“Seu intuito foi adequar nosso arcabouço legislativo aos tratados internacionais de defesa dos direitos humanos ratificados pelo Brasil…”
Por Fernando Capez e Hans Robert
Segundo Montesquieu, todos os homens com poder são natural e instintivamente tentados a dele abusar[1], daí a necessidade de mecanismos de controle.
Apesar das críticas, em boa hora foi aprovada a nova lei para punir o abuso de poder nas modalidades excesso e desvio. A principal objeção refere-se à formulação de tipos demasiadamente abertos, em violação à taxatividade, corolário da reserva legal (CF, art. 5º, XXXIX), no entanto, se analisarmos a revogada Lei n. 4.898/65, fica claro que ali sim residiam tipos de duvidosa constitucionalidade, seja pela sua enorme abrangência, decorrente da imprecisão técnica de suas elementares, seja pela afronta à proporcionalidade. Seu art. 3º, por exemplo, dizia ser abuso de autoridade “qualquer atentado” contra a liberdade de locomoção.
Além de sua larga abrangência, ainda punia com a mesma pena, tentativa e consumação. Legislação simbólica e ineficaz, subproduto do golpe de 1964, foi feita apenas para dar a impressão de que o regime de exceção instalado não toleraria abusos[2]. Pura hipocrisia. Suas penas insignificantes não conferiam proteção eficiente ao cidadão contra as arbitrariedades cometidas pelos agentes públicos durante a ditadura.
A Lei n. 13.869, de 05 de setembro de 2019, entrará em vigor no dia 03 de janeiro de 2020 (Lei Complementar 1995/98, com os acréscimos trazidos pela LC 107/2001, art. 8º, § 1º: computa-se o dia da publicação, contam-se os 120 dias e a entrada em vigor se dará no dia subsequente ao término do prazo).
Seu intuito foi adequar nosso arcabouço legislativo aos tratados internacionais de defesa dos direitos humanos ratificados pelo Brasil (Pacto de San José da Costa Rica, arts. 7º e 11.2, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU, art. 9º). A prisão arbitrária, punida já entre os romanos pela Lex Julia[3], não é tolerada por nossa Carta Magna em diversas passagens (CF, art. 5º, caput, e incisos LIV, LVII, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, LXVII e LXVIII). No Brasil, duas são as espécies de prisão: a prisão-pena e a prisão processual de natureza cautelar (prisão em flagrante, temporária e preventiva). A CF, em seu artigo 5.º, inciso LVII, dispõe: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, autorizando, no entanto, a prisão cautelar (flagrante, temporária e preventiva) quando imprescindível, para garantir a investigação policial de determinados delitos (Lei n. 7.960/1989) e, nas hipóteses de urgência, quando necessário, para assegurar a instrução criminal, a futura aplicação da lei penal e a ordem pública ou econômica (CPP, art. 312). A prisão provisória pode e deve ser decretada com o escopo de acautelar o bom andamento da persecução penal, mas não se admite sua imposição com a finalidade exclusiva de antecipar o cumprimento da pena[4].
Atualmente, no entanto, tem havido certo abuso na decretação de prisões, contribuindo para o clima de insegurança jurídica no panorama nacional. A lei perdeu relevância e a doutrina passou a ser considerada um empecilho no combate à criminalidade.
O positivismo do Estado Formal de Direito em vigor no século XIX, buscava na lei o apanágio para garantir a segurança jurídica e, em sua obstinação em combater o arbítrio, chegou até mesmo a importar as ciências físicas e naturais para assegurar decisões exatas. Em meados do século XX, no entanto, foi apropriado por regimes totalitários como o nacional-socialismo, os quais se apropriaram de seu dogmatismo fechado para, sob o manto protetor da lei, autorizar toda sorte de atrocidades. O positivismo fechado tornava o juiz um escravo da lei e, ao impedi-lo de exercer sua atividade interpretativa, o fazia refém de leis sem lastro ético.
Em reação a esse positivismo, iniciou-se um movimento de forte carga principiológica, no qual o referencial sociológico passou a dominar a pauta hermenêutica dos tribunais. O funcionalismo teleológico aplicado sem equilíbrio levou ao extremo oposto, ou seja, a liberdade absoluta de julgar, sob o manto protetor de vagos axiomas, com exagerada influência dos chamados princípios gerais, como porta aberta para a desconsideração da lei, mediante uso de retórica axiológica como biombo a justificar a decisão de acordo com os sentimentos e paixões do julgador. Perdeu-se, com isso, o contato com os parâmetros objetivos e escritos da lei.
O resultado foi a desconsideração do Direito Penal e do Processo Penal enquanto ciências dogmáticas, levando à interpretação criativa da lei, com a consequente abertura do campo para arbitrariedades. Partindo desse pressuposto, François Ost afirma que “os juristas de hoje traçam as suas linhas na areia de instituições movediças”[5], com perigosa combustão entre a ilegalidade e acobertamento pela mídia, pressionando o órgão jurisdicional a decidir entre a análise serena dos autos e sua tranquilidade pessoal. Ao que tudo indica, como aponta Silva Sánches [6], estamos rumando do Direito Penal do risco para o risco do Direito Penal.[7]
Traçadas essas linhas gerais, o tipo penal mais polêmico da Lei nº 13.869/19, qual seja, o seu art. 9º, despertou muitas críticas de que inviabilizaria o “combate à criminalidade”. O receio, no entanto, é infundado.
A nova figura típica, na verdade, somente criminalizou a prisão completamente desamparada pela lei, ou seja, a ordem manifestamente ilegal (a que não autoriza a dirimente da obediência hierárquica – artigo 22 do CP), Ao tratar da anulação das decisões do conselho de sentença pelo mérito, o legislador também se referiu à decisão manifestamente ilegal (CPP, art. 593, III, d). O advérbio de intensidade manifestamente é sempre empregado no sentido de absolutamente, totalmente, completamente, inteiramente. Por óbvio, não se cuida aqui, da decisão fundamentada com base na discricionariedade do julgador, mas da decretação fora das hipóteses autorizadas pelo Código de Processo Penal ou em manifesta ausência do chamado periculum libertatis. Ao magistrado, bastará explicitar os motivos pelos quais entende necessária a medida, dentro das hipóteses expressamente autorizadas por lei. Livre convicção do magistrado não é crime. Nesse sentido, o art. 1.º, §2.º da nova lei, in verbis: “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Não se trata, portanto, do chamado “crime de hermenêutica”.
O tipo penal é doloso e não admite a modalidade culposa, excluindo-se a possibilidade de punição a título, v.g., de imperícia técnica. Além do dolo, exige-se um elemento subjetivo do tipo (finalidade especial do agente) que sepulta de vez qualquer receio do julgador. Cuida-se do art. 1.º, §1º, da Lei de Abuso de Autoridade, o qual prevê: “As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. Obviamente, esse especial fim do agente não se presume, nem se deduz, e deverá ser demonstrado por prova inequívoca. As hipóteses, principalmente as de “por mero capricho ou satisfação pessoal” somente poderão ser comprovadas pela admissão da própria autoridade ou por testemunha que dela tenha ouvido tal relato, sendo impossível de ser demonstradas por raciocínio dedutivo.
O crime de decretação ilegal de medida privativa da liberdade é formal (tipicidade incongruente), de modo que basta a decretação para a consumação do tipo, sendo dispensável que ocorra a efetiva privação da liberdade, sendo esta mero exaurimento da infração penal, a ser considerado na dosimetria da pena (artigo 59, CP). A tentativa é possível, mas de difícil configuração, em razão do verbo decretar.
O art. 9º, parágrafo único, da lei em questão, trata das condutas equiparadas, em que o magistrado, não observando seu dever legal, deixa de tomar a decisão manifestamente cabível no caso concreto, tratando-se, portanto, de condutas omissivas.
A primeira conduta consiste em: deixar de relaxar a prisão em flagrante em prazo razoável. A prisão em flagrante pode ser realizada por qualquer pessoa (vide artigo 301 do CPP), nas hipóteses legais (vide artigo 302 e 303 do CPP). Sendo o indivíduo capturado em flagrante delito, deverá ser conduzido à presença da autoridade policial, que deve lavrar auto de prisão em flagrante (vide artigos 304 a 309, todos do CPP), remetendo o auto, regra geral, no prazo de 24 horas ao juiz competente, para a realização de audiência de custódia (vide artigo 5.º, incisos LXI, LXII e LXIII, da CF, c/c., art. 9.º. item 3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU e art. 7º, item 5 da CADH, bem como art. 310, caput, do CPP e Resolução 213/15, do CNJ).
Na audiência de custódia, o magistrado deverá relaxar imediatamente a prisão ilegal (fato atípico, punibilidade já extinta, inexistência de situação de flagrância e inobservância das formalidades legais), nos termos do art. 5.º, inciso LXV da CF, c/c., art. 310, inciso I, do CPP e art. 8º, §5.º, da Resolução nº 213/15 do CNJ.
A segunda conduta consiste em: deixar de substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível. Essa modalidade de conduta omissiva, decorre do que dispõe o art. 310, incisos II, III e o parágrafo único, c/c., art. 282, §§ 4º e 6º, e 321, todos do CPP. A prisão preventiva é medida obrigatoriamente subsidiária em relação às medidas previstas no art. 319 do CPP, enfatizando-se a necessidade de análise sobre a adequação e suficiência das demais medidas cautelares menos gravosas ao preso, antes da imposição da segregação cautelar. Ademais, cabível a liberdade provisória, com ou sem fiança, deverá o magistrado concedê-la, conforme art. 5º, inciso LXVI, da CF, c/c., artigo 310, inciso III, e 321, ambos do CPP, pois a liberdade provisória, nas hipóteses cabíveis, não é favor concedido, mas direito subjetivo do preso, como substitutiva da prisão cautelar, em casos de flagrante válido.
A terceira conduta consiste em: deixar de deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível. O habeas corpus é um remédio constitucional constante do art. 5º, inciso LXVIII, da CF, e regulamentado nos artigos 647 a 667, todos do CPP. O habeas corpus é cabível, em termos constitucionais, justamente quando houver ilegalidade ou abuso de poder. As hipóteses de cabimento de habeas corpus estão previstas, de forma exemplificativa, no art. 648 do CPP, de modo que, cabendo a concessão do writ, por exemplo, em razão de manifesta atipicidade, é dever do juiz, até mesmo de ofício, concedê-lo, expedindo, consequentemente, alvará de soltura, ou, se for o caso, contramandado de prisão ou, ainda, salvo conduto em situação de habeas corpus preventivo.
Ademais, exige-se que a omissão judicial ocorra fora de prazo razoável. Esse tipo penal deve ser interpretado com base no princípio da razoável duração do processo (vide art. 5º, inciso LXXVIII, da CF). Nesse sentido, o art. 322, parágrafo único, do CPP, determina que o magistrado deverá decidir sobre a possibilidade de conceder ou não liberdade provisória com fiança no prazo de 48 horas. Entretanto, a expressão “prazo razoável” deverá ser analisada no caso concreto e conforme as circunstâncias e volume de processos do magistrado.
A privação da liberdade com fins políticos é tipificada como crime político pelo art. 20 da Lei nº 7.170/83. Por sua vez, a privação de liberdade de locomoção de criança ou adolescente pode constituir o crime previsto no art. 230 da Lei nº 8.069/90. No entanto, se o juiz decretar a apreensão de menor infrator nos moldes do tipo penal de abuso de autoridade, incorrerá nesse delito (vide artigos 106 a 108 da Lei nº 8.069/90). A decretação de condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo caracteriza o crime do Art. 10 da Lei de abuso de autoridade, de modo que, em razão do princípio da especialidade, deve-se afastar a incidência do tipo penal de decretação ilegal de medida privativa.
A ação penal é pública incondicionada, por força do disposto no art. 3º da Lei nº 13.869/19, que constitui mero corolário do art. 100 do CP, c/c., art. 24 do CPP, haja vista que, em caso de omissão legislativa, a ação penal é pública incondicionada.
De um modo geral, a nova lei é melhor do que o diploma revogado, tem maior precisão técnica e protege de forma mais eficaz o cidadão contra incursões autoritárias, além de proteger a discricionariedade do julgador dentro das hipóteses legais, não tipificando condutas culposas e exigindo o fim especial de prejudicar, excluindo a ilegalidade praticada por desconhecimento ou equivocada interpretação da lei.
Como ensinava FRANZ VON LISZT, o Direito Penal é uma espada de duplo fio, pois lesa bens jurídicos para proteger bens jurídicos, e, no caso, “limita” a liberdade jurisdicional, dentro da legalidade, para proteger a liberdade individual.
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1] MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do Espírito das leis. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.
[2] SOUZA, L. A. Lei de abuso de autoridade e violação aos direitos humanos. In: BERCOVICI, Gilberto; SOUZA, Luciano Anderson de; FERREIRA, Lauro Cesar Mazetto. (Org.). Desafios dos direitos humanos no século XXI. 1.ed.São Paulo: Quartier Latin, 2016, v. 1, p. 383-386.
[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 414.
[4] LOPES, Aury. Direito Processual Penal. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 593.
[5]OST, François. O tempo do direito. Trad. de Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 358.
[6] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 28.
[7] Cf. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e processo penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. Salvador: Editora JusPODIVM, 2009, pp. 151-196.
Fernando Capez é Procurador de Justiça do MP paulista, mestre pela USP, doutor pela PUC-SP, coordenador da Uninove, professor da FAM, autor de diversas obras jurídicas, foi deputado estadual por três mandatos e presidente da Assembleia Legislativa de SP. Atualmente, é diretor executivo do Procon-SP.
Hans Robert é Professor de Direito Penal e Processo Penal da Uninove e advogado criminalista.
Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 7 de outubro de 2019