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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

O Periquito de Fardão

Próximo à eclosão do golpe de 64, a pretexto de combater a subversão e a corrupção, o poeta Ferreira Gullar esteve em São Luís. Os líderes do golpe, diziam-se defensores da democracia ameaçada pelos comunistas. Derrubaram o presidente João Goulart. Elegeram no Congresso, o general 0 Castelo Branco, atribuindo-lhe a missão de presidir as eleições presidenciais marcadas para 65. Como se sabe, golpes dentro do golpe impediram a realização da eleição. Os candidatos presidenciais cassados rumaram ao exílio. Estabeleceu-se a ditadura por vinte anos, sacrificando duas gerações. Deixou a lição: desconfiar sempre dos que dizem defender a democracia pela força das armas.

A visita de Ferreira Gullar naqueles dias foi muito celebrada. Tratava-se de um maranhense que vencera no Rio. Destacara-se como jornalista, trabalhando no Jornal do Brasil. Em meados dos anos sessenta era o topo da carreira para qualquer profissional da área. Sobretudo para ele, menino criado nas ruas de São Luís, conhecido pelo apelido de Periquito. Jogava peladas, dividia bolas com Canhoteiro, considerado o melhor ponta-esquerda do Brasil. Durante a visita, discutimos a evolução de sua obra poética. Filiado ao concretismo em 56, migrou para o neoconcretismo em 59. Nós, da União dos Estudantes Secundaristas, festejávamos sua adesão à arte politicamente engajada, e a inserção no Centro Popular de Cultura-CPC da UNE. Repetíamos os  jargões: “mas um dia o gigante despertou, e dele, um anão se levantou. Era um país, subdesenvolvido, subdesenvolvido…” Dizíamos, parafraseando seu livro de poesias, publicado em São Luís, em 1949:” Um pouco acima do Chão”. Agora, Gullar pisou no chão de verdade.

O responsável pelo atraso do Brasil era o imperialismo ianque. Ceifador das nossas reservas. Remetia, através de suas empresas, lucros extraordinários para as matrizes no exterior. Maniquestícamente, dividíamos os políticos em duas alas: os entreguistas e os nacionalistas, alguns deles, aliados nossos, defensores de uma sociedade mais justa e igualitária.

Ferreira Gullar, nascido José Ribamar Ferreira, era um dos nossos, punha o  talento e criatividade artística a serviço da libertação do Brasil. E assim continuou. Foi presidente do CPC; em 66, assinou com Oduvaldo Viana Filho a peça “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. A luta contra o autoritarismo prosseguiu através do teatro, da poesia, do cinema, até a sobrevinda de outro golpe, o do Ato Institucional nº 5, levando-o a clandestinidade em 70, e ao exílio em 1971.

Migrou para o Rio em 1951. Em episódio de 1950 negou-se a ler na Rádio Timbira nota acusando de subversivos os manifestantes contra a oligarquia vitorinista. Desempregado, transferiu-se para São dos Patos, bastião da Oposição, liderado pela prefeita Noca Santos, em companhia do desembargador Kleber Moreira. Lá conheceu o meu tio materno Quincas Bonfim, por ele retratado em um seriado da rede Globo.

Kléber Moreira relatava o episódio: “dormíamos no mesmo quarto: eu, Ferreira Gullar e Quincas Bonfim. No dia seguinte, íamos a uma festa em Sucupira, perto de Mirador. Sonhei que caminhávamos os três, e o do meio, o mais alto, estava sem cabeça. Na hora de nos arrumarmos para ir à festa, lembrei-me do sonho, e vi que Quincas era o mais alto”. Disse-lhes: “não vamos a essa festa, vai dar problema”.

Quincas respondeu: “que nada vamos para a festa”. Não deu outra, montaram uma confusão e o assassinaram a mando de um capitão da policia encarregado de amedrontar os oposicionistas. O alvo era Quincas Bonfim, alto, forte, e destemido.

Em 1996, Gullar escreveu a biografia “Nise da Silveira, uma psiquiatra rebelde”. A biografada, ligada a corrente junguiana, dava aos sonhos valor considerável nas aplicações terapêuticas. É verdade, a vida mesmo não passa de um sonho, para ele, por nós inventado.

No exterior entre 71 e 77, elaborou “O Poema Sujo”. Nova canção do exílio, considerada obra prima da literatura universal, escrita em Buenos Aires, entre maio e outubro de 75. É nome de Avenida em São Luís e de Teatro em Imperatriz. Recentemente a Academia Brasileira de Letras-ABL o elegeu para a cadeira 37.

O historiador José Murilo de Carvalho relata: “foi uma longa luta para convencê-lo. Os bons candidatos não precisam de Academia”. De acordo. Eles é que imortalizam a instituição. Quem imortalizou a ABL foi Machado de Assis.

Sua primeira reação após a eleição: “meus amigos de vagabundagem em São Luís vão dizer, ih, é o Periquito de Fardão”.

Considero seu poema “Um Instante”, o ponto de interseção entre o momento poético e o místico: “aqui me tenho/ Como não me conheço/ Nem me quis/ Aqui me tenho sem mim/ nada lembro nem sei/ à luz presente/ sou apenas um bicho transparente”.

Penso: Periquito merece é o Nobel de Literatura. E não é bairrismo não.

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