, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 13/12/2001, Tribunal Pleno, DJ de 23-04-1993, p. 06.
[4] STF, MI 708/DF- Distrito Federal, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25/10/2007, Tribunal Pleno, DJE de 30-10-2008, p. 207.