CECGP

Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

O justo é a Constituição

Publicado por Léo Rosa em JusBrasil

As cidades são um amontoado de tudo, mas nos semáforos, no calor, no barulho, na poluição que se respira, as cidades se excedem no que são de pior. E sobre tudo isso vem a mulher: “Moço, meu filho tá doente. Uma esmola pelo amor de deus!” O motorista despeja sobre a pedinte a sua compreensão das coisas do mundo: “Essas coisas me enojam… Usar o filho para pedir trocado. Neste calor, nesta fumaça, neste inferno, usar o coitado… É por isso que a criança está doente.”

A esposa do motorista é solidária: “Alguém devia fazer alguma coisa. Sei lá! Esses animais não merecem a maternidade. Deviam tirar-lhe essa criança, doá-la para alguém. Triste viver num país sem autoridade, sem ordem. Se ninguém desse atenção para essa corja, a gente não tinha que passar por esses constrangimentos. Uma mãe irresponsável, neste calor, neste barulho, neste inferno, chantageando com uma criança que nem sei se está doente.”

Volta a bravura marital: “A minha vontade é de dar porrada na cara dessa gente. Não trabalham, maltratam os filhos. Olha o calor, olha a poluição… Não vou te dar nada. E para de usar a criança para sugar dinheiro sem trabalhar. Porra! Se te vejo de novo, chamo a polícia, o juizado de menores, sei lá, qualquer autoridade desse país de merda que ponha ordem nisso. E deixa de ser vadia, e vai arranjar serviço, que isso não falta pra quem não é vagabunda.”

O sinal esverdeia, o carro arranca com violência. A mulher, nem triste nem alegre balbucia um “deus te abençoe!” sem ironia e sem convicção. Então suspira, mira o filho com ternura, mas com cansaço. Desentende as razões da brabeza do homem, fica triste com a mulher que não a compreendeu, que, afinal, “também devia ser mãe”. Olha pro céu: “lá mora Jesus, lá, bem longe da gente.”

Algo lhe pesa. Talvez a fome, quem sabe o cansaço, vai ver é mesmo como disseram do carro: o calor, a fumaça, a poluição. Não sabe. Sente-se vencida, arrastada para um fundo que não chega. Então, fala ao filho: “Tu me seguras, não é? Tu me levantas como se fosses um anjinho lá do céu. Não te preocupes, anjinho meu, alguém vai ajudar, a senhora mãe de deus vai entender, vai interceder por nós. Alguém vai dar um dinheiro, vamos comprar remédio… E um bife e arroz, vai fortalecer o leite… Vamos comer, tu e eu.”

A mulher embala o filho, ergue-o muito próximo. Com o seu rosto, acaricia o rosto do neném. E diz de si para consigo: “Esse cheiro… Mamãe vai ganhar um dinheiro, deus vai olhar por nós, vai comprar fralda… Esse trapo imundo e fedorento… Mamãe vai te dar banho, vai te trocar… Neném vai ficar cheiroso… Mamãe vai te cuidar… Sabes filho? Quando seu coraçãozinho começou a bater aqui dentro, ele batia mais forte do que seu pai batia em mim. Deus foi tão bom ao me dar um filho. Eu nunca tive nada, até deus te dar pra mim. Tu és como um brigadeiro, meu neném.”

Ficou refletindo. De um sobressalto, acordou. Pôs-se de volta ao semáforo: “Tenho que trabalhar”: E retoma: “Uma esmola pelo amor de deus. É pra comprar remédio pro meu filho.” Alguém lhe lança uma moeda pela fresta de janela que garante distância e salva a consciência que quer ser prestativa e praticar sua “boa ação”. A mulher se enche de esperança: “Viste, deus iluminou aquela alma caridosa. Que nossa senhora cuide de ti, moça! Essa moeda não é só um dinheiro, é um sinal da bondade.”

Pensou que queria saber o nome da moça, mas queria mais que a moça quisesse saber o seu. Pensou no futuro do filho, que de algum modo ia ser alguém, deus havia de cuidar que fosse. Então teve que pensar em comida, pois a fome a moveu. Olhou pra moeda, espantou-se: “Não vai dar! Eu estou com fome. Tenho que comer… Tenho que dar de mamar. Estás com fome, bebê? Não? Não dás trabalho, minha joia preciosa. Tu és minha riqueza… Ninguém é mais rica do que eu. Que soninho gostoso, né, neném?”

Cansada, a mulher sentou-se sob um cartaz: Curso de Direito. Congresso. O Justo é a Constituição. Pensou que isso era coisa dos humanos, que justo era deus, que sempre cuida dos seus. Animou-se e contou ao filho: “Eu tive um sonho. Foi bonito. Foi no céu. Chegou a virgem Maria, ela nos recebeu, cheia de compaixão. Mas deu vergonha. A gente tão magrinha, toda suja, mal vestida, naquele lugar tão lindo, cheio de gente gordinha. Não combinava. Deu vontade de entrar pelos fundos.”

Ficou com a mãe de deus na imaginação. “Sabes? Caiu uma lágrima dos olhos dela. Não sei como ela sofre, se está lá com o menino Jesus. Sabes? Vieram uns anjinhos e te deram banho”. Mas algo a trouxe para o mundo cão: “Filho, contigo tudo fica mais fácil. Não queres mesmo mamar? És tão bonzinho. Não incomodas. Nem choras, meu filho. É que sabes que tudo vai melhorar, não é, filhinho? Logo vamos comprar teu remédio, está bom?” Fumaça, calor, barulho. Suspirou, agoniada. Algo a incomodava: “E este mau-cheiro que não passa.”