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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Que tal exigir evidências científicas nas decisões do seu tribunal? Por Lênio Streck.

 

Que tal exigir evidências científicas nas decisões do seu tribunal?

Não, não se assuste com o primeiro parágrafo. Isto porque, na área jurídica, epistemologia pode ser visto como um palavrão, mas é o ramo da filosofia que cuida da seguinte questão: O que podemos conhecer/compreender? A obviedade é apenas aparente; não temos uma epistemologia adequada sobre uma série de questões, das mais fundamentais. No campo de conhecimento chamado “Direito”, não há uma exigência de consistência lógica no discurso jurídico. Deveria haver. Mas não há.

Li na Folha de S.Paulo coluna assinada por Reinaldo José Lopes, intitulada Vote com Ciência. Bem, não é sobre as eleições que quero discutir. Todos sabem, não sou cientista político; sou jurista, e, portanto, falo sobre Direito. Pois é. Em tempos de ceticismos e pragmatismos, quem fala sobre Direito é quase um subversivo.

O ponto é que a coluna de Reinaldo José Lopes traz, na chamada, uma pergunta que me inspirou a fazer a coluna de hoje. Ele pergunta: “que tal exigir evidências científicas antes de aceitar os planos mirabolantes do seu candidato?”

Pois eu pergunto: que tal exigir evidências científicas antes de aceitar as decisões, “mirabolantes ou não”, do seu tribunal?

Já é de há muito que, no Brasil, convivemos com decisões das mais estranhas, incoerentes e afastadas dos mínimos limites interpretativos, sem que exijamos delas qualquer evidência científica. Por aqui, ao que parece, não temos uma epistemologia no sentido de discutir as condições de possibilidade de fazer um conhecimento rigoroso. No fundo, é buscar a prova da prova ou a fundamentação do fundamentar.

Senão, vejamos. Convido o leitor a refletir sobre algumas questões.

Quantos tribunais — STF incluso — proferem decisões que não passam por aquilo que passei a chamar, no meu Dicionário de Hermenêutica, de CHS (Condição Hermenêutica de Sentido)?

Explico — e utilizo, para tanto, o velho neopositivismo lógico — para mostrar que não inventei isso e nem a sua condição semântica de sentido (que me serviu de base para a CHS). De uma forma simples, é assim: por ela, um enunciado só é verdadeiro se passar pelo filtro da sintaxe e da semântica. Se eu digo “chove lá fora”, esse enunciado pode ser testado. Sintaticamente, correto. E semanticamente? Fácil. Basta olhar para fora. Se estiver chovendo, ótimo. Se o sol estiver brilhando, basta colocar um “não” no enunciado. Enunciado verdadeiro. Como se diz na minha terra, “batata”, uma forma agudense de dizer “bingo”.

Feita a explicação, pergunto novamente: Quantas decisões jurídicas (não) passam pela condição hermenêutica de sentido? Coloque a palavra “não” na frente dos enunciados e constate. No meu Dicionário, no verbete sobre Resposta Adequada à Constituição, uso o exemplo da decisão em que uma juíza do Rio de Janeiro nega ao detento o direito de não cortar o cabelo, enquanto que, para as mulheres, era dado esse direito. Argumento: as mulheres são mais higiênicas que os homens. Batata de novo: se eu colocar um “não”, que diferença faz? Não há qualquer possibilidade empírica de verificar a veracidade do enunciado. Do mesmo modo, quando uma decisão nega habeas corpus com base no clamor social, coloque um “não”. Que diferença faz? Como aferir o clamor? Existiria uma “clamorômetro”? E assim por diante. É batata. Não falha.

Sigamos. Agora para além do critério da CHS, lançando mão de outros critérios epistêmicos. Quantos tribunais do país descontextualizam autores e suas obras? Por exemplo: se uma decisão é proferida sustentando que o clamor social deve ser levado em conta e, para isso, é citado um autor como Konrad Hesse, a decisão não possui qualquer evidência científica, pela simples razão de que Hesse pensa o contrário disso. E assim por diante. Se a fundamentação não tem evidência, a conclusão pode estar falseada pelo raciocínio incorreto.

Retomo aqui a belíssima pesquisa de Fausto de Morais, sob minha orientação (que virou livro pela Editora Juspodivm). Em 189 decisões que fazem menção à “proporcionalidade”, em nenhuma delas Alexy foi usado de acordo com o seu criador. Em parcela delas, a tese alexiana, aplicada stricto sensu, poderia levar à conclusão contrária.

Isso não fica só em Alexy. E Dworkin, sendo utilizado para sustentar a colegialidade? Falei sobre isso com Peluso Meyer aqui. E quando se aplica Kelsen como se este fosse um positivista exegético? Ou quando se escreve, em uma decisão, que em Kelsen, o juiz deve aplicar a letra (fria — sic) da lei? Zero de evidência científica nisso. E assim por diante. É batata.

Há uma decisão importante no STF sustentada em Malatesta, quem teria dito que só o extraordinário se prova; o ordinário se presume. Lendo Malatesta, vê-se que há, nisso, zero de evidência científica. Malatesta diz o contrário. Como se contesta um enunciado sem evidência científica? Demonstrando. Indo à fonte. Basta ler a Lógica das Provas, páginas 63, 143 e 144. Logo, o voto baseado em evidência falsa não pode ser aceito como fundamento para tirar a liberdade de uma pessoa. Simples assim.

Faço outra pergunta incômoda: dos argumentos utilizados em decisões judiciais (sentenças, acórdãos), quantas (e quais) são, de fato, baseadas em argumentos jurídicos, cientificamente demonstráveis? “Decido x, e não y.” Por quê? “Porque é bom que x.” “Porque, nos Estados Unidos, é x.” “Porque xé mais eficiente.” Ou “no meu sentir”. A pergunta que cabe é: o que o Direito “diz” sobre isso? Ninguém vai ao judiciário para saber a opinião pessoal do julgador. Por exemplo: o desembargador diz que, embora ele reconheça que não pode decidir monocraticamente o tema, decide, porque ele pensa assim. A parte faz agravo interno e… leva multa. Se não faz agravo e vai ao STJ, este não conhece porquê… não foi exaurida a instância. Evidências? Científicas? Onde? Se o Direito fosse Medicina, ainda não haveria penicilina. E médicos não lavariam as mãos antes de operar. Se é que operariam.

A (COJ) Crença na Onipotência do Julgador — que hoje substitui a onipotência do legislador do longínquo século XIX — além de ser antidemocrática, produz estragos pela total falta de evidências científicas, como se pode ver em uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região em embargos de declaração. Eis a ementa que resume “fielmente” a decisão: “Embargos Declaratórios não se destinam à nova decisão ou exercícios interpretativos”. Aliás, lendo a decisão, não se entende do que se trata. E o que dizer de inúmeros julgados que dizem o contrário do que disse o TRT-4? Não se leva mais de 30 segundos no Google para encontrar evidências que apontam para o contrário do que decidiu o TRT-4. A propósito: o que seriam “exercícios interpretativos”?

Em Santa Catarina, desembargador, contra a lei, concede pensão a ex-esposa porque ela cuidou do marido doente. Como ele finaliza o voto? Assim: “É como penso. É como voto.” É preciso dizer mais alguma coisa? O que os leitores pensam? E os contribuintes?

Por que estou dizendo tudo isso? Ora, porque isso não pode ser assim. Há evidências científicas sobre o que o julgador fez constar na decisão? O que é evidência? Simples: Os autores disseram mesmo o que foi dito que disseram? Estão no contexto? E as teorias aludidas: são de quem? De onde? Têm aplicação no Brasil? O “precedente” do direito dos EUA é vencedor, mesmo, nos EUA? E, em sendo, que importância ele tem para o caso concreto?

Por que não perguntamos isso? Por que não exigimos as evidências científicas antes de aceitar as decisões dos nossos tribunais? É por nossa passividade e pelo ensino jurídico capenga[1] que se aceita que as decisões façam afirmações sem qualquer evidência científica. E existem muitas maneiras de desnudar essa falta de cientificidade. Lamentavelmente, a comunidade jurídica se contenta com meras narrativas, na maior parte de segunda mão, impedindo-se, com isso, que se possa cobrar rigor discursivo.

Ninguém é filho de chocadeira. Não há grau zero. Perdoem a dureza e a sinceridade também: a culpa é nossa.

 


 

[1] A sala de aula dos cursos jurídicos é o criatório de equívocos, que, depois, resultam em agentes públicos que proferem decisões sem evidências científicas. Se as paredes tivessem ouvidos e se os alunos contassem o que ouvem (quando não estão mexendo nos celulares), daria para fazer uma CPI epistêmica. Uma das pautas da CPIE poderia ser: o que é isto, o positivismo jurídico (há boas evidências científicas sobre o que é o positivismo, como se pode ver em obras e textos de autores como André Coelho, Bruno Torrano, Thomas Bustamante, Rafael Tomás de Oliveira, Georges Abboud, dentre outros, e no meu Dicionário de Hermenêutica, já referido). De que modo os voluntarismos (neoconstitucionalismos, etc) se dizem — sem evidências científicas — pós-positivistas? Outra pauta para a CPIE: a epidemia provocada pelo vírus do pamprincipialismo (ver verbete sobre o tema, no Dicionário op.cit). E uma CPMIPB (Comissão Parlamentar Mista Epistêmica sobre a Ponderação à Brasileira — além da obra de Fausto, op.cit, recomendo Rafael Dalla Barba, no seu Nas Fronteiras da Argumentação) abriria a caixa de pandora do ensino e da aplicação do Direito no Brasil. Batata! Ou bingo!

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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 7 de junho de 2018