O confronto de lideranças e agentes da facção criminosa PCC – Primeiro Comando da Capital com a força policial paulista, gerando os episódios sangrentos que golpearam profundamente a sociedade brasileira de uma maneira geral e a paulista em especial, deixou um trauma profundo até mesmo numa população acostumada com a violência do dia-a-dia -, sobretudo pela audácia dos ataques às delegacias de polícia e pelo nível de organização dos criminosos: um impressionante sincronismo no encadeamento das ações cujas ordens vinham de dentro dos presídios! A sociedade, atônita, se pergunta: mas é para isso que serve o sistema prisional? Para permitir o fortalecimento dos comandos criminosos com as facilidades de comunicação e outros meios que lhes são assegurados? Ou, questionando de outra forma: se teoricamente o preso, por ser considerado pernicioso, é retirado do convívio social para que a sociedade tenha a sua integridade resguardada de uma potencial ação criminosa, como agora esse mesmo detento passa a ser tão ou mais perigoso dentro como fora da prisão?
É claro que problemas dessa natureza não se resolvem apenas com mais efetivo policial e o governo paulista, que dispõe na PM cerca de 130 mil homens, agiu acertadamente ao recusar a oferta interessada de força federal, esta disponível em torno de 4 mil homens. A questão, repito, pelo menos na PM paulista, não passa pelo quantitativo do seu contingente policial para dar combate às crises dessa natureza, mas por todo um complexo de ações já exaustivamente debatido e sabido tanto no contexto jurídico-policial, quanto no meio acadêmico e da própria mídia(1) . Mais leis, também, não resolvem o problema. Sempre é bom lembrar, nestes casos, quando o Congresso aproveita para desengavetar projetos esquecidos, que "lei demais é lei nenhuma"… Ora, se as leis atuais não são cumpridas pelos governos estaduais com o mesmo argumento genérico de "falta de recursos", como despejar ainda mais normas nesse cipoal de leis inaplicáveis? Dispomos, já, do arcabouço jurídico necessário para combater a criminalidade. Faltam-nos as políticas públicas adequadas para implementar esse emaranhado de leis e fazer funcionar suas instituições. E é aí que se acha o nó górdio a ser cortado por governos eficientes e que se disponham a tratar a segurança pública como um dos direitos humanos fundamentais, o primeiro a justificar a criação do Estado, pelo menos na visão dos contratualistas(2). Assim, temos que garantir esse direito fundamental à segurança, proclamado na Carta da ONU, sem incorrer o próprio Estado na violação a esse direito. Quando, portanto, teremos ruas, praias e praças seguras?
Os que se dedicam ao estudo de organizações criminosas – a exemplo dos cartéis do tráfico e, a mais tempo, da Cosa Nostra, que por muitos anos foi considerada a maior organização do submundo do crime -, afirmam que a expansão dessas atividades está ligada à reverência exagerada pelo poder, pelo dinheiro e pelas manipulações políticas que caracterizam os grupos dominantes de nossa sociedade gerando, como conseqüência, a proteção política, a corrupção policial, as atitudes de indiferença e apatia em relação ao crime.
O crime organizado não é diferente do crime comum do qual é apenas uma parcela importante constituindo-se, por isso, num problema social grave e que conspira contra a sociedade. Algumas características são apontadas por López-Rey(3) para definir a existência de uma empresa criminosa: 1. Organização hierárquica e disciplina que conduz o crime como um empreendimento comercial; 2. Métodos impiedosos de punição; 3. Esforços contínuos para subverter as ações governamentais que lhe são contrárias; 4. Uso extensivo da corrupção; 5. A proteção e a infiltração na estrutura do Estado; 6. Expansão constante das atividades; 7.Lutas internas pelo poder; 8. Lucros enormes. Não há dúvida que, por tais características, temos muitas organizações criminosas de porte considerável no Brasil, e o PCC é apenas uma delas. Mas tais aparelhos têm, por aqui, outro aliado de peso: a desigualdade social, um flagelo que pesa sobre o Estado brasileiro em grande medida pela falta de efetividade dos mais elementares direitos sociais, alguns até assegurados expressamente pela Constituição. Por isso o básico, nesse caso, precisa ser visto: a polícia faz parte de um sistema e como tal é apenas um dos seus componentes. Isso significa que a desejada segurança pública só será conquistada se conseguirmos implementar políticas públicas que possibilitem o funcionamento de todo um sistema comunitário, nos quais devem estar indissociáveis (a) as ações governamentais na área social; (b) uma adequada atuação do aparato policial e uma efetiva e rápida prestação judicial; e (c) um sistema prisional que siga as recomendações da lei(4). Quantos Estados brasileiros têm um sistema prisional adequado ou próximo aos padrões legais?
Devemos entender que a política criminal é o anverso da política social, sendo necessário um entrelaçamento íntimo entre uma e outra na formulação e execução de suas ações. Por esse critério, a segurança pública se afigura entre as maiores questões da atualidade pelo fato de termos, de um lado, índices crescentes de violência com prejuízos moral, financeiro e em vidas humanas, incalculáveis para o País e, de outro, um aparelho policial que dá mostras visíveis de sua impotência para, isoladamente, combater o bom combate. Podemos até dizer, como BECCARIA, que …não é possível reduzir a desordenada atividade dos homens a uma ordem geométrica, sem irregularidade e sem confusão (…) e que, …as leis humanas não podem impedir as perturbações e a desordem…Todavia, o Brasil precisa lutar para reduzir a criminalidade a níveis aceitáveis pelos organismos internacionais. No ano 2000, houve 71,7 casos de morte por armas de fogo para cada 100 mil habitantes, o que equivale a 13 vezes a taxa dos Estados Unidos no mesmo período, onde o comércio de armas é livre. Em 20 anos, de 1980 a 2000, foram vítimas de homicídio no Brasil quase 600 mil pessoas. Com 18% da população do País, as regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro concentram 40% desses crimes(5).
Uma das conseqüências econômicas mais visíveis desse flagelo social é apontada por OLIVEIRA: cerca de 10 bilhões de dólares, ligados ao turismo, deixam de entrar anualmente no Brasil por causa da violência e da contaminação do crime organizado(6). Essa é apenas uma pequena mostra do enorme prejuízo que a sociedade brasileira têm com o descontrole no combate ao crime.
É voz corrente que a impunidade é o caminho largo de acesso à criminalidade mas não tenhamos ilusão: organizações criminosas, como o PCC, e a insegurança nas ruas e praças de nossas cidades, continuarão a existir enquanto a nossa estrutura econômica, social e política for o que é. O momento, portanto, é o de reestruturar as forças políticas da sociedade para enfrentar esse grande desafio.
Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.