Publicado por Leonardo Sarmento em JusBrasil
Em uma de nossas obras intitulada “a Efetividade dos Direitos Fundamentais e a Eficácia das Políticas Públicas”, deixamos consignado a força normativa constitucional prioritária que o constituinte de 1988 outorgou às normas de direitos fundamentais, não apenas às de defesa, mas as de participação e a que por ora nos interessa, as prestacionais/positivas. Desta última espécie explicitamos ser a que mais necessitava do orçamento público, nesta espécie asseveramos que a utilização do princípio da Reserva do Possível é reiteradamente colacionado pelo poder público para escusar-se de seu dever constitucional.
Prosseguimos infirmando que o princípio da Reseva do Possível perde completamente sua legitimidade argumentativa de escusa quando toca ao núcleo de um direito fundamental entendido como mínimo existencial, percebido como limite raso da dignidade humana. Neste momento o Estado-Juiz investido de jurisdição deve impelir o órgão omisso a praticar a política pública sonegada, exemplo do que podemos chamar de uma omissão inconstitucional do Estado, esteja ele vestido de legislador ou administrador.
Outro ponto importante da obra, que voltamos a abordar em nosso novo livro que será lançado neste iniciar de 2015 intitulado “Controle de Constitucionalidade e Temáticas Afins” pela editora Lumen Juris, com maior profundidade e riqueza, é o papel contramajoritário que deve incorporar o Supremo Tribunal Federal como essência de sua jurisdição constitucional. O Supremo Tribunal Federal, com base na teoria dos “checks in balances” deve ser o contrapeso das políticas majoritárias quase sempre reverberadas pelas funções Legislativa e Executiva de Poder. O Judiciário, precipuamente capitaneado por sua maior instância e Corte Constitucional, deve sopesar até onde as políticas majoritárias podem ir sem que vilipendiem as minorias. Democracia só se legitima pela vontade das maiorias até o momento que não de aniquilem minorias.
Esta compacta introdução revela-se fundamental para a melhor compreensão do que iremos abordar a partir.
Falaremos um pouco do regime prisional brasileiro e como o Supremo Tribunal Federal pode contribuir a partir da omissão do poder público.
O professor britânico Roy King é um dos maiores especialistas do mundo em sistemas prisionais. Aos 74 anos, continua na ativa, apesar de ter se aposentado duas vezes. Pesquisador honorário do Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, ele já passou por instituições como Yale e London School of Economics. King compara a realidade carcerária no Brasil com a de outros países e chega a um diagnóstico extremamente negativo. O professor vê semelhanças entre os presídios brasileiros e os russos, onde fez pesquisas depois do desmantelamento da União Soviética. Em ambos os casos, as prisões não são controladas pelo Estado, mas pelos próprios criminosos – que preencheram os vácuos de poder deixados pela omissão das autoridades. King falou em recente visita a São Paulo, onde participou de um fórum internacional sobre segurança pública.
A espantosa superlotação das prisões brasileiras é fato notório e um relatório do CNJ de junho do ano passado apontou que a população carcerária do país é de 563.526 presos, mas nossas prisões só têm vagas para 357.219 detentos. Há, portanto, um déficit de quase de 207 mil vagas, sem falar nos 373.991 mandados de prisão não efetivados, e nas 147.937 pessoas em prisão domiciliar, em razão da falta de vagas no regime aberto. Sem considerarmos as pessoas em prisão domiciliar, o Brasil é hoje o quarto país com a maior população carcerária do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia.
Nossas prisões – que já foram mapeadas pelo Ministro da Justiça como “masmorras medievais” – representam o inferno na Terra. Com uma população carcerária absolutamente incompatível com as nossas possibilidades, com celas superlotadas, absolutamente insalubres, verdadeiros veículos de disseminação das mais variadas doenças infectocontagiosas, com seus detentos custodiados do Estado ingerindo alimento muitas vezes azedo, sobrevivendo em temperaturas extremas que passam os 50 graus à depender da localização do presídio, com falta de água potável e de produtos higiênicos básicos.
Homicídios dolosos e qualificados pela torpeza, espancamentos, tortura e violência sexual são comuns para quem sobrevive na selva de um sistema prisional. Como dissemos acima, as instituições prisionais são ostensivamente dominadas por facções criminosas, que impõem nas cadeias o seu a legislação paralela do terror, quase sempre com a cumplicidade do Poder Público, que por vezes peca pela omissão outras absurdamente fomenta por ação.
Não existe assistência judiciária adequada aos presos; já acesso à educação, à saúde, à seguridade social e ao trabalho é uma realidade tão distante que nem os olhos nem a imaginação conseguem alcançar no estágio que nos encontramos. O controle estatal sobre o cumprimento das penas é extremamente precário e desinteressado, sendo absolutamente curial encontrarmos em mutirões carcerários, presos que já deveriam ter sido soltos há anos. Há mulheres em celas masculinas e outras que são obrigadas a dar à luz encetadas nos ambientes insalubres de suas celas, muitas vezes sem acompanhamento médico ou absurdamente tolhidas pelo uso de algemas, como se dantescamente fossem capazes de fugir dando à luz. Neste cenário aviltante, rebeliões e motins são medidas muitas vezes de sobrevivência que a sociedade não dimensiona, não faz uma correta leitura por falta de precisas informações.
O regime de “apartheid” que Mandela tanto combateu na África do Sul e no mundo por suas sábias palavras e ações muito bem se representa em nosso regime carcerário. Com uma população carcerária composta por uma amplíssima maioria, quase que uma totalidade de negros e mestiços das classes menos favorecidas, maior das vezes nada favorecidas, entre analfabetos, semianalfabetos e analfabetos funcionais, “maconheiros” e aviõezinhos do tráfico, percebemos perplexos a mais completa ausência de agentes políticos e detentores de influências de poder. A classe média pouco conhece aquela realidade e a classe mais abastada pouco ouviu falar. Nas pertinentes palavras de Barroso, “no Brasil de hoje, é mais fácil prender um jovem que porta 100 gramas de maconha do que um agente político ou empresário que comete uma fraude milionária”.
A realidade carcerária é talvez a mais grave questão de direitos humanos pendente do Brasil de hoje. As mazelas do sistema prisional brasileiro comprometem também a segurança da sociedade, afinal, as condições degradantes em que são cumpridas as penas privativas de liberdade, e a “mistura” entre presos com graus discrepantes de periculosidade, tornam uma fábula a perspectiva de ressocialização dos detentos, como percebemos por nossas elevadíssimas taxas de reincidência. São nestes termos que, o crime se escolariza, escambia experiências até se tornarem “doutores do crime” e ofertarem seus ensinamentos às organizações criminosas mais comuns, não especificamente as de Brasília, que trabalham em outro cenário e realidade. Hoje no Brasil as penas são cumpridas de maneira infinitamente mais gravosas que o legislador previu por seu caráter absolutamente desumano e degradante, claro, falamos dos cidadãos comuns, não da casta de favorecidos pelo sistema.
Este “script”, excelente apenas como enredo para nossas produções cinematográficas revela-se de absoluta antinomia com a Constituição Republicana de 88. Nossa Carta Fundamental nos traz como carro-chefe o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), veda peremptoriamente a tortura e o tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), proíbe as sanções cruéis (art. 5º, XLVII, e), impõe o cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e sexo do apenado (art. 5º, XLVIII) e assegura aos presos o respeito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX). Violenta, ainda, a Lei de Execução Penal de 1984, assim como diversos tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo país, como o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Não custa informar, o Brasil já foi condenado enumeras vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por conta da situação desumana e degradante de suas prisões.
Neste momento voltemos às políticas majoritárias. Sabemos que definitivamente não é medida popular que conte com o apoio da sociedade como medida de caráter prioritário a prestação de dignidade aos sistemas prisionais. Não é a utilização do orçamento público nos presídios que garantirá as eleições nos pleitos seguintes. Assim, não temos lei e nem gestão para a modificação deste cenário absolutamente inconstitucional e que repercute em toda sociedade a partir da proliferação de organizações criminosas cada vez mais aparelhadas e movidas pelo ódio que a ressocialização com o crime os proporcionou nos presídios do país.
A leitura absolutamente equivocada desta situação percebe-se, inclusive, em tribunais superiores como o STJ, que orienta pelo não cabimento de dano moral quando o preso é submetido à custódia do Estado em cela superlotada. Não só há dano moral insofismavelmente, como ousaríamos ir mais além, infirmado a existência ainda de dano moral coletivo pela insegurança pública que a desídia do Estado no trato das questões prisionais no Brasil provoca. Em contrapartida a devolução indevida de um cheque causa dano moral indiscutível, segundo orientação do STJ. A OAB, cumprindo seu papel, propôs ADI para que a questão seja enfrentada pelo STF (ADI 5170, Rel. Min. Rosa Weber).
Retornando ao ponto quando iniciamos o presente artigo, o Judiciário, em particular o STF, cumprirá seu papel quando praticar o que muitos criticam denominando de “ativismo judicial” como uma expressão sempre pejorativa, um equívoco, deste tema possuo artigo e enfrento na obra de controle de constitucionalidade que lançarei como já mencionamos. Com base em anos de omissão de políticas públicas capazes de solucionar minimamente o problema, cabe ao contramajoritário STF avocar a questão que não pode mais ser vista como de discricionariedade do Estado legislador e administrador. Falamos de direitos humanos fundamentais de raiz constitucional desumanamente segregados das políticas estatais, falamos de mínimo existencial em sua porção mais nuclear, aquela que toca na dignidade humana mais rasa que se pode esperar que o Estado propicie. Não se denota mais ponderável lançar o argumento da reserva do possível ou da separação de poderes, o primeiro por estarmos tratando da porção inegociável do mínimo existencial que atribui dignidade ao ser humano, e o segundo pela sonora e patente omissão dada a mais absoluta ausência de interesse político em se cuidar de assunto contramajoritário de minorias.
Já passou da hora.