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O STF não é o centro do constitucionalismo

Publicado em Os Constitucionalistas

Quem é: Daniel Sarmento é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com pós-doutorado na Universidade de Yale (EUA). Atualmente é Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Procurador Regional da República. É fundador da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ. É autor/coautor/organizador, dentre outros, dos livros Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho, Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica e Por um Constitucionalismo Inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais.

Nesta entrevista por e-mail, Daniel Sarmento conversa com o blog Os Constitucionalistas sobre escolha do Direito Constitucional, neoconstitucionalismo, constitucionalismo democrático, interpretação constitucional fora dos tribunais, controle de constitucionalidade, ativismo judicial, processo de deliberação do Supremo Tribunal Federal, reclamação como meio de revisão das decisões do STF, última palavra na jurisdição constitucional, julgamento da ADI 4.650, doações eleitorais, messianismo judicial, direitos fundamentais, democracia, processo eleitoral, papel representativo do Supremo, diálogos com Cortes Constitucionais, influência da TV Justiça, projetos da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ, onda de linchamentos no Brasil, desigualdade, Copa do Mundo 2014 e limites, lições e legitimidade das manifestações populares.

Por que o senhor escolheu o Direito Constitucional?

Vou citar três causas. Em primeiro lugar, eu sempre gostei muito de ler e estudar áreas não jurídicas, especialmente Filosofia Política, História e Sociologia. Eu acho que, no âmbito do direito positivo, o Direito Constitucional é o que dá mais abertura para esta interdisciplinaridade.

Além disso, eu também sempre fui muito sensível às injustiças e, desde que me entendo por gente, quis dedicar minha vida profissional a combatê-las. Tenho um lado da minha personalidade utópico, até meio quixotesco. Estou convencido de que o Direito Constitucional é um poderosíssimo instrumento de luta contra a opressão e injustiça de todas as naturezas. Vejam a riqueza dos princípios de conteúdo emancipatório da Constituição de 88! Como digo aos meus alunos, o Direito Constitucional pode ser uma verdadeira “arte marcial”, que, empregada por pessoas engajadas, tem como fazer a diferença na transformação da sociedade.

Finalmente, tive dois professores na graduação da UERJ que me inspiraram muito, cujos exemplos e ensinamentos me estimularam a seguir o caminho do Direito Constitucional: Luis Roberto Barroso, de Constitucional, e Gustavo Tepedino, que, apesar de professor de Direito Civil, adota uma perspectiva fortemente impregnada pelo Direito Constitucional – ele é referência central do chamado “Direito Civil Constitucional”.

A Constituição é o que o Supremo Tribunal Federal diz que é?

Definitivamente não. Há uma frase famosa do Juiz da Suprema Corte norte-americana Charles Hugues que afirmou isso – “We are under a Constitution but the Constitution is what the Supreme Court says it is” -, e esta ideia é de vez em quando repetida no Brasil, em decisões judiciais, pela doutrina ou em comentários políticos. Esta ideia me assusta. O STF é um intérprete importante da Constituição, mas não o seu senhor. Ele também pode errar – e erra às vezes. Há mecanismos sociais e políticos legítimos para lutar pela prevalência de interpretação constitucional distinta da adotada pelo Supremo. Além disso, existe interpretação constitucional fora das cortes – por exemplo, no Parlamento, no espaço público informal, nas reivindicações dos movimentos sociais, na academia -, e ela não pode ser ignorada.

O Supremo pode, no julgamento de uma reclamação, alterar o entendimento que firmou na respectiva ação de controle abstrato? Nessa hipótese, julgada improcedente a reclamação, o STF não rescindiria a decisão-paradigma?

Entendo que sim, quando a decisão anterior, proferida em controle abstrato, tiver declarado a constitucionalidade do ato normativo, mas não quando ela tiver pronunciado a sua inconstitucionalidade. Se não me engano, isto aconteceu em caso envolvendo a constitucionalidade dos critérios para definição de miserabilidade para fins de acesso ao beneficio de assistência social, previsto no art. 203, V, da Constituição. Numa primeira decisão, o STF reconheceu, em controle abstrato, a validade do critério adotado pelo legislador, de renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo per capita. Em reclamação posterior, em que se alegava ofensa à primeira decisão, a Corte reviu sua orientação original, para afirmar que outros elementos podem indicar a miserabilidade de pessoas idosas ou com deficiência, cujas famílias tenham renda superior àquela fixada pelo legislador. Penso que o STF não pode ficar vinculado de modo absoluto à sua própria jurisprudência, mesmo a firmada em controle abstrato, sob pena de se bloquear a interpretação evolutiva da Constituição e a mutação constitucional pela via jurisdicional. A reclamação pode ser um meio para que a Corte reveja seus erros ou atualize a sua jurisprudência, já que, como disse antes, os ministros são falíveis e não deuses do Olimpo.

Agora, não me parece que a decisão da reclamação seja equivalente a uma ação rescisória, que, aliás, é vedada em sede de controle abstrato de normas pelas Leis 9.869 e 9.882. É que, na minha opinião, a decisão proferida na reclamação não possui eficácia erga omnes, mas inter partes, não obstante sirva para sinalizar aos demais órgãos do Judiciário e à Administração a nova orientação do STF. Divirjo da tese de que decisões proferidas pelo STF fora das ações de controle abstrato tenham também eficácia erga omnes. Não concordo com a posição de que teria ocorrido mutação constitucional no art. 52, X, da Constituição e que agora qualquer decisão do STF em matéria de controle de constitucionalidade já possui ipso jure eficácia geral e vinculante. Acho que o texto da Constituição não comporta esta exegese.

O senhor é neoconstitucionalista? O que é o neoconstitucionalismo?

Vou inverter a ordem da pergunta. Não gosto muito da expressão “neoconstitucionalismo”, que foi popularizada no Brasil por uma ótima coletânea do professor mexicano Miguel Carbonell, que circulou muito por aqui, e por excelentes artigos do Luis Roberto Barroso. Há muitas diferenças entre autores que se dizem neoconstitucionalistas: uns defendem o positivismo – uma versão suave do positivismo, conhecida como “positivismo inclusivo” – outros são radicalmente antipositivitas; uns se dizem liberais, outros comunitaristas. O que os neoconstitucionalistas parecem ter em comum é a defesa de um novo paradigma jurídico que envolve, dentre outros elementos: a) a afirmação da centralidade da Constituição no ordenamento jurídico; b) o reconhecimento da força normativa e irradiante dos seus princípios; c) o recurso a métodos mais flexíveis na adjudicação, como a ponderação de interesses; d) a defesa da permeabilidade da interpretação jurídica a considerações de ordem moral; e) a constatação e defesa de um certo protagonismo judicial na vida política e social,  que se justificaria pela necessidade de proteção e promoção dos princípios constitucionais, especialmente os ligados aos direitos fundamentais.

No Brasil, uma crítica que tem sido feita à recepção do neoconstitucionalismo – eu mesmo a fiz em vários textos, bem como outros autores, como Humberto Ávila e Marcelo Neves – é a de que ele tem dado ensejo ao excessivo arbítrio judicial, através do que chamo de “carnavalização do princípios constitucionais”. Os princípios constitucionais, de teor mais vago, acabam servindo para tudo, no contexto de uma cultura jurídica que vê como mais cult a sua invocação do que o recurso às regras legais. Com frequência, tais princípios são empregados sem a devida fundamentação. Paga-se por isto um preço caro em termos de segurança jurídica – já que as decisões judiciais se tornam imprevisíveis –  e de democracia – pois os cidadãos ficam sujeitos aos gostos e às preferências de magistrados não eleitos.  Além disso, no cenário de “cordialidade assimétrica” em que vivemos, o recurso indiscriminado a princípios fluidos pode ser uma forma oblíqua de se legitimar o uso do “jeitinho”, em favor dos amigos e dos mais poderosos.  Estes, porém, são problemas da recepção do neoconstitucionalismo em nossas práticas judiciais, e não da teoria neoconstitucional, que não endossa este uso abusivo e pouco fundamentado de princípios abertos.

De todo modo, não me considero um neoconstitucionalista, sobretudo por uma razão. Para os neoconstitucionalistas, o Judiciário é o protagonista do Direito Constitucional. Não nego o fenômeno da judicialização da política, mas prefiro uma outra linha teórica, que, apesar de reconhecer o papel importante do Judiciário na defesa dos direitos fundamentais e proteção da democracia, afirma a centralidade dos movimentos sociais e da sociedade civil na arena constitucional. Não se trata de apenas afirmar que tais atores podem participar da jurisdição constitucional – como amici curiae ou expositores em audiências públicas – mas de reconhecer que há muito Direito Constitucional fora dos tribunais. Nesta questão, o meu pensamento se aproxima de uma corrente que é conhecida nos Estados Unidos como constitucionalismo democrático –  que não se confunde com o constitucionalismo popular, de autores como Mark Tushnet, Larry Kramer e Jeremy Waldron, refratários controle jurisdicional de constitucionalidade. Seus principais expositores são, na minha opinião, os professores Jack Balkin, Robert Post, Reva Siegel, Sanford Levinson e Barry Friedman.

O senhor participou do processo que resultou na propositura da ADI 4.650. Como nasceu a ideia dessa ação?

A ADI 4.650 questiona o financiamento das campanhas políticas por empresas, bem como os critérios hoje adotados para limitar as doações por pessoas naturais e os gastos feitos pelos próprios candidatos. A ação nasceu de uma representação que elaborei, juntamente com meu amigo Cláudio Pereira de Souza Neto. Encaminhamos a representação ao PGR e ao Conselho Federal da OAB, e este ajuizou a ação, nos exatos termos da nossa proposta.  A ideia original surgiu da nossa constatação de que as regras vigentes sobre financiamento alimentam a desigualdade, convertendo o poder econômico em poder político, e estimulam a corrupção, além de outras práticas não republicanas. Quisemos nos socorrer da jurisdição constitucional para equacionar um problema seríssimo do país, que o sistema político-representativo dificilmente resolveria por sua iniciativa própria, uma vez que os políticos que estão no Congresso e no Executivo foram eleitos por meio deste modelo viciado, e não têm, em geral, interesse em alterá-lo, pois dele se beneficiam.

O que se pede na ação nada tem de estranho à ortodoxia constitucional: busca-se que o STF invalide regras legais que violam claramente princípios constitucionais, como da igualdade, República, democracia e proporcionalidade. Inúmeros dados empíricos demonstram como estas regras sobre financiamento são nefastas para a nossa democracia, tornando a eleição dependente do dinheiro e os políticos dependentes dos seus doadores. Será que, neste cenário, alguém acredita que o “almoço é grátis”; que as grandes empreiteiras, principais doadoras, irrigam as campanhas com dinheiro por civismo?

Na primeira sessão de julgamento da ADI 4.650, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que cabe ao STF “empurrar a história” para superar os entraves da política. O senhor concorda com essa afirmação?

Sim e não. Concordo que o STF deve agir em favor dos princípios constitucionais diante do arbítrio ou descaso do sistema político. Concordo que é papel dos tribunais constitucionais atuar contra as preferências das maiorias ou dos grupos hegemônicos, quando seja essencial para preservar direitos das minorias ou das parcelas mais vulneráveis da população (que às vezes nem são minoria, no sentido estritamente numérico). Creio que foi isso o que Barroso quis dizer. Mas não concordo com a ideia de que os juízes sejam, ou devam se comportar como se fossem, sábios de toga, com a prerrogativa de reger uma sociedade infantilizada, apontando-lhes os caminhos para a redenção.

Mas, por outro lado, juízes constitucionais podem proferir decisões importantes em favor de direitos fundamentais e valores democráticos, as quais eventualmente assumem uma dimensão pedagógica, reforçando uma cultura de direitos e cidadania, e realimentando movimentos sociais emancipatórios. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos, no julgamento de Brown v. Board of Education, em 1954, e na decisão do STF sobre uniões homoafetivas. Porém, para mim, é óbvio que tais decisões só foram possíveis porque, antes delas, movimentos sociais reivindicaram na esfera pública, com eficiência, a superação do racismo nos Estados Unidos e da homofobia no Brasil. Não acredito que os juízes constitucionais sejam ou devam ser os “profetas morais” da Nação.

A sociedade pode se frustrar com o resultado da ADI 4.650? No voto-vista que proferiu, o ministro Teori Zavascki argumentou que só por messianismo judicial se poderia afirmar que, com a declaração de inconstitucionalidade, se caminhará para a eliminação da indevida interferência do poder econômico nos pleitos eleitorais. Como o senhor recebeu esse voto?

Acho que a sociedade brasileira iria se frustrar é se o STF não finalizasse logo o julgamento, sobretudo depois de se ter uma maioria já formada ….

Na verdade, a atuação do STF no caso nem contramajoritária é, pois está em plena convergência com a vontade da absoluta maioria da população, como ficou comprovado em pesquisas de opinião, mantendo também sintonia com recentes movimentos populares que têm reivindicado a depuração da nossa política representativa – o que passa, necessariamente, pela redução da influência do poder econômico sobre as eleições. A vedação de doações por empresas desagrada não ao povo, mas a alguns agentes políticos que se beneficiam do regime vigente, bem como a certos segmentos empresariais, que se valem das regras em vigor para promover seus interesses econômicos, de maneira nem sempre legítima.  A hipótese corresponde bem ao que a professora norte-americana Corinna Barrett Lain chamou de “upside-down judicial review”, que ocorre quando os órgãos representativos, em razão das suas disfuncionalidades, atuam contra as preferências da maioria, que acaba sendo “representada” pela via da atuação das cortes.

Portanto, respeito mas não concordo com o voto do Ministro Teori Zavaski. Definitivamente, não acho que seja messianismo judicial valer-se de princípios constitucionais para proteger a igualdade, a democracia e a moralidade pública. A interpretação da Constituição não é mero exercício intelectual abstrato, mas demanda a consideração da realidade concreta, sobre a qual incide o texto constitucional. E, no caso brasileiro, esta análise empírica revela os efeitos dramáticos das regras sobre financiamento sobre a nossa política representativa, que está caminhando a passos largos para se converter numa plutocracia, tamanha a influência do poder econômico sobre as eleições, como bem demonstrou o brilhante voto do Ministro Fux.

Agora, concordo que uma decisão judicial que vede doações por empresas, por si só, não será panaceia para os males da nossa política representativa. A eficácia social da decisão dependerá, em boa parte, da atuação de instituições como o Ministério Público e Justiça Eleitoral, para que haja fiscalização e punição dos que burlarem a vedação, valendo-se do caixa dois. De todo modo, acho que, ao impor o barateamento das campanhas, a decisão ajudará a combater as doações pelo caixa dois, pois tornará mais visíveis as discrepâncias entre campanhas milionárias e os valores contabilizados por candidatos e partidos.

O STF representa argumentativamente o cidadão?

Esta é uma construção do Robert Alexy, que, na minha opinião, é contrafática. Como descrição da realidade, não é adequada, mas pode ter alguma utilidade como um “ideal regulativo” sobre como deve se dar a atuação do STF. A ideia da Corte como representante argumentativo da sociedade não pode significar, evidentemente, que as inclinações majoritárias tenham sempre que prevalecer nos julgamentos – afinal um dos papéis centrais da justiça constitucional é contramajoritário –, mas sim que o Supremo deve tomar em consideração as expectativas normativas que brotam no espaço público, abrindo-se às diversas perspectivas presentes numa sociedade plural.

Às vezes se traça uma correlação entre a ideia de representação argumentativa e a realização de audiências públicas na jurisdição constitucional. Sou muito favorável às audiências públicas, à atuação dos amici curiae e a tudo o mais que possa democratizar e pluralizar as vozes presentes na jurisdição constitucional. Penso, porém, que a realidade é menos dourada do que pintam alguns otimistas. Há estudos comprovando que os ministros quase nunca citam, em seus longos votos, o que se debateu nas audiências públicas, que geralmente são presenciadas apenas pelo relator do feito.

Por outro lado, concordo com o Ministro Joaquim Barbosa, quando critica o acesso privilegiado que certos grupos econômicos e corporativos têm à jurisdição constitucional, o que pode abafar outras vozes que seriam importantes nos debates. Veja a seguinte questão: o art. 103, IX, da Constituição atribuiu legitimidade ativa às entidades de classe de âmbito nacional para a propositura de ações diretas.  A vontade clara e louvável do constituinte foi de facilitar o acesso da sociedade civil à jurisdição constitucional concentrada. No entanto, o STF tem entendimento consolidado de que só entidades que representem categorias profissionais e econômicas se enquadram no permissivo constitucional.  Por que? Por que não uma entidade nacional de mulheres, por exemplo, para questionar normas que contenham discriminação de gênero; ou uma entidade nacional do movimento indígena, para discutir questões que afetem este grupo étnico?  A limitação imposta pelo STF corresponde, em minha visão, a uma interpretação equivocada da Constituição, que contribui para afastar certos temas e vozes da arena da jurisdição constitucional, distanciando-a do ideal regulativo da “representação argumentativa”.

O Supremo é uma Corte ativista?

O conceito de ativismo é objeto de controvérsia. Há quem o utilize com carga necessariamente negativa, como os originalistas, nos Estados Unidos, que empregam o rótulo para criticar a jurisprudência progressista da Corte de Warren. É o caso, na doutrina brasileira, de Elival da Silva Ramos e de Lênio Streck. Eu prefiro adotar um uso neutro do termo, em que o ativismo denota uma atuação mais enérgica e proativa da Corte, que pode ser ou não legítima, dependendo do caso e de uma série de variáveis, que não teria como explicar aqui. Orientei uma brilhante dissertação de Mestrado sobre o tema, de Carlos Alexandre de Azevedo Campos – que deve ser publicada em breve -, em que se sustenta que o ativismo é “multidimensional”, envolvendo inúmeras facetas (Carlos Alexandre falou em ativismo metodológico, processual, horizontal ou estrutural, vertical ou intrainstitucional, dirigista, maximalista e antidialógico).

Acho que o STF tem sido ativista em algumas questões nos últimos quinze anos. Na primeira década de vigência da Constituição, a Corte era mais autocontida, talvez pela hegemonia de Ministros nomeados durante o regime militar, que não se sentiam muito confortáveis no papel de guardiães de uma nova ordem, cujos valores não compartilhavam integralmente.

Considero que a postura mais ativista da Corte foi correta em alguns casos, e equivocada em outros. A decisão sobre a união homoafetiva, por exemplo, me parece ativista, pois o STF se baseou em princípios constitucionais abstratos, de elevado teor moral, para resolver uma questão altamente controvertida na sociedade, não dando tanto peso aos elementos literal e histórico da interpretação constitucional. Foi, na minha opinião, uma excelente decisão, talvez a mais importante da história da Corte em matéria de direitos humanos, que protegeu os direitos mais básicos de uma minoria estigmatizada.  Já a decisão de Raposa Serra do Sol, na parte em que impôs condicionantes às futuras demarcações de terras indígenas, também foi ativista. Neste caso, porém, acho que foi um ativismo ilegítimo: o STF praticamente atuou como legislador e impôs graves restrições a direitos básicos de uma minoria étnica vulnerável, que estão em total desacordo com o texto constitucional e com a normativa internacional sobre direitos humanos. Ao julgar os embargos declaratórios opostos contra tal decisão, o lado negativo das condicionantes foi em certa medida suavizado, já que o Supremo esclareceu que elas não são vinculantes para outros casos, mas não foi eliminado, uma vez que tais restrições aos direitos indígenas foram confirmadas, tendendo a pautar a atuação do Judiciário brasileiro em outros processos.

O Supremo Tribunal Federal tem a última palavra?

Não. Na minha opinião, o STF não detém o poder de dar a última palavra na interpretação constitucional, nem muito menos possui o monopólio no campo da hermenêutica constitucional.  Começo do mais simples: não há monopólio interpretativo do STF. Como já disse, há inúmeros intérpretes da Constituição, como outros órgãos judiciais, o legislador, o Poder Executivo, os movimentos sociais, a imprensa, a academia etc. O professor norte-americano Sanford Levinson chamou de “protestante” a teoria constitucional que reconhece a legitimidade da atuação de vários intérpretes, e de “católica” a que afirma a autoridade exclusiva de um intérprete para definir o sentido do Constituição. A distinção vem do fato de que, para a ortodoxia católica, a única interpretação legítima da Bíblia é aquela feita pelas autoridades da Igreja, ao passo que os protestantes, desde Lutero, afirmam que cada fiel deve poder interpretar o texto sagrado à sua maneira, de acordo com a sua consciência. Sem entrar na discussão teológica – que definitivamente não é a minha praia – pelo menos no campo constitucional, a “teoria protestante” da interpretação, que reconhece a legitimidade da atuação de muitos intérpretes, é muito mais rica e democrática.

Quanto à última palavra, acho que não há resposta certa para pergunta errada. A pergunta sobre quem dá a “última palavra” me parece errada, pelo fato de que não há uma última palavra na hermenêutica constitucional. Existe – tem de existir – última palavra no processo judicial, mas não última palavra sobre o sentido da Constituição. Do ponto de vista descritivo, uma decisão judicial não tem o condão de por fim à disputa social sobre questões constitucionais controvertidas, como as que versam sobre a igualdade, dignidade humana, propriedade e sua função social etc. Os debates tendem a persistir na sociedade e não é incomum que os perdedores na arena judicial busquem mudar o resultado alcançado no espaço jurisdicional. Isto pode envolver mecanismos como a aprovação de emenda constitucional e a luta pela nomeação de novos juízes que compartilhem a sua visão sobre o tema.  Os professores Rodrigo Brandão, da UERJ, e Conrado Hübner Mendes, da USP, têm excelentes livros em que demonstram isto.

Sob o ângulo prescritivo, é ótimo que não haja última palavra, pois juízes constitucionais também podem errar e é importante que existam meios para correção dos seus erros. Não é incomum, inclusive, que juízes errem não a favor, mas contra os direitos fundamentais de grupos vulneráveis. A história é cheia de exemplos e isto tem acontecido com frequência no Direito Constitucional norte-americano contemporâneo.

Não é que eu defenda a possibilidade de invalidação política das decisões proferidas no controle de constitucionalidade – a chamada weak form of judicial review – que havia no Brasil sob a égide da Constituição de 1937, e teve o uso pervertido por Vargas, e é adotada hoje no Canadá (embora lá quase nunca seja utilizada). Há uma PEC tramitando no Congresso com este objetivo, que considero muito ruim e até inconstitucional. Mas acho, por exemplo, que invalidada uma lei pelo STF, o Congresso pode aprovar outra, de conteúdo similar, instaurando-se um diálogo entre as instituições. O STF pode mais uma vez invalidar a lei, mas também pode eventualmente rever a sua posição original, considerando os argumentos dados pelo Legislativo e pela opinião pública. Isso já ocorreu sob a égide da Constituição de 88, em questão atinente à aposentadoria especial de professores do ensino fundamental. Aliás, quando a Constituição estendeu os efeitos vinculantes das decisões do STF ao Judiciário e Administração, mas não ao Poder Legislativo (art. 102, Parágrafo 2º), me parece que o constituinte endossou esta posição. Não ignoro que há votos do STF afirmando que a Corte detém o “monopólio da última palavra” – mas acho que não funciona assim na prática, o que é bom.

É legítimo o Supremo recorrer a precedentes judiciais de outros países para interpretar a Constituição de 1988?

Acho que sim. Há uma tendência global de diálogo entre tribunais constitucionais e entre estes e as cortes internacionais de direitos humanos, que pode propiciar um benfazejo aprendizado recíproco. No Supremo, é comum a invocação de precedentes estrangeiros. Penso, contudo, que o uso do Direito Constitucional Comparado tem de ser feito de forma criteriosa, para evitar-se a importação de teorias e construções incompatíveis com nosso ordenamento positivo ou realidade social. Esta é uma advertência importante, pois não é incomum, na cultura jurídica brasileira, que se adote uma postura de emulação acrítica do que vem de fora.

Por outro lado, acho que deveríamos ampliar as fontes consultadas e invocadas pelos ministros, para além da Alemanha e dos Estados Unidos. Há países do terceiro mundo, como Colômbia e África do Sul, com jurisdição constitucional avançadíssima e que enfrentam problemas mais semelhantes aos nossos do que as nações desenvolvidas.  A jurisprudência da Corte Interamericana também deveria ser mais utilizada, não só porque tem decisões muito boas, mas sobretudo porque o Brasil se sujeita à sua jurisdição.  O Brasil é praticamente um pária em algumas questões sobre direitos humanos, como a submissão de civis a cortes militares, compostas majoritariamente por militares de carreira, que é rechaçada pela Corte Interamericana, com base em ótimas razões, que os juízes constitucionais brasileiros parecem ignorar.

A TV Justiça influencia o modo de agir, pensar e votar dos ministros do STF?

Acho que sim, isto me parece intuitivo. Soube de um estudo em andamento que comprova o aumento significativo do tamanho dos votos dos ministros depois que as sessões do plenário do STF passaram a ser televisionadas. O televisionamento provavelmente contribui para tornar as decisões mais “agregativas” e menos “deliberativas”, como sustentaram Virgílio Afonso da Silva e Conrado Hübner Mendes. É bastante provável que a exposição das sessões pela TV torne os ministros mais refratários a alterarem suas posições iniciais, depois de ouvir argumentos contrários dos colegas, talvez pelo medo de parecerem “fracos” ou “perdedores” aos olhos do público.

Mas se há uma perda em termos de deliberação interna, me parece que o televisionamento representa um ganho expressivo em termos de transparência e accountability da Corte, amplificando o seu diálogo externo com a sociedade. Considerando todos estes elementos, não defendo o fim do televisionamento, instituído por meio de iniciativa corajosa do Ministro Marco Aurélio.

O que o senhor mudaria no processo de deliberação do Supremo?

Acho muito ruim o processo de deliberação. Concordo com a imagem proposta por Conrado Hübner, de que o STF funciona atualmente como “11 ilhas” e não como uma Corte, que fale com uma só voz. Hoje é até difícil identificar a orientação do Supremo sobre temas controvertidos, pois os acórdãos contêm os fundamentos adotados pelo relator, que não são necessariamente acompanhados pelos demais ministros. Na decisão sobre a não recepção da Lei de Imprensa do regime militar, por exemplo, constou do acórdão, redigido pelo Ministro Ayres Britto, a proibição total de restrições prévias às matérias jornalísticas, inclusive as impostas por decisão judicial. Em sede de reclamação, interposta por um jornal que se insurgia contra decisão do TJ/SP que o impedira de publicar matéria sobre processo criminal envolvendo o filho do ex-Presidente Sarney, o STF afirmou que o que constava no acórdão não era a posição da Corte, mas só a opinião pessoal do relator, de caráter não vinculante. Aquela primeira decisão do STF, que afirmou a invalidade da Lei de Imprensa, teve uma dimensão simbólica extremamente positiva, ao sinalizar para a sociedade a centralidade da liberdade de expressão para a nossa democracia. Mas o processo decisório da Corte foi defeituoso, gerando incerteza e insegurança jurídica. Infelizmente, esta tem sido a regra e não a exceção.

Há várias mudanças importantes. Uma delas, proposta pelo Ministro Barroso, é a circulação prévia, entre os ministros, das minutas de votos. Isto permitiria que as posições dos colegas fossem levadas em consideração na decisão de cada julgador, fortalecendo a dimensão deliberativa do processo decisório.  A medida também pouparia tempo e energia, permitindo que os ministros, que têm uma carga de trabalho desumana, pudessem, por exemplo, ir para sessão sabendo que poderão simplesmente “seguir o relator”, sem a necessidade de preparar voto para tudo. Outras mudanças essenciais dizem respeito à necessidade de dar maior racionalidade e transparência à definição das pautas de julgamento e ao uso dos pedidos de vista. Estes últimos têm se convertido em meio de se postergar indefinidamente uma deliberação com a qual não se concorda, em que pese a previsão regimental de prazo para devolução dos autos, que na prática é letra-morta.

O que é a Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ? Por que o termo “Clínica”? Os direitos fundamentais no Brasil precisam de UTI? Quais são os outros projetos da Clínica? Quem é de fora da UERJ pode participar desses projetos? A Clínica é adepta do experimentalismo judicial?

Sou um dos fundadores da Clínica e estou muito empolgado com este projeto. A ideia de criá-la veio da constatação de que praticamente não há advocacia de interesse público no Brasil, focada em questões constitucionais. Já tinha a vontade de montar uma instituição assim na UERJ há algum tempo, mas tive agora a ajuda fundamental de duas alunas do Mestrado para concretizar este projeto – Juliana Cesário Alvim e Aline Osório. Além delas, há outros professores, alunos e ex-alunos da UERJ engajados na Clínica. É claro que nem todos tem a mesma participação nas atividades da Clínica. Eu, por exemplo, não atuo direta ou indiretamente nos processos, pois, como membro do MPF, sou impedido de advogar.  A Clínica também desempenha uma função educativa e acadêmica, capacitando nossos alunos para atuarem concretamente com direitos fundamentais.

“Clínica” é um nome já utilizado nacional e internacionalmente para este tipo de instituição. As clínicas jurídicas, muito comuns em universidades ao redor do mundo (sobretudo nos EUA), vêm se disseminando no Brasil, contribuindo para a consolidação de uma visão mais ampla sobre o papel das universidades e permitindo um diálogo maior com a sociedade civil. A atuação das clínicas é particularmente importante em contextos como o nosso, em que a atuação judicial pode ser ferramenta eficaz para o combate de violações sistemáticas de direitos humanos, especialmente de grupos vulneráveis, mas que demanda um domínio técnico do Direito, geralmente pouco acessível a estes grupos.

Acho que no Brasil, como sugerido na pergunta, alguns direitos, infelizmente, precisariam estar na UTI, mas estão fora dela, quase desassistidos. Provavelmente em estado mais grave que todos, e que piora a cada dia, estão os direitos fundamentais dos presos, encarcerados em “masmorras medievais”, como admitiu o Ministro da Justiça. Este, aliás, é um tema em que a Clínica pretende atuar, quem sabe para provocar uma intervenção mais profunda do STF na questão, como se deu na Colômbia, em que houve a declaração pela Corte Constitucional do “estado de coisas inconstitucional” do sistema prisional… A gravidade do problema, a inapetência das instâncias políticas e administrativas para resolvê-lo, bem como a resistência de outros órgãos judiciais à garantia dos direitos dos presos – que tem grandes defensores no STF, como o Ministro Gilmar Mendes –  talvez aconselhem a busca de alguma solução por este caminho.

Quanto aos projetos judiciais, além da atuação na ADI 4650, a Clínica está representando o Grupo Tortura Nunca Mais na ADPF 289, que questiona a competência da Justiça Militar para julgamento de civis. Postulou-se o ingresso do Grupo como amicus curiae na causa. E está representando a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro – ACQUILERJ, num incidente de inconstitucionalidade no TRF da 2ª Região, em que se discute a constitucionalidade do decreto que disciplina a titulação das terras quilombolas. E outras atuações estão no forno … Nosso site é www.uerjdireitos.com.br.

Quanto à participação de pessoas de fora, nossa clínica é formada por professores, alunos e ex-alunos da UERJ, mas estamos abertos a parcerias com outras pessoas e instituições, inclusive de fora do Estado.

Em relação ao experimentalismo judicial, se este for entendido como a busca de soluções criativas para problemas complexos relacionados a direitos, é esta mesmo a ideia da Clínica.

Como o senhor vê a atual onda de linchamentos? Estamos regredindo?

Vejo com muita preocupação. Caetano Veloso, nua letra de música, disse que “a mais triste Nação, da época mais podre, compõem-se de possíveis grupos de linchadores”. O linchamento é a barbárie, na sua face mais hedionda. É a encarnação mais cruel do que Boaventura de Souza Santos chamou de fascismo societal.

Dito isso, não acho que, como sociedade, estejamos regredindo. O Brasil tem avançado em questões importantes sob a égide da Constituição de 88. Não houve mais golpes, a oposição e imprensa funcionam com liberdade, os militares estão nos quartéis, o Judiciário e o Ministério Público têm a necessária independência.

Para mim, porém, temos ainda muito a fazer para enfrentar nosso problema mais grave, que é a desigualdade. Não me refiro só à desigualdade econômica, que têm diminuído no país, embora seja ainda enorme. Falo da falta de enraizamento da ideia básica de que todas as pessoas têm o direito de serem tratadas com o mesmo respeito e consideração. Aqui, o acesso a direitos ainda não se dá em bases igualitárias. A inviolabilidade de domicílio, por exemplo, vale para as residências da classe média, mas nas favelas a polícia entra na casa das pessoas quando e como quer, e até os juízes expedem mandados genéricos, às vezes englobando áreas com dezenas de milhares de casas. Certas violações de direitos continuam invisíveis, porque há pessoas que ainda “não contam” como sujeitos de direito, e, na prática, estão fora do pacto constitucional. Enquanto isso, certas compreensões estamentais persistem, como a surreal prisão especial para os portadores de diploma de curso superior.  É a entronização legal do “você sabe com quem você está falando?”… Este, porém, não é um problema novo no país – ele tem mais de cinco séculos. Ajudar a equacioná-lo é a principal tarefa do Direito Constitucional brasileiro.

É legítima a manifestação popular durante os jogos da Copa? Quais os limites? Quais as lições das manifestações de junho de 2013?

Claro que sim. É um legítimo exercício das liberdades de expressão, manifestação e reunião. Ademais, as manifestações populares são fundamentais para dar vitalidade à democracia, especialmente num contexto de crise de legitimidade das instituições representativas, como o que atravessamos. Fiquei muito empolgado com o ressurgimento destas manifestações no Brasil, desde junho do ano passado. E, no quadro atual, comungo da indignação dos manifestantes, ao ver, por exemplo, quanto se gastou para a realização da “Copa da Fifa”, considerando as carências profundas da sociedade brasileira em áreas como saneamento, educação e saúde. Ao ver também quantos direitos foram violados na realização de obras para este e outros “grandes eventos”, em que muitos milhares de famílias perderam suas casas, sendo privadas de sua moradia de forma muitas vezes arbitrária e cruel.

O limite para as manifestações é o respeito aos direitos de terceiros. Não é legítimo depredar o patrimônio público ou privado, nem muito menos atingir a integridade física ou a vida de outras pessoas. Porém, vejo com preocupação as tentativas de se criar uma nova legislação mais repressiva diante dos excessos cometidos em manifestações por grupos como os black blocks. Isto tem toda a cara de “Direito Penal do inimigo”, de feições tão autoritárias. Por outro lado, ainda mais grave do que os excessos cometidos por manifestantes foram aqueles perpetrados pelo Estado, que reprimiu algumas manifestações de forma muito violenta e arbitrária, chegando a prender pessoas porque carregavam vinagre (!!!) – usado por manifestantes pacíficos para diminuir os efeitos das bombas de gás lacrimogênio, usadas indiscriminadamente pela polícia.

Acho que a principal lição das manifestações de junho é a de que o povo tem poder, e que quando se mobiliza genuinamente, tem muito mais chance de conseguir o que pretende. Um bom exemplo foi a derrota da PEC 37, que, se aprovada, impediria o Ministério Público de investigar crimes, e aumentaria a impunidade. A PEC só caiu no Congresso porque esta era uma demanda veiculada nas manifestações.  Espero que a sociedade brasileira, que reaprendeu o caminho das ruas, passe a usá-lo com mais frequência. Para a promoção das mudanças de que o país tanto necessita, na direção do projeto generoso de sociedade contido na Constituição de 88, acredito mais na força da mobilização cívica de uma cidadania engajada do que em remédios estritamente jurídicos.

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* Nota do blog: A pedido, a presente entrevista reproduz, ipsis litteris, as respostas do entrevistado.  E também a pedido, este Conversas acadêmicas não é ilustrado com foto do entrevistado.