Abstract: apresentamos um resumo dos argumentos já postos, assim como novos argumentos para o provimento da ADC 44!
Por Lenio Luiz Streck e Juliano Breda
- A ADC 44, assim como as ADCs 43 e 54, pedem ao STF a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que restringe a expedição do mandado de prisão em decorrência de sentença penal condenatória ao trânsito em julgado da decisão.
- No julgamento do pedido liminar, por maioria, os ministros reconheceram a constitucionalidade daquela regra, mas, estranhamente, por meio de “interpretação conforme à Constituição, assentando que é coerente com a Constituição o principiar de execução criminal quando houver condenação assentada em segundo grau de jurisdição, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível”. Ou seja, a interpretação conforme apontou para o sentido contrário do que se lê do texto do artigo 283.
- Nos votos majoritários, um argumento histórico ganhou força. De acordo com o ministro Fachin, a “Suprema Corte retomou um entendimento que vigorou desde a promulgação da Constituição em 1988 até 2009, por quase vinte e um anos, portanto, segundo o qual o efeito meramente devolutivo dos recursos especial e extraordinário não colide com o princípio constitucional da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Como se vê, vinte e um dos vinte e oito anos registrou essa compreensão”.(grifamos)
- Nessa retrospectiva sobre a guinada jurisprudencial do STF — de 88 até 2009 (Acórdão Eros Grau) e, posteriormente, de 2009 (Grau) até a alteração do entendimento em 2016 (Acórdão Teori), faltou, porém, um sobrevoo importante sobre o alcance do princípio constitucional da presunção de inocência a respeito da execução das penas restritivas de direitos.
- Isso porque, muito antes da “virada jurisprudencial” de 2009 na direção de uma ampliação do campo normativo da regra constitucional às hipóteses de execução da pena privativas de liberdade, o STF, em sucessivos julgamentos, já proclamava a impossibilidade de execução antecipada das sanções restritivas de direitos. Embora seja óbvio, vale anotar que penas restritivas de direitos e penas privativas de liberdade distinguem-se somente como espécie, mas não deixam de integrar o mesmo gênero na estrutura das consequências jurídicas do crime.
- E, nesse passo, nos votos favoráveis à execução antecipada da pena de 2016 não há menção ao relevante fato histórico de que até o ano de 2009 os Ministros que admitiam a execução antecipada da pena privativa de liberdade vedavam a execução das restritivas de direitos antes do trânsito em julgado. Votavam nessa linha Carlos Velloso, Ellen Gracie e Joaquim Barbosa, além de Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cesar Peluso, Ayres Britto, Eros Grau e Ricardo Lewandowski (HC 84.859-2004; HC 84.677-2004; 88.413 – 2006; HC 89.435-2007).
- Embora sem decisão específica nessa linha, a Ministra Carmen Lucia, no HC 92.275, em 22 de novembro de 2007, com base na compreensão consensual de seus pares, afirmou:
“A pena privativa de liberdade fora substituída por duas penas restritivas de direitos, as quais somente se executam depois do trânsito em julgado da condenação (artigo 147 da Lei de Execução Penal), que ainda não ocorreu, pois, segundo informa o Impetrante, está pendente o julgamento de recurso por ele interposto”.
- O STF, portanto, jamais esteve dividido sobre a impossibilidade de execução antecipada das penasrestritivas de direitos em razão de um obstáculo intransponível: o limite semântico (significado convencional) de uma norma que condiz com o ordenamento jurídico constitucional, ou seja, o significado convencional da regrado artigo 147 da Lei de Execução Penal:
“Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares”.
- Quando o plenário do STF decidiu pela inconstitucionalidade da execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado (2009), os votos vencidos fundaram-se na linha da divergência inaugurada pelo ministro Menezes Direito, no sentido de que, na medida em que os “recursos extraordinário e especial não dispõem de efeito suspensivo, a execução provisória é consequência possível”.
- O ponto central da discussão é muito simples e objetivo. Antes mesmo da decisão paradigma de 2009, todos os Ministros do STF entendiam que não poderia existir execução antecipada de pena contra expressa disposição de lei infraconstitucional, independentemente da regra constitucional da presunção de inocência.
- Essa constatação é fundamental para definir as premissas jurídicas nas quais a questão posta nas ADCs só pode e só deve ser decidida, uma vez que as ações pedem a declaração de constitucionalidadedo artigo 283 do CPP, regra de criação posterior à decisão de 2009.
- Daí que, entrando em vigor o artigo 283 no ano de 2011, a única interpretação constitucionalmente admissível é a mesma que adotavam todos os ministros do STF em relação ao artigo 147 da LEP.
- A solução oferecida em 2016, para fugir da antiga unanimidade sobre a inconstitucionalidade da execução antecipada das penas restritivas de direitos em face de previsão expressa de lei, foi o recurso à chamada “interpretação conforme à constituição”. Já de início soa curioso o fato de que nenhum — absolutamente nenhum[1] — dos ministros que ocuparam as cadeiras do Plenário do STF na década de 2000 tenha invocado essa regra hermenêutica para supostamente adequar o artigo 147 da LEP à Constituição de 1988, permitindo-lhe também uma leitura que admitisse a execução antecipada.
- Mas, ainda que se aceite a descoberta tardia desse princípio, no que, efetivamente, consiste a chamada “interpretação conforme” e até onde ela pode ajudar no julgamento do mérito das ADCs 43, 44 e 54? Boa pergunta. Ou ela é apenas um álibi retórico?
- Vejamos. Gomes Canotilho, em seu Teoria Constitucional e Teoria da Constituição, explica que a interpretação conforme encontra limites precisos, sendo vedado ao juiz, ao analisar a aplicação de determinada regra, promover uma “revisão do seu conteúdo”. A interpretação conforme tem os seus limites na própria constituição, nos limites semânticos das leis democraticamente criadas e na reconstrução da respectiva história institucional, com o risco, para o grande autor, de a “alteração do conteúdo da lei através da interpretação” poder levar “a uma usurpaçãodas funções, transformando os juízes em legisladores activos. Se a interpretação conforme a constituição quiser continuar a ser interpretação, ela não pode ir além dos sentidos possíveis, resultantes do texto e do fim da lei”.
- Trata-se de uma obviedade: cumprir a “letra da lei (constitucional)” é um dever inerente ao Estado Democrático de Direito. Assim como é inerente o dever dos juízes constitucionais, com responsabilidade política, aplicarem o ordenamento jurídico constitucional. Vamos explicar um pouco melhor isso, a partir de Victoria Iturralde Sesma, Catedrática da Universidad Del País Basco, para quem temos de abandonar a expressão “significado literal” por “significado convencional”.Falar de significado convencional de uma regra jurídica (legal ou constitucional) não significa que exista um único significado, porém se delimita até onde pode chegar a interpretação e onde começa a invenção. Para melhor entender isso, ela cita Umberto Eco, quem critica aquelas posturas que autorizam ao intérprete produzir ilimitadas leituras de um texto.
- Ademais, se não bastasse a literalidade (melhor dizendo, o significado convencional) eloquente do artigo 283, a vontade do legisladorde 2011 é inquestionável. Esse dispositivo, introduzido pela Lei 12.403/2011, teve origem em proposta elaborada por uma Comissão de Juristas, constituída em 2000 pelo Ministério da Justiça, que se transformou no Projeto de Lei 4.208, de 2001, de iniciativa do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Na Exposição de Motivos 00022, sustentou expressamente
“a impossibilidade de, antes de sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar”.
Simples e direto assim. Claro como colocar água em cima.
- Já na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o parecer aprovado textualmente afirmava que a regra
“tem como propósito definir que toda prisão, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, terá sempre caráter cautelar. A denominada execução antecipada não se concilia com os princípios do Estado constitucional e democrático de direito”.
Simples e direto assim. Muito claro, pois.
- Nessa linha, pedimos desculpas por uma certa epistemologia do zeloque aqui estabelecemos, em que até mesmo um autor de matriz teórica muito diferente da aqui adotada dá razão a nossa tese e pleito.Trata-se de uma interpretação (tão) lógica, que, com base na Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy (p. 229) torna-se possível até a formulação em modalização deôntica para sua análise formal.
Explica-se. Nos dois parágrafos anteriores, usamos algo chamado por Alexy de argumento genético. Ou seja: a alegação que justifica a interpretação de uma regra com base na “intenção do legislador” ou “vontade do legislador”.
- A forma é até de fácil compreensão. Vejamos. O texto do artigo 283 do Código de Processo Penal é simbolizado por R. A interpretação do texto que determina “a impossibilidade de, antes de sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar” é representada por R’. A intenção do legislador para com o texto, cristalina pela exposição de motivos citada, é traduzida por IRw.A formulação completa fica expressa da seguinte maneira:
(1) R’ = IRw.
(2) R’
Traduzida:
(1) a impossibilidade de, antes de sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar é a intenção do legislador.
(2) O artigo 283 do Código de Processo Penal deve ser interpretado de tal maneira que impossibilite prisões que não sejam de natureza cautelar antes da sentença condenatória transitada em julgado.
- Um outro argumento ainda pode ser utilizado para reforçar o sustentado anteriormente. Por exemplo, podemos afirmar que o legislador adotou R, isto é, o artigo 283 do CPP, para atingir o objetivo Z, que representa a efetivação (Alexy utilizaria a otimização) da presunção de inocência. Assim, a validade de R na interpretação IRwé necessária para efetivar o objetivo do legislador — a otimização do artigo 5º, LVII, da CF. A formulação ficaria assim:
(1) ¬ R’ (IRw) → ¬ Z
(2) R’
Por premissas, poderíamos utilizar:
(1) OZ
(2) ¬ M → ¬ OZ
(3) OM [2]
Traduzida:
(1) O artigo 283 do Código de Processo Penal é, para o legislador, um meio de otimizar o direito fundamental à presunção de inocência.
(2) O artigo 283 do Código de Processo Penal deve ser interpretado de tal maneira que impossibilite prisões que não sejam de natureza cautelar antes da sentença condenatória transitada em julgado.
Por premissas, poderíamos utilizar:
(1) É obrigatório que se otimize o direito fundamental à presunção de inocência.
(2) A menos que se assegure a impossibilidade de execução da pena antes do trânsito em julgado, não se obterá a otimização do direito fundamental à presunção de inocência.
(3) É obrigatório assegurar a impossibilidade de execução da pena antes do trânsito em julgado.
- Ainda preferindo pecar pelo excesso — daí a nossa epistemologia do zelo— deixemos de lado a lógica deôntica e adotemos uma tese de Christian Baldus (introduzido e estudado no Brasil por Otavio Luiz Rodrigues Jr) sobre interpretação histórica negativa:
determinado comando ou certa hipótese de incidência não são aceitáveis ou compreensíveis porque o legislador, se os desejasse, tê-los-ia incluído no texto de lei.
No caso, ocorreu a explicitação do objetivo da alteração legislativa, com o que está vedada interpretação que transforme o texto em seu contrário.
- Além do mais, a nossa história institucional — devidamente reconstruída — clama por uma decisão no mesmo sentido dos julgados sobre as penas restritivas de direitos. A reforma de 2011 do artigo 283 do Código de Processo Penal reforça de maneira clara o sentido semântico do artigo 105 da Lei de Execuções Penais (vigente desde 1984!):
“Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução”. Percebe-se como a compreensão da norma é reforçada pelo sentido semântico do texto, pela história constitucional pátria e pela coerência do ordenamento.
- Em síntese, as ADCs 43, 44 e 54 pedem simplesmente o respeito à Constituição de 1988, à lei e ao Congresso Nacional. E pedem que seja respeitada a opinião unânime dos ministros do STF, construída ao longo da década de 2000, no sentido da constitucionalidade de lei infraconstitucional que expressamente impeça a execução antecipada de pena.
Numa palavra final: Na verdade, as ADCs pedem, simplesmente, o respeito ao Direito. E aos textos em seus significados convencionais. Nunca devemos esquecer a advertência de Fr. Müller: Die texten köhnen zurückschlagen (os textos podem revidar).
E, mais uma coisa só: os subscritores das ADCs também pedem que sejam pautadas pelo Supremo Tribunal Federal. De pronto.
O status libertatis de milhares de pessoas depende desse evento.
[1] Cabe fazer menção ao argumento da interpretação sistêmica do Ministro Eros Grau no HC 84.677/RS. A interpretação compreendida pelo ministro não se relaciona (de nenhuma forma) com a (suposta) interpretação conforme à constituição empregada pelo Supremo Tribunal Federal em 2016, que já foi devidamente analisada nesta coluna: (https://www.conjur.com.br/2016-out-07/streck-stf-presuncao-inocencia-interpretacao-conforme). Sobre interpretação conforme, ver Streck, L.L. Jurisdição constitucional e decisão jurídica, principalmente nos capítulos 9 e 10. Rio de Janeiro, Gen-Forense, 2018.
[2] O refere-se à obrigação, Z ao estado de coisas que se pretende atingir. M, por sua vez, relaciona-se com uma característica específica, sendo OM a obrigatoriedade de obter a característica.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Juliano Breda é advogado, doutor em Direito pela UFPR.
Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2019