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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Mantenho a tese: é inconstitucional repristinar a separação

Publicado por Flávio Tartuce em JusBrasil

Os ilustres juristas Lauane Volpe Camargo, Luiz Henrique Volpe Camargo e Dierle Nunes publicaram repto ao meu artigo no qual defendi a tese de que a tentativa de ressuscitar a separação judicial feria a Constituição. Dizem eles, em resumo, que a EC 66 não baniu a separação judicial do mundo jurídico. Dizem que o sistema dual obrigatório foi substituído pelo sistema dual opcional, facultativo. Assim, segundo os meus críticos, o casal pode optar, desde logo, por se divorciar, como também optar por apenas de separar. Para eles, ao que entendi, a EC 66 serviu apenas para dizer que não há mais a proibição do imediato divórcio. Mas se alguém quiser só se separar, pode.

De minha parte, fico com a minha posição anterior, baseada no constitucionalismo. E, de pronto, invoco o cabeçalho da EC publicada no DOU lê-se (como todos sabem, sou adepto da hermenêutica filosófica, pela qual “se queres dizer algo sobre um texto, deixe que este te diga algo antes):

Dá nova redação ao parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de um ano ou de comprovada separação de fato por mais de dois anos.

Por isso, entendo que a separação foi varrida do mapa. Estava na Constituição e agora foi expungida. Qual seria o sentido da EC 66? Não esqueçamos que, como já referi, um pouco de interpretação história por vezes é importante, pelo menos para, no limite, “desempatar” o jogo interpretativo. Vejamos o que diz a justificativa da EC 66:

“Como corolário do sistema jurídico vigente, constata-se que o instituto da separação judicial perdeu muito da sua relevância, pois deixou de ser a antecâmara e o prelúdio necessário para a sua conversão em divórcio; a opção pelo divórcio direto possível revela-se natural para os cônjuges desavindos, inclusive sob o aspecto econômico, na medida em que lhes resolve em definitivo a sociedade e o vínculo conjugal.”

Não fosse isso suficiente, fico com o que restou do texto da Constituição. E como ficou o texto constitucional depois da EC 66? Simples. Ficou assim:

“O casamento pode ser dissolvido pelo divórcio”.

O que isto quer dizer? Quer dizer que, na medida em que a família e a dissolução do casamento está na Constituição (não por culpa minha — na verdade, por mim, isso seria matéria de lei ordinária), tem-se que a única maneira que existe para fazer uma dissolução do vínculo matrimonial é o divórcio. Isso exsurge de uma hermenêutica da Constituição, porque sequer o texto constitucional estabelece algo como “lei ordinária pode estabelecer outras formas de dissolução”.

Daí minha indagação: banir a separação judicial do sistema normativo significa — mesmo — afrontar a privacidade das pessoas? Qualquer que seja a opção teórica defendida — banimento ou manutenção da separação —, a verdade é que o problema não se situa no plano pretendido pelos articulistas justamente em vista da EC 66, que implodiu o sistema dual obrigatório. Antes, havia sim afronta à liberdade da vida familiar (que decorre da privacidade), pois o Estado, mediante lei, criava embaraços para a obtenção do divórcio e realização de novos casamentos. Isso acabou. Algo bem diferente é o Estado eliminar a separação judicial: fazendo isso tão-só exorcizou o sistema dual obrigatório, além de facilitar e robustecer o divórcio, já que agora por meio dele sociedade conjugal e vínculo conjugal dissolvem-se mutuamente.

Não há aí, com a devida vênia, qualquer atropelo à liberdade da vida familiar ou aos demais desdobramentos da privacidade. O sistema normativo, ao contrário do que sugerem os articulistas, não estabelece a “ditadura do divórcio obrigatório”: podem muito bem, seguindo a sua própria autonomia da vontade, optar por simplesmente se afastarem um do outro pelo tempo que reputarem necessário para repensar a relação. Alternativa que além de menos burocrática — nada de escrituras públicas ou ações judiciais para terminar com a sociedade conjugal —, pauta-se na economia e sensatez, essa última uma qualidade que se presume incorporada ao caráter daqueles que, por alguma razão, não se sentem ainda preparados para o divórcio.

Aliás, é preciso permanecer vigilante para que não tenhamos um modelo interpretativo que deprecie um dos mais evidentes corolários da supremacia constitucional que é a interpretação conforme à Constituição. No caso, cuida-se de rejeitar formulações que impliquem uma interpretação da Constituição conforme as leis cuja ideia motriz, segundo Canotilho, está na premissa de que o processo de concretização da Constituição poderia ser auxiliado pelo recurso a leis ordinárias. É certo que existe um diálogo entre constitucionalidade e infraconstitucionalidade. Mormente nos casos de reserva de lei, algo que não ocorre no caso em tela. Aqui, o espaço de conformação legislativa foi encurtado severamente pelo texto constitucional. No caso, a futura lei — caso venha a ser aprovada — estará introduzindo, ela própria, um sentido inconstitucional. Admitir isso, como bem diz o mestre português, seria admitir que a legalidade da constituição sobrepor-se-ia à constitucionalidade da lei.[1]

De todo modo, quero dizer que minha preocupação foi com relação à Constituição e ao constitucionalismo. Não quis discutir a (in) pertinência do instituto da separação judicial para o nosso direito privado. Sem embargo de que, para mim, a possibilidade de “escolher” pelo antigo modelo dual ou pelo divórcio direito, não implique, necessariamente, maior deferência à autonomia privada e, consequentemente, menor intervenção do Estado na vida dos casais. Ao contrário, o corriqueiro é que, no decorrer do processo de separação judicial, o Estado intervenha a todo momento, para dar vazão aquilo que virou certo consenso no direito de família de que, durante tal processo, deve-se privilegiar a reconciliação do casal em detrimento da dissolução da sociedade conjugal. Entre outras coisas. Parece-me que, no caso, há muito mais Estado intrometendo-se na vida conjugal justamente quando existe a possibilidade da separação. De todo modo, a discussão sobre a separação e o divórcio foram apenas pano de fundo para uma discussão maior. Minha preocupação é com o precedente que pode ser aberto. Se a moda pega, qualquer matéria que esteja na Constituição e que venha a ser expungida via Emenda pode vir a ser “rediviva” por lei ordinária. Pensemos no seguinte exemplo: por emenda constitucional, retira-se da Constituição um inciso sobre competência de legislar sobre determinado tributo. Dois ou três anos depois, na feitura de um novo Código Tributário, a matéria volta, desta vez por lei ordinária. Com isso, estaríamos acabando com a rigidez da Constituição.

Por tais razões, respeitando as opiniões de meus três inteligentes interlocutores, mantenho minha tese acerca da matéria, por entender estar mais adequada ao constitucionalismo contemporâneo.

Cf. Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 1233-1234.