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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Brasil x Bolívia: um jogo de perdedores

"Desculpa, Bolívia, por nos traíres…" -essa foi a imagem passada pelo governo brasileiro frente à ruptura do contrato de fornecimento de gás ao Brasil. Como em política, mais importante que os fatos, são as versões dadas a eles, vê-se logo que alguma coisa não funcionou bem nesse episódio.

Ora, estamos diante de uma quebra de contrato internacional, seguida de atos de deliberada hostilidade, que só ocorrem em governos autoritários, onde as instituições políticas são débeis, ou em regimes ditatoriais. Longe de nós, todavia, querer que o Brasil adotasse uma diplomacia do "porrete", como dramatizou o ministro Celso Amorim em seu depoimento à Comissão de Relações Exteriores do Senado. A imagem do Brasil conta muito, pois reflete na auto-estima dos seus nacionais e teria sido mais proveitoso do ponto de vista político se fossem dadas explicações aos brasileiros quanto à linha política a ser adotada em reação ao ato expropriatório praticado pelo governo boliviano. Mas quem deu as caras na imprensa para explicar aos brasileiros a posição que o Brasil iria adotar neste caso? Ao contrário, todos ficaram bancando o avestruz enquanto a Bolívia consolidava uma prática anti-democrática e altamente nefasta para os interesses da integração latinoamericana. O encontro de Foz de Iguazu, forjado para deliberar sobre o tema e mostrar a capacidade de negociação do Brasil para reverter as crises com nossos vizinhos, foi um daqueles desastres diplomáticos para ficar nos anais do Itamaraty como um dos episódios mais negativos de nossa história. Fomos lá para resolver um problema com a Bolívia, não demos solução satisfatória para o caso e ainda nos impingiram mais uma dependência, desta feita com o gás venezuelano, de fornecimento tão confiável quanto o do vizinho andino. Valha-nos Deus!!

Louve-se, contudo, a posição que desde o início tomou a Petrobrás, mostrando a sua indignação, a falta de segurança – e sobretudo de confiança – para prosseguir com os investimentos naquele país. O que chama atenção nisso tudo, porém, é o Governo brasileiro ter desautorizado a Petrobrás em sua justa e legítima reação aos ataques sofridos em seu patrimônio, inclusive afirmando que ela "está ganhando muito dinheiro", numa oblíqua insinuação de lucros indevidos e, portanto, ilegais, o que causará imensas dificuldades na proposição que a empresa pretende fazer junto aos tribunais internacionais. Como acusar o governo boliviano, nos foros competentes, se o acionista majoritário da Petrobrás, o governo brasileiro, já declarou que o governo boliviano agiu corretamente tanto na estatização do gás quanto nos seus atos conseqüentes?

Mas façamos justiça: Evo Molares não dissimulou o seu intento, pois desde a sua campanha anunciou o que iria fazer, ainda que o seu fazer fosse uma arbitrária ruptura aos valores da democracia econômica. O governo brasileiro é que se deixou enganar, não se sabe se inebriado pelas baforadas do "puro" cubano ou se pelas bazófias e fanfarronadas do eletrizante Hugo Chávez.

É certo que a nossa Constituição preconiza a busca da integração latino americana e todos os esforços nesse sentido são merecedores de encômios, mas nessa busca devemos por a salvo os interesses nacionais e a dignidade do povo brasileiro porque estas não poderão ser objeto de barganha política ainda que em nome dos postulados de integração – um bem jurídico menor em relação aos dois primeiros.

Países que não dispõem de matéria prima básica para o seu desenvolvimento – como o Japão, a China e tantos outros – compram de países do terceiro mundo, como o Brasil, a exemplo da extração do minério da Serra de Carajás. Os contratos são respeitados, como convém nas relações internacionais e, muitas vezes, a própria infra-estrutura de extração é montada com o dinheiro desses compradores. Tivemos e temos dezenas de exemplos de extrativismo mineral em nosso solo, por empresas estrangeiras ou associadas, algumas com preços aviltados, e o Brasil respeitou todos os acordos internacionais. Calote na dívida e quebra de contrato, seguida de autêntica expropriação, é prática que em médio prazo se volta contra o próprio país que deu origem a essa prática ditatorial e os valores pseudonacionalistas que dizia defender acabam sendo de pequena monta diante do prejuízo que advirá com a ausência de investimentos internacionais. Mas esse parece não ser o caso da Bolívia pois, ao que tudo indica, devidamente avalizada pelos petrodólares de Chávez, terá subsidiado os meios de subsistência financeira de que precisará, no futuro, para arrostar com os ônus desse desastrado ato político.

Uma das lições de ouro do mercado é a de que é possível haver uma economia de livre-iniciativa, como ocorre em algumas áreas da China, sem que haja liberdade política, mas o contrário não sucede: sem liberdade econômica jamais se chegará à liberdade política. Esse é o ponto em que o Brasil deveria, com toda clareza, se firmar, assumindo assim um autêntico papel de líder: lutar para reduzir os desníveis democráticos na região e ao mesmo tempo reverter algumas ditaduras que ainda persistem, quer de forma dissimulada, como na Venezuela, quer de forma ostensiva, como em Cuba.

Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.