“A intenção do “legislador” parece ser boa, no sentido de salvaguardar os contratantes da “maré de deveres” que decorrem de cláusulas gerais como a da boa-fé, transparência, função social etc.[20], permitindo que possam exercer plenamente a autonomia privada no sentido de limitar os deveres impostos aos contratantes apenas aos previstos no instrumento contratual.”
Por Venceslau Tavares Costa Filho
Veio a lume a denominada MP da “liberdade econômica” (MP 881, de 30/4/2019), que resultou em uma série de relevantes alterações no Direito Privado, Econômico e Administrativo. Os professores Otávio Luiz Rodrigues Jr e Rodrigo Xavier Leonardo publicaram excelente análise nesta coluna em duas partes[1], cabendo destacar também o texto de Adalberto Pasqualotto aqui na ConJur[2].
O primeiro aspecto a ser ressaltado é o fato de a MP ser denominada de “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. As declarações de direito remetem ao reconhecimento de direitos e garantias fundamentais. Veja-se, neste sentido, que o artigo 3º traz um rol de direitos “essenciais” de “toda pessoa, natural ou jurídica”. Diversos dispositivos previstos parecem veicular garantias correspondentes à visão tradicional acerca dos direitos fundamentais, inicialmente pensados como direitos de defesa do cidadão contra o arbítrio do Estado[3]. Neste sentido, a MP parece beber da doutrina alemã da “Finalidade individual do Estado” (Lehre vom individualistischen Staatszweck), que defendia a preservação e proteção da liberdade como justificativa e limite ao poder do Estado[4].
Outro aspecto a ser ressaltado é o âmbito de aplicação da MP, nos termos do parágrafo 1º do artigo 1º: “O disposto nesta Medida Provisória será observado na aplicação e na interpretação de direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação, e na ordenação pública sobre o exercício das profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção ao meio ambiente”.
A MP pode suscitar questionamentos sobre a aplicabilidade dela às relações de emprego. Veja-se, por exemplo, o artigo 3º,VIII da MP 881/2019, que parece visar a tutela da confiança nas relações privadas[5]. O Direito dos Contratos assenta-se sob dois pilares fundamentais: a autonomia privada e a confiança. A proteção à autonomia privada “assegura, portanto, que o contrato vincule as partes apenas naquilo que foi efetivamente querido pelos contratantes”. Ademais, a confiança na palavra dada “é um princípio fundamental do direito dos contratos. A fidelidade (ou respeito) à palavra dada integrará o fundamento da regra dos ‘pacta sunt servanda‘, ao qual se soma a veracidade, que exclui o engodo da vida contratual”[6].
Muitos profissionais prestam serviços sob o manto da pessoa jurídica em razão das vantagens tributárias proporcionadas à empresa tomadora do serviço bem como ao prestador do serviço[7]. No Direito do Trabalho, a “pejotização” é vista como um procedimento fraudulento que busca ocultar a relação de trabalho subordinado[8]. Aparentemente, a Justiça do Trabalho parece partir de uma presunção de fraude e/ou de coação do empregador ao empregado na “pejotização”, mesmo quando o prestador de serviços possui alto nível intelectual e diante das evidentes vantagens patrimoniais auferidas em razão do regime tributário aplicado.
A regra do artigo 3º, VIII da MP parece consagrar uma cláusula de vedação do comportamento contraditório, pois impede que a parte que celebrou contrato com outro empresário possa ir contra o que estipulou a fim de auferir benefícios, ainda que se trate de matéria de ordem pública. Ademais, a presunção de fraude termina por contrariar o princípio da presunção da boa-fé do particular, previsto no inciso II do artigo 2º, II da MP. Esta e outras regras contidas na MP 881/2019 parecem reforçar a autonomia privada e a tutela da confiança e representam uma tentativa de redução da intervenção estatal nas relações privadas.
Isso aparece de modo ainda mais acentuado na nova redação do artigo 421 do Código Civil: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional”[9].
A questão da função social já foi analisada com maestria por Otávio Luiz Rodrigues Jr e Rodrigo Xavier Leonardo aqui na ConJur[10]. Cabe-nos analisar a possibilidade de estipulação de cláusulas contratuais com o fito de afastar deveres decorrentes de cláusulas gerais tais como a boa-fé objetiva e a função social. As referências a deveres acessórios à boa-fé ou à função social do contrato são cada vez mais abundantes na doutrina e jurisprudência brasileira recentes. Tal denominação, entretanto, parece levar à conclusão apressada de que parcela da doutrina e da jurisprudência considera que os deveres de proteção, lealdade, informação etc. decorreriam da vontade das partes, ainda que presumida.
Neste sentido, decidiu o STJ que a instituição financeira, ao disponibilizar área para guarda de veículos de seus clientes, assume o dever de proteger a pessoa do cliente e o patrimônio dele. Tal dever decorre da cláusula geral de boa-fé objetiva, que vincula a partir da “relação contratual de fato assim estabelecida, que serve de fundamento à responsabilidade civil pelo dano decorrente do descumprimento do dever”[11].
Paulo Lobo, contudo, diverge quanto à suposta acessoriedade de tais deveres. Prefere denominá-los como deveres gerais de conduta, por entender que tais deveres ganharam a dimensão de princípios normativos, sejam constitucionais ou infraconstitucionais, deixando para trás o caráter acessório em relação ao dever de adimplemento. Aduz, ainda, que esses deveres não decorrem simplesmente da relação jurídica obrigacional ou do dever primário de adimplemento, mas “estão acima de ambos”. Isto porque cláusulas gerais como da função social do contrato restaram positivadas na legislação brasileira. Assim, conclui que os deveres extraídos da boa-fé objetiva incidem diretamente nas relações obrigacionais, sem que haja necessidade da declaração de vontade dos participantes (implícita ou explícita). Pois a aplicação da cláusula geral da função social do contrato (e de outras cláusulas) não poderá ser obstada por convenção firmada entre os contratantes[12].
Assim, decidiu o STJ sobre a desnecessidade da mediação do acordo de vontades para a incidência dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva, em julgamento sobre o dever de transparência quanto aos portadores de doença celíaca. O relator considerou a presença da ordem pública e do interesse social nas normas de proteção e defesa do consumidor. Tais normas reputam-se “indisponíveis e inafastáveis, pois resguardam valores básicos e fundamentais da ordem jurídica do Estado Social, daí a impossibilidade de o consumidor delas abrir mão ex ante e no Atacado”.
O direito à informação é uma expressão concreta dos princípios da transparência, da boa-fé objetiva e da confiança nas relações de consumo. O dever de informação que se impõe aos fornecedores, contudo, não deve levar em consideração apenas a generalidade dos consumidores. Tal dever se aprofunda em relação aos chamados hipervulneráveis, a exemplo da necessidade de advertir sobre a presença do glúten em determinados produtos e seus efeitos indesejáveis aos portadores de doença celíaca, ainda que tal elemento não seja prejudicial ao grosso da população[13].
Parece-nos que tal entendimento se coaduna também com o atual estágio de desenvolvimento da ciência jurídica alemã, após a ampla reforma empreendida no âmbito do direito obrigacional[14]. Além de alterar as regras sobre a prescrição, a proteção do consumidor e diversos tipos contratuais, o Código Civil alemão passou a referir a uma série de situações compreendidas no que se convencionou chamar de Recht der Leistungsstörungen[15].
Um dos conceitos centrais da reforma quanto à perturbação no desempenho é o de violação (ou quebra) de um dever: Pflichtverletzung[16]. De acordo com a redação atual do parágrafo 280/I do Código Civil alemão, o escopo do contrato deixa de se limitar às prestações que decorrem do pacto e passa a alcançar qualquer “dever proveniente de uma relação obrigacional”, de modo que a violação de um destes deveres pode ser caracterizada como incumprimento gerador do dever de indenizar a parte prejudicada. Assim, o fato de os contratantes estipularem cláusulas afastando a aplicação dos deveres decorrentes da função social não é suficiente para afastar a incidência deles, tendo em vista a indisponibilidade e inafastabilidade de tais deveres.
A invocação de um suposto princípio da intervenção mínima do Estado nas relações contratuais privadas parece não ser suficiente para permitir a prevalência de cláusulas contratuais que afastem deveres decorrentes da boa-fé e da função social, especialmente diante de um texto constitucional com perfil nitidamente intervencionista como o de 1988. Na jurisprudência do STF, por exemplo, pode-se destacar a ADI 1.950, sob a relatoria do então ministro Eros Grau. Naquela oportunidade, a corte afirmou que: “É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. (…). A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da ‘iniciativa do Estado’; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa”[17].
O STF igualmente reputou constitucional a adoção de políticas de controle de preços de bens e serviços pelo Estado por via legislativa[18], o que parece discrepar da garantia prevista no artigo 3º, III da MP 881/2019[19]. A intenção do “legislador” parece ser boa, no sentido de salvaguardar os contratantes da “maré de deveres” que decorrem de cláusulas gerais como a da boa-fé, transparência, função social etc.[20], permitindo que possam exercer plenamente a autonomia privada no sentido de limitar os deveres impostos aos contratantes apenas aos previstos no instrumento contratual.
O excesso de regulamentação pode terminar por sufocar e até mesmo prejudicar os contratantes, privando-os de dispor no sentido de estabelecer reais vantagens mútuas em moldes diversos dos previstos pelo ordenamento. Contudo, diante da tradição doutrinária e jurisprudencial brasileira no sentido de reconhecer os deveres decorrentes das cláusulas gerais (da boa-fé, da função social do contrato, da equivalência material etc.) como deveres ex lege, bem como em razão da rica realidade brasileira ainda marcada por profundas desigualdades das mais diversas matizes, é provável que a MP em questão não atinja o desiderato de permitir o afastamento de tais deveres decorrentes das cláusulas gerais por livre estipulação dos contratantes.
[1] Cf: https://www.conjur.com.br/2019-mai-06/direito-civil-atual-mp-liberdade-economica-mudou-codigo-civil. Cf: https://www.conjur.com.br/2019-mai-08/direito-comparado-mp-liberdade-economica-mudou-codigo-civil-parte.
[2] Cf: https://www.conjur.com.br/2019-mai-06/adalberto-pasqualotto-publicidade-liberdade-economica.
[3] SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 18.
[4] ERICHSEN, Hans-Uwe. A eficácia dos direitos fundamentais na Lei Fundamental Alemã no direito privado. In: GRUNDMANN, Stefan et alii (orgs.). Direito privado, constituição e fronteiras: encontros da Associação Luso-Alemã de Juristas no Brasil. 2 ed. São Paulo: RT, 2014, p. 22.
[5] “Art. 3º. São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição: VIII – ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, hipótese em que nenhuma norma de ordem pública dessa matéria será usada para beneficiar a parte que pactuou contra ela, exceto se para resguardar direitos tutelados pela administração pública ou de terceiros alheios ao contrato.”
[6] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Soriano Neto e a doutrina da vedação do comportamento contraditório. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-06/tavares-filho-soriano-neto-vedacao-comportamento-contraditorio Acesso em: 7/5/2019.
[7] “Da parte do empregado, (…), o ônus financeiro, do ponto de vista tributário, muitas vezes será menor do que a entabulação de contrato empregatício, em que o Imposto sobre a Renda da Pessoa Física – IRPF, incide com alíquotas mais elevadas, conforme a faixa de renda, além da incidência da Contribuição Previdenciária do Segurado” (CUNHA, Carlos Renato; COSTA, Valterlei Aparecido; TIMM DO VALLE, Maurício Dalri. A Desconsideração da Chamada “Pejotização” para fins Tributários e o Dever de Coerência Sistêmico. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, Porto Alegre, v. 13, n. 1, set. 2018. ISSN 2317-8558. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/ppgdir/article/view/77974>. Acesso em: 9/5/2019. <https://doi.org/10.22456/2317-8558.77974>.
[8] SANTOS, Ronaldo Lima. Fraudes nas relações de trabalho: morfologia e transcendência. Boletim Científico ESMPU, n. 28 e n. 29, Julho/Dezembro de 2008. Disponível em: http://boletimcientifico.escola.mpu.mp.br/boletins/bc-28-e-29/fraudes-nas-relacoes-de-trabalho-morfologia-e-transcendenciaAcesso em: 9/5/2019.
[9] Redação anterior: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
[10] Para um aprofundamento crítico, recomenda-se vivamente a leitura do excelente trabalho escrito por Otávio Luiz Rodrigues Jr: Propriedade e função social: exame crítico de um caso de “constitucionalização” do direito civil. In: VERA-CRUZ PINTO, Eduardo; SOUSA, Marcelo Rebelo de; QUADROS, Fausto de; OTERO, Paulo (orgs.). Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda: Volume 3 – direito constitucional e justiça constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2012.
[11] AgRg no AgIn n. 47.901-3/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 12/7/1994.
[12] LOBO, Paulo. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 77-80.
[13] REsp 586.316/MG, rel. min. Herman Benjamin, julgado em 17/4/2007.
[14] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Tendências do direito civil nos países de tradição romano-germânica: transnacionalização e recodificação. Uma análise a partir da reforma do direito obrigacional alemão. In: COSTA FILHO, Venceslau Tavares; ALBUQUERQUE JR, Roberto Paulino de; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BARROS E SILVA NETO, Francisco Antônio de; KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino (coords.). Relações e influências recíprocas entre direito material e direito processual: estudos em homenagem ao Professor Torquato Castro. Salvador: Juspodivm, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 9/5/2019.
[15] Tradução livre: Direito da perturbação no desempenho.
[16] ZIMMERMANN, Reinhard. Breach of contract and remedies under the new german law of obligations. Saggi, conferenze e seminari, n. 48 (2002). Roma: Centro di studi e ricerche di diritto comparato e straniero, p. 08.
[17] ADI 1.950, rel. min. Eros Grau, j. 3/11/2005, P, DJ de 2/6/2006.
[18] ADI 319 QO, rel. min. Moreira Alves, j. 3/3/1993, P, DJ de 30/4/1993.
[19] Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição: III – não ter restringida, por qualquer autoridade, sua liberdade de definir o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda no mercado não regulado, ressalvadas as situações de emergência ou de calamidade pública, quando assim declarada pela autoridade competente.
[20] Trata-se de expressão utilizada pela Ministra Sibylle Kessal-Wulf para se referir ao excesso de deveres de informação no contexto do direito comunitário europeu. Cf: KESSAL-WULF, Sibylle. Experiências com o direito do consumidor europeu: uma análise crítica. Tradução de Karina Nunes Fritz. Civilística.com, a. 2, n. 3 (jul.-set./2013). Disponível em: http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Kessal-Wulf-civilistica.com-a.2.n.3.2013.pdf Acesso em: 9/5/2019.
Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, professor adjunto da Universidade de Pernambuco e vice-presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões – Seção Pernambuco.
Matéria publicada originalmente na Revista Consultor Jurídico