Professor de ciência política analisa movimentos pendulares da democracia brasileira em seu novo livro…
Leonardo Avritzer professor de ciência política da UFMG
Foto: Gualter Naves
Caio Sarack*, Especial para o Estado
26 de outubro de 2019 |
Sempre nos damos conta de que estamos participando da História – essa mesma, com maiúscula – quando percebemos algo no cotidiano assumindo certa coloração nostálgica e/ou ultrapassada, para o bem ou para o mal. Imaginemos, para dar exemplos, o desaparecimento daqueles celulares com botões numéricos ou ainda o antigo receio de fazer compras online. O sumiço ou a revisão de coisas comezinhas são os sintomas a partir dos quais nos percebemos no centro da transformação dessa História sobre a qual falamos.
Essas ultrapassagens, quando tratamos de política e instituições, são drásticas e chocantes, mas isso não significa que as aparências de ruptura ou reconfiguração sejam a expressão verdadeira de uma mudança genuinamente repentina. O contrário, na verdade. Podemos estar diante de um refluxo essencial da própria dinâmica institucional da democracia brasileira. Tal é o objetivo do livro O Pêndulo da Democracia (Editora Todavia): nos seus períodos de normalidade, isto é, sem contar a exceção violenta e totalitária das ditaduras, de que modo os conflitos da democracia brasileira já não podem ser expostos do próprio desenho dos seus procedimentos e da sua formação histórica?
Uma tarefa nada fácil, é verdade, mas que conta nos últimos anos com grande atividade intelectual, tamanho o baque que as transformações e redirecionamentos da nossa vida democrática apresentam nos últimos anos. Cabe aos leitores se localizarem em meio às tantas explicações necessariamente complexas e de lá extraírem, se ainda for possível, algum impulso de intervenção no espaço público e nessas mesmas instituições.
O livro do professor de ciência política Leonardo Avritzer lida com essa complexidade. Em tempos de guinadas na Europa, EUA e América Latina é muito complicado imaginarmos somente as raízes desse Brasil como vértices de explicação; é inevitável que os meandros da ciência política global também incidam sobre as teorias. No entanto, perceber que muitos desses sintomas são endógenos é crucial. Para dar um exemplo, escreve o professor sobre o papel do Judiciário no Brasil, na página 42: “A partir de 1988, vem ocorrendo paulatinamente uma mudança no modelo brasileiro [de Justiça Eleitoral] que passa de um sistema de regulação legal das eleições para um sistema de julgamento político baseado na noção de hipossuficiência, isto é, de que o eleitor não tem a mesma percepção ou a capacidade de julgar das diversas instituições do sistema de Justiça”. Percebamos aqui uma construção institucional com princípios virtuosos, mas que trazem inoculados uma sobredose de intervencionismo.
Se a frase de Churchill é real, e a democracia é a pior forma de governo, excluídas todas as outras, o risco que lhe é inerente precisa ser enfrentado de modo mais permissivo do que estamos acostumados. Se há um poder que pode interferir no jogo, mas que tem como função somente a garantia dos limites desse jogo, estamos diante de um corpo estranho, uma adição controversa. O pêndulo da democracia estaria, deste modo, arraigado necessariamente a um vértice antidemocrático que o faria, se não agora, depois (se não depois, agora) enveredar para caminhos viciosos. A citação que fizemos do livro faz ressoar desconfortável a noção de hipossuficiência. O problema maior é que essa noção parece estar inscrita num voluntarismo judicial que como um príncipe justifica seus meios aos fins que se desenham no horizonte eleitoral. A face conhecida do patrimonialismo e patriarcalismo brasileiros se reconfiguraria nas instituições de modo que o atraso evidente dos tempos de república militaresca possa assumir a aparência límpida e iluminada da Justiça, positiva e imparcial – vendada como a escultura. Se o eleitor é incapaz de perceber a verdade, por que não ajustar a rota?
Esse exemplo simples do Judiciário mostraria o modelo essencial das instituições que colide com a vida democrática real, isto é, dos conflitos políticos com os quais estamos habituados e nos quais estamos imersos que sempre ultrapassam a dinâmica eleitoral; disputas que, inclusive, antes reduzidas aos espaços de propaganda eleitoral e às pautas da mídia, agora, mais do que nunca, estão em meio às pautas das redes sociais com seus jogos da velha e arrobas.
O desafio maior do cientista político, concordaria o professor Avritzer, é reconhecer as mudanças desse nosso tempo em que o atavismo antidemocrático convive e conforma as novas dinâmicas políticas do século 21 em que há mais dificuldade em coibir notícias falsas e suas consequências funestas do que em processar dispositivos que interrompam a normalidade institucional.
Leia abaixo a entrevista com o professor Leonardo Avritzer:
Seu livro centra suas preocupações entre dois pontos de referência: o processo democratizante das instituições e seu refluxo antidemocrático no caso brasileiro. Para esse movimento pendular, o senhor elege um vértice, a distância entre a soberania popular moderna (demos) e a orientação das decisões institucionais. Como diferenciar essa distância entre os dois cortes históricos que o livro apresenta: 1946-64 e 1988-2013? Ela se comporta, mesmo que formalmente, da mesma maneira?
O argumento do meu livro é que é que tanto a conjuntura 1946-64, quanto a conjuntura a partir de 1988-2013 são conjunturas pendulares. No entanto, são conjunturas pendulares de formas diferentes. Entre 1946 e 1964, quase não se colocava a questão da autonomia do poder judiciário, enquanto ela é central entre 1988 e 2013 devido ao novo formato dado ao poder judiciário pela Constituição de 1988. Já no que diz respeito à questão dos militares, ela era muito mais relevante entre 1946 e 1964, quando o Brasil presenciou diversas tentativas de intervenção militar. Já no período atual, a questão do impeachment adquiriu uma nova centralidade. O problema, no entanto, é: ainda que certas instituições, como os militares e o poder judiciário, tenham um papel diferente na conjuntura 1988-2013 eles continuam tendo um papel de conseguir reverter o pêndulo democrático independentemente da soberania popular e da forma do Estado de direito no texto constitucional.
Alguns dos recursos institucionais do Executivo (de sua eficiência e relevância no cenário pós-88) são heranças de uma certa ‘vontade institucional’ da Ditadura Civil-Militar, que colocou o presidente como um orientador central, agora burocrático-legal (não mais de exceção, como na Ditadura), de políticas públicas. Como pensa esse ponto institucional de origem?
Em relação aos setores institucionais do poder executivo, eu diria que o Brasil tem um poder executivo forte desde a Era Vargas e que a força do poder executivo no Brasil não se desfez depois da redemocratização de 1946. Nesse sentido, acho que se poderia falar de uma vontade institucional forte do poder executivo como orientador de todo o processo burocrático no Brasil desde os anos 1930. O que muda na verdade na tradição jurídico-legal brasileira são as novas prerrogativas adquiridas pelo STF e pelo Ministério Público a partir da Constituição de 1988. O problema, no entanto, é que independentemente do fato de nós termos um executivo muito forte, o Brasil continua tendo um desequilíbrio que é provocado pelo fato de o Congresso ser sempre fraco e, quando ele é forte, é capaz de derrubar o governo se o governo estiver em minoria. Ao mesmo tempo, nós temos um poder judiciário que quer se transformar no próprio elaborador das políticas públicas, o que é completamente inadequado.
Muito se diz, hoje, sobre um parlamentarismo brando que seria responsável pela ‘porção racional’ da atual configuração do governo brasileiro. O caráter dito reformista deste parlamento aparece como reação democratizante em meio aos impulsos antidemocráticos?
Não tenho dúvidas que nós temos no Brasil, nesse momento, uma configuração positiva dentro do parlamento, especialmente dentro da Câmara dos Deputados, que faz com que alguns elementos que faltam completamente ao governo Bolsonaro – como por exemplo a capacidade de negociação de suas propostas políticas ou a capacidade de articulação das propostas no centro do espectro político – tenha ocorrido no parlamento. De fato, o parlamento no caso brasileiro hoje aparece mais democratizante depois de uma gestão absolutamente desastrosa sob a direção de Eduardo Cunha. O que se espera é que esses novos impulsos democráticos no parlamento continuem.
O professor Rogério Arantes, em ‘Ministério Público e a Política no Brasil’ (Edusp, 2002), fala sobre o voluntarismo ideológico-político do Ministério Público brasileiro e como essas mudanças são essenciais para a nova configuração da burocracia do Estado brasileiro. Como essa ‘gestação’ de quase 20 anos de fortalecimento do MP surgiria na descrição dessa resultante pendular de que trata seu livro?
Nesta atual crise brasileira, não tenho dúvidas que o papel do Ministério Público volta a ser colocado em questão. O Professor Rogério Arantes, de fato, em seu livro Ministério Público e Política no Brasil, foi o primeiro a falar de um certo voluntarismo no MP, e também falar da própria ideia que existe no MP uma visão acerca da hipossuficiência do eleitorado ou das formas eleitorais do País. Estas elaborações muito preocupantes em relação à organização burocrática do Estado tem se tornado cada vez mais fortes no MP. A ideia de uma autonomia do MP, que eu acho que fez muito sentido durante o momento da elaboração da carta Constitucional de 1988, era a de tentar combater a inefetividade de uma certa tradição legal pela via de atores independentes capazes de defender a legalidade e o estado de direito. No entanto, a gente vê hoje, 20 anos depois, que existe um voluntarismo total associado a uma politização indesejável. Então, o Ministério Público certamente é parte desse movimento pendular descrito no livro.
E, para finalizarmos, qual a principal interferência (se é que há em sua visão) que percebe nesse movimento pendular democrático brasileiro dos (não tão) novos desafios do capitalismo globalizado e contemporâneo que incidem sobre o Brasil e suas configurações institucionais?
Sem dúvida nenhuma não podemos deixar de lado a questão de um movimento global do capitalismo, de financeirização, e de questionamento de direitos, que não é só brasileiro e que tem presença forte nesse movimento pendular descrito. Não tenho dúvida que Donald Trump teve sua vitória em estados onde existe uma classe trabalhadora branca, bem remunerada nos EUA e que é perdedora do próprio processo de globalização no país. O caso brasileiro é um pouco diferente, porque na verdade o ator que acaba se colocando como ator antidemocrático não é uma classe trabalhadora bem remunerada, mas é uma classe média baixa que é mais perdedora de um novo processo de reorganização do estado do que um processo de reorganização do capitalismo global. De todas as maneiras, os movimentos do capitalismo global afetaram sim a crise brasileira através da diminuição do preço das commodities, do aumento do custo de políticas sociais que incide diretamente sobre a crise fiscal do estado brasileiro.
*CAIO SARACK É MESTRE EM FILOSOFIA PELA FFLCH-USP E PROFESSOR DO INSTITUTO SIDARTA E DO COLÉGIO NOSSA SENHORA DO MORUMBI