Separar Moral e Direito é um compromisso de todos, sob pena de aniquilamento da ciência jurídica e sua substituição por uma catequese jurídica que flutua de acordo com o humor, preconceitos e até mesmo religião do julgador. Os juízes lutam todos os dias contra a tentação de substituir o Direito por suas respectivas vontades e, não raro, perdem. Os parâmetros de julgamento reduzem o eventual arbítrio.
Eduardo Appio é pós doutor em Direito constitucional pela UFPR (2007); e juiz Federal na 2ª Turma Recursal dos Jefs do Paraná em Curitiba.
“O poder do Executivo de isolar um homem na prisão sem formular contra ele uma acusação com base legal, e sobretudo o de negar lhe um julgamento justo por período indefinido, é odioso no mais alto grau, e é o fundamento de todos os Estados totalitários, sejam nazistas ou comunistas…Nada pode ser mais abominável à democracia do que prender uma pessoa, ou mantê la presa, por ser malquista. Esse é o verdadeiro teste de civilização”.[1]
Winston Churchill falava, então, do caso Oswald Mosley, um inglês entusiasta do fascismo e que, para muitos ingleses, deveria permanecer preso durante a Segunda Guerra, ainda que sem um crime comprovado. A prisão de Mosley decorreu do clamor popular e Churchill foi contra, como seria contra qualquer manifestação de Estado totalitário até o fim da vida. Churchill prometeu sangue, suor e lágrimas na defesa da democracia e contra o totalitarismo e, graças a esta promessa, hoje podemos todos expressar livremente nossas idéias e concepções de mundo.
O papel do Supremo Tribunal enquanto guardião da Constituição e dos direitos fundamentais impõe responsabilidades históricas e não admite concessões.
Em data recente, o presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, Justice John Roberts, durante palestra[2], insistiu que “a Suprema Corte não é uma Corte politica e que não é papel do Poder Judiciário curar os males da sociedade”.
As correções de justiça distributiva no Brasil devem ser realizadas, com exclusividade, pelos Poderes eleitos diretamente pela população. As correções sobre as escolhas de quem será eleito devem, por sua vez, obedecer à vontade popular e à escolha soberana das urnas em eleições livres e regulares. Trata se de um pressuposto essencial para a República.
O primeiro erro histórico do Supremo foi ao aceitar a aplicação retroativa da teoria do domínio do fato na AP 470 (mensalão). O segundo erro ocorreu durante o recente debate sobre a necessidade das prisões provisórias (ditas cautelares) como instrumento para incentivar (ou até mesmo forçar, como pontuou o Ministro Gilmar Mendes, nos casos em que se prendiam parentes dos acusados) as delações premiadas (colaborações ditas “espontâneas”)[3].
A teoria do domínio do fato acabou prevalecendo no julgamento do processo conhecido como “Mensalão” (AP 470), durante o qual foi rejeitada a doutrina tradicional que exige uma imputação fática clara (e provada, acima de qualquer dúvida) entre o agente criminoso e o resultado. Este ônus probatório, por força da teoria abraçada pelo Código Penal de 1940, sempre foi da acusação e do Estado. A teoria do domínio do fato se ampara em peculiar construção judicial, pois se fundamenta em uma presunção quase que absoluta de culpabilidade, muito próxima da responsabilidade penal objetiva, desonerando a acusação de produzir qualquer prova razoável. Reduz o acusado a simples objeto que, impotente, apenas enxerga, em câmera lenta, um trem desgovernado vindo em sua direção. A adoção de uma nova teoria (direito novo), em último grau de jurisdição, equipara se à lei penal (nova) mais gravosa e nunca poderia ter sido aplicada em face de crimes praticados no passado.
Rompeu se com a boa doutrina penal, sob o argumento de um necessário uso de “tecnologias processuais” mais avançadas, mas esquecendo completamente que tanto a lei italiana do cárcere duro, quanto o R.I.C.O. Act norte americano[4] – ambas leis usadas para combater a Máfia – estavam regulamente previstas em normas jurídicas aprovadas pelo Parlamento eleito. Estes casos foram julgados na Itália e nos Estados Unidos à luz de leis aprovadas antes do cometimento dos crimes. No Brasil, contrariamente, a teoria do domínio do fato é uma construção judicial aplicada retroativamente e sem nenhuma base formalmente legal.
O segundo ponto que eu gostaria de explorar se refere à omissão do Supremo Tribunal Federal em assegurar que prisões ditas cautelares (como a prisão preventiva, por exemplo) não sejam usadas para arrancar confissões, como pontuou, em data recente, o Ministro Gilmar Mendes em sessão do Supremo Tribunal.
Neste ponto, entendo (academicamente) que o Supremo Tribunal também falhou gravemente ao não assegurar a observância da presunção de inocência que deriva da letra do artigo quinto de nossa Constituição Federal de 1988. O argumento utilizado pelo Exma Ministra Rosa Weber no julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex Presidente Lula se fundou no que ela denomina de princípio de colegialidade. Este voto acabou sendo a causa da rejeição (por maioria) da ordem de Habeas Corpus e manutenção, até os dias atuais, da tese de que se pode executar provisoriamente uma condenação criminal no Brasil. O voto, com a devida vênia, expressa um equívoco, pois o STF estava em sua formação plenária.
Agora estamos na iminência de assistir a um possível terceiro erro histórico no tocante às modulações em matéria penal.
Um dos casos mais célebres da jurisprudência da Suprema Corte norte americana sobre modulação de efeitos é o caso Miranda v. Arizona, de 13 de junho de 1966, no qual a Corte (por maioria) definiu critérios mais rigorosos para a realização dos interrogatórios dos réus com voto vencedor do Justice Earl Warren.
Segundo a decisão, os acusados deveriam ser informados pelo juiz ou pela polícia acerca de seus direitos fundamentais, dentre os quais o direito de consultar previamente um advogado e o direito ao silêncio. A Suprema Corte dos EUA, então, optou (em caráter excepcional) pela eficácia prospectiva do julgado (somente para os casos futuros) ainda que no caso específico do reclamante Ernesto Miranda tenha sido concedida a ordem para um novo julgamento. A decisão (estruturante) do caso Miranda foi um marco na história dos direitos civis nos Estados Unidos. Trata se, contudo, de um dos únicos casos em que as decisões da Suprema Corte dos EUA não produziram efeitos retroativos. A opção pela não retroatividade foi justificada pelo imenso impacto prático que causaria, ou seja, afetaria praticamente todos os casos criminais já julgados pelo Judiciário norte americano no passado.
Atualmente, o Supremo Tribunal se depara com uma eventual modulação dos efeitos do julgado[6] no processo em que discute a ordem de apresentação das alegações finais que envolvem delatores/colaboradores (caso Bendine). A modulação serviria, por conseguinte, para evitar diversas anulações. A exemplo do Mercador de Veneza de Shakespeare, pretende se agora que o Supremo dê com uma mão e tire com a outra. Não creio que a modulação tenha sido concebida com esta vulgar função pois, do contrário, teríamos a Corte (1) refém da opinião pública (em sede de liberdades fundamentais) ou (2) das necessidades orçamentárias da União (em matéria econômica). Este caso não guarda nenhuma proporção com o enorme impacto do caso Miranda v. Arizona (quando a sorte praticamente toda a população carcerária dos Estados Unidos estava envolvida). Hoje falta ao Supremo Tribunal Federal a clareza necessária para a definição (e posterior densificação) de standards de julgamento, com especial atenção aos parâmetros a serem adotados na chamada “modulação dos efeitos do julgado”, matéria totalmente sujeita ao arbítrio e criatividade dos julgadores; o que vem sido denunciado por juristas do calibre de Lenio Streck, ciosos da aparente ruptura com os parâmetros de racionalidade fixados desde Kelsen.
O STF acabou por dar uma interpretação conforme a Constituição aos dispositivos da lei que previa as delações, assegurando efetividade à ampla defesa. O direito processual penal não é um almanaque de armadilhas processuais que visam encarcerar o acusado a todo custo, mas sim um manual de conduta judicial que busca garantir ampla defesa e contraditório. Caso o Supremo Tribunal Federal venha a adotar uma modulação flutuante no caso Bendine, sem a devida fundamentação estará perdendo a oportunidade de fixar parâmetros claros para a modulação nos casos futuros, os quais se sugere sigam um critério de proporcionalidade.
Separar Moral e Direito é um compromisso de todos, sob pena de aniquilamento da ciência jurídica e sua substituição por uma catequese jurídica que flutua de acordo com o humor, preconceitos e até mesmo religião do julgador. Os juízes lutam todos os dias contra a tentação de substituir o Direito por suas respectivas vontades e, não raro, perdem. Os parâmetros de julgamento reduzem o eventual arbítrio.
[1] Winston Churchill, “Prime Minister to Home Secretary, 21 November 43, reimpresso in Winston Churchill, The Second World War, Vol. V: Closing the ring (Boston: Houghton Mifflin) apud Ricks, Thomas. Churchill & Orwell: a luta pela liberdade. Zahar. São Paulo: 2019.
[2] Jornal New York Times de 25 de agosto de 2019. Edição electrônica. “The court’s job is to decide legal disputes under the Constitution and laws, not to cure the ills of society”. (litteris)
[3] Sessão plenária de 26.09.2019 do STF
[4]O Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act, mais conhecido como R.I.C.O Act. foi uma lei adotada em 1970 durante o governo Richard Nixon que se destacou pelo endurecimento das leis penais. Anos mais tarde, já em 1974, Nixon renunciou após o escândalo de Watergate (escutas ilegais e invasão de propriedade).
[5] APPIO, Eduardo. Controle de Constitucionalidade: Modulação dos efeitos, uniformização de jurisprudência e coisa julgada. Jurua Editora. Curitiba: 2008.
Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2019