Publicado por Mariene Alves em JusBrasil
Apesar do objetivo de ressocializar o apenado estar presente na Lei de Execução Penal, estabelecendo que se deve respeitar a integridade física e psicológica dos preso e elucidando que a pena objetiva promover condições para que o detento se reintegre harmonicamente à vida social, a referida lei, contudo não tem alcançado os resultados almejados.
A situação do sistema carcerário brasileiro não apresenta condições para a realização do trabalho de recuperação dos presos.
Além da carência de programas eficazes para a efetiva ressocialização, são incontáveis os problemas aos quais nos deparamos nos estabelecimentos prisionais. Todos os dias, os presídios e penitenciárias, já superlotados, recebem um número inaceitável de novos indiciados, processados ou condenados, sem que haja estrutura mínima para tal.
A superpopulação carcerária colabora para a condição deprimente dos presídios brasileiros, não há respeito com os presos e nem entre os mesmos, violência é algo comum, inclusive sexual; drogas, celulares entre outros objetos também proibidos entram graças à corrupção, os detentos vivem, majoritariamente, em total ócio, empilhados em celas minúsculas e insalubres. Essas e outras circunstâncias revelam a situação precária encontrada dentro dos presídios e a extraordinária dificuldade em se alcançar a ressocialização do condenado graças a essa situação a qual ele é submetido.
A exibição de César Barros Leal, apesar de ter mais de 15 anos, ainda consegue ser atual em relação às condições dos detentos e revela a realidade da falida instituição carcerária:
“De fato, como falar em respeito à integridade física e moral em prisões onde convivem pessoas sadias e doentes; onde o lixo e os dejetos humanos se acumulam a olhos vistos e as fossas abertas, nas ruas e galerias, exalam um odor insuportável; onde as celas individuais são desprovidas por vezes de instalações sanitárias; onde os alojamentos coletivos chegam a abrigar 30 ou 40 homens; onde permanecem sendo utilizadas, ao arrepio da Lei 7.210/84, as celas escuras, as de segurança, em que os presos são recolhidos por longos períodos, sem banho de sol, sem direito a visita; onde a alimentação e o tratamento médico e odontológico são muito precários e a violência sexual atinge níveis desassossegantes? Como falar, insistimos, em integridade física e moral em prisões onde a oferta de trabalho inexiste ou é absolutamente insuficiente; onde os presos são obrigados a assumirem a paternidade de crimes que não cometeram, por imposição dos mais fortes; onde um condenado cumpre a pena de outrem, por troca de prontuários; onde diretores determinam o recolhimento na mesma cela de desafetos, sob o falso pretexto de oferecer-lhes uma chance para tornarem-se amigos, numa atitude assumida de público e flagrantemente irresponsável e criminosa?” (1998, pág. 87-8)
Desta forma as penitenciárias, ao invés de cumprirem a função de reeducar e ressocializar o detento, para que este, após cumprir a sua pena, se restabeleça na sociedade, na verdade cria um ambiente hostil, uma verdadeira escola do crime.
A submissão do preso a todas essas experiências carcerárias vai repercutir na assimilação da cultura prisional por meio de um fenômeno conhecido como prisionalização ou institucionalização. Atualmente esse processo é estudado por sociólogos, psicólogos, psiquiatras e juristas demonstrando a maneira como os reclusos são moldados pelo ambiente institucional mesmo após a sua libertação. É a partir da prisionalização que as atitudes, tradições, valores e costumes impostos pela população carcerária são absorvidos pelos novos detentos. É o processo de adaptação a sua nova realidade, e até mesmo de sobrevivência. Visto que dentro do sistema carcerário não há uma divisão entre os presos por periculosidade ou por tipos de personalidade.
As transformações variam e atingem o indivíduo em diversos níveis, tais como no hábito de comer e agir, em como se relacionam com seus familiares, e nas formas de se comunicar. Esse impacto pode ocorrer em dimensões muito maiores, danos psicológicos e sociais que variam desde o aumento da agressividade à extrema passividade. Como uma das consequências, tem-se o alto índice de pessoas que reincidem no crime.
Reincidir significa praticar, depois de ter sido condenado, uma nova contravenção ou crime, com a mesma natureza da anterior ou não. A reincidência encontra-se prevista no artigo 63 do Código Penal Brasileiro nos seguintes termos:
“Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.”
A reincidência nada mais é do que o reflexo do tratamento recebido pelo apenado. Durante seu encarceramento ele teve não só sua liberdade restringida, mas também sua dignidade, conviveu com inúmeras situações pavorosas, detentos de periculosidades diversas, foi submetido ao triste cenário do sistema carcerário brasileiro, e com pouco atendimento médico, quase nenhum acompanhamento psicológico; e, se já não fosse suficiente, ao retornar para a vida em sociedade ele estará estigmatizado como ‘ex-detento’, sendo muitas vezes excluído e rejeitado, terá dificuldades em se reempregar, será basicamente um marginalizado.
Antonio García-Pablos y Molina manifesta-se quanto ao retorno deste cidadão para a sociedade, afirmando que:
“A pena não ressocializa, mas estigmatiza, não limpa, mas macula, como tantas vezes se tem lembrado aos ‘expiacionistas’: que é mais difícil ressocializar a uma pessoa que sofreu uma pena do que outra que não teve essa amarga experiência; que a sociedade não pergunta por que uma pessoa esteve em um estabelecimento penitenciário, mas tão-somente se lá esteve ou não.” (1988, pág. 41)
Essa realidade na volta à liberdade, o desamparo, o desemprego, o descrédito, a desconfiança e o desprezo muitas vezes leva o cidadão de volta ao mundo do crime, por perder as expectativas ou não ter melhores opções. Além de que ele, diversas vezes, será mais bem acolhido pelos seus antigos colegas da prisão, do que pelos amigos e conhecidos de antes da reclusão.
Com esta realidade a ressocialização parece uma mera utopia, um discurso ideológico que funciona perfeitamente no papel, porém não é de fato aplicado nas instituições.•.
É inegável a diferença entre o que é aconselhado pela nossa legislação e a realidade. A falta de políticas públicas e o descaso com as normas existentes fazem com que a ressocialização não aconteça.
São inúmeras as demonstrações da falência do sistema prisional, os índices de reincidência são altíssimos, e os órgãos de comunicação sempre noticiam problemas de superlotação, rebeliões, motins, fugas, ou até mesmo como apesar de presos os chefes de quadrilhas continuam a controlar o crime de dentro das cadeias. Isso tudo acaba por estampar de forma pública e notória a total ineficiência do Estado na recuperação e ressocialização do apenado e demonstrando o caos vivido pelo sistema penitenciário brasileiro.
Sendo a pena de prisão não apenas uma forma de castigar o indivíduo, mas também de orientá-lo para que ele retorne ao convívio em sociedade e não venha a reincidir, é necessário garantir ao apenado condições mínimas para tal. Não há como acreditar na ressocialização sem que se crie politicas carcerárias que visem garantir a dignidade do preso. Um cidadão que comete um crime não vai se reabilitar caso ao ser privado de sua liberdade, de sua família e amigos, tiver que conviver com pessoas ainda mais cruéis, num ambiente hostil e insalubre, sem respeito, segurança, sem ocupação. A pena, da forma como aplicada hoje, busca apenas o castigo.
“[…]modelo ressocializador propugna, portanto, pela neutralização, na medida do possível, dos efeitos nocivos inerentes ao castigo, por meio de uma melhora substancial ao seu regime de cumprimento e de execução e, sobretudo, sugere uma intervenção positiva no condenado que, longe de estigmatizá-lo com uma marca indelével, o habilite para integrar-se e participar da sociedade, de forma digna e ativa, sem traumas, limitações ou condicionamentos especiais.”(MOLINA, 1998, pág.383)
Infelizmente, enquanto o objetivo ressocializador constante do sistema punitivo do nosso país não é de fato observado, seremos obrigados a conviver com ex-apenados que não foram devidamente ressocializados e não estão prontos para retornar à vida em sociedade.
Referências
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. 2. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 14. Ed., rev., atual. E ampl. São Paulo: Saraiva 2009.
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. Causas e Alternativas. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1993.
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1997.
BONGER, W. A. Introduccion a la Criminologia. México: Fondo de Cultura Económica, 1943.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal 3. Ed., t. I Rio: Forense, 1967.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 15 ed. São Paulo. Saraiva, 2011.
CARRARA, Sérgio. Crime e Loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998.
CARVALHO NETO, Inacio. Aplicação da Pena. Rio de Janeiro. Forense, 1999.
COHEN, C. Et al. Saúde Mental, Crime e Justiça. São Paulo: EDUSP, 1996.
DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. 2. Ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 1998.
DOTTI, René Ariel. Casos Criminais Célebres. 3. Ed. Rev., ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
GARCIA, Antonio -Pablos y MOLINA, Régimen abierto…, REP, n240, 1988
GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. 4. Ed. Rev., atual. E ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
HASSEMER, Winfried. Três temas de Direito Penal. Porto Alegre: Fundação Escola Superior Do Ministério Público, 1993.
JESUS, Damásio E. De. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, v.1, 1983.
LEAL, César Barros. Prisão: Crepúsculo de uma era. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 5. Ed. São Paulo. Atlas, 2014.
MACEDO, G. De. Criminologia. 2. Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1977.
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas, SP: Millennium, 2002. 4 v. ISBN 8586833576 (v. 1)
MIRA Y LOPEZ, E. Manual de Psicologia Jurídica. 2. Ed. São Paulo: Impactus, 2008.
MIRA Y LOPEZ, Emílio. Manual de Psicologia Jurídica (tradução e notas Ricardo Rodrigues Gama). 2. Ed. São Paulo. LZN, 2005.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direto Penal, Parte Geral. 22. Ed. São Paulo. Atlas, 2005.
NAFFAH NETO, A. A subjetividade enquanto éthos. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, vol.3, 1995.
OLIVEIRA, F. A. De. Manual de Criminologia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1992.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Júris, 2006.
SEGRE, M. Introdução à Criminologia. In: COHEN, C. Et al. Saúde mental, Crime e Justiça. São Paulo: EDUSP, 1996.
SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, Jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
ZAFFARONI; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 4. Ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.