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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Constitucionalistas “espalha–rodas”*: o caso Ramagem – por Lenio Streck e Pedro Serrano

“Não há dúvidas de que todo e qualquer ato do Executivo está sujeito ao controle judicial. O problema é saber a medida e forma desse controle judicial, para que o juiz não substitua a figura do governante, configurando ativismo judicial, que implica a substituição da vontade do governante eleito, da soberania popular, pela vontade do juiz togado. O controle judicial deve se dar exclusivamente à esfera jurídica, não sobre a esfera de manifestação da soberania popular…”

Por Lenio Luiz Streck e Pedro Estevam Serrano

 

Costuma-se brincar no meio jurídico que os constitucionalistas somos uns “espalha-rodas”. Sempre temos uma opinião contra-majoritária e acabamos desagradando, nas palavras do poeta, a “gregos e baianos”.

Mesmo nessa condição, recebemos de Reinaldo Azevedo,[1] dono de  caneta pungente e auto-definido como “polemista”, um honroso convite para tentar explicar como é possível sustentar que houve ativismo judicial na decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de suspender a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal.

E aqui estamos. Contra majoritariamente. Afinal, a Constituição é conhecida como um “remédio contra maiorias”. Assim, longe de reivindicar a “versão verdadeira”, o sentimento é de obrigação em trazer nosso ponto de vista.

Para esse fim, buscamos tatear no escuro os caminhos que, democratas, temos para manter e recuperar à luz da Constituição brasileira. Polemizar ao estilo Reinaldo Azevedo, que eleva o debate, aliando elegância a inteligência, sem perder sua saudável contundência no exercício da independência de opinião.

No calor dos acontecimentos, efervescente que é, Reinaldo denunciou a utilização pela extrema-direita de nossa opinião. O problema é que o ativismo judicial — que não se confunde com a judicialização da política (por vezes necessária e saudável) — produz justamente o efeito de turvar os limites constitucionais aos quais deveria a Suprema Corte observar. No final das contas, não será nossa opinião, mas a decisão que, ao ferir a Constituição, irá fortalecer as condições buscadas pela extrema-direita: a de afrouxar as instituições, enfraquecendo-as e moldando-as aos formatos autoritários. Ousamos, pois, dizer que o STF errou.

É preciso dizer que, apesar da divergência pontual, estamos no mesmo campo de Reinaldo Azevedo e Alexandre de Moraes, democratas indubitáveis que são: o das ações que preservam a constitucionalidade. Na atual quadra histórica, é importante dizer que não é o mesmo campo do presidente Jair Bolsonaro e seus aliados, que têm como método distorcer a verdade, confundir as pessoas, usar o caos como estratégica de ação política e ofender pessoalmente, como ocorreu de modo inaceitável com o próprio ministro Alexandre de Moraes. Repudiamos o uso do cargo máximo do país para esse tipo de atuação política nefasta. A Instituição STF deve ser preservada.

A Constituição tem instrumentos para lidar com isso, mas a decisão tomada pelo ministro do STF não é um deles. E por quê?

Inicialmente, é preciso dizer que, como constitucionalistas jurássicos que somos, temos como método sempre desconfiar do poder. Do poder do Estado, do poder econômico ou de qualquer forma de poder entre os homens. A natureza da Constituição é conter o poder, submete-lo a princípios próprios da democracia liberal, conformar no âmbito dos governantes e agentes públicos, na expressão de Weber, uma ética da responsabilidade em detrimento da ética das convicções pessoais. Se assim se quiser dizer, o constitucionalismo é um projeto conservador.

Por isso, a natureza do constitucionalista é ser contra-majoritário, questionar as relações de poder e, no plano epistemológico, contestar o senso comum.  Nosso papel como professores de Direito é criticar as decisões nessa perspectiva. E o caso em si, a nomeação de Alexandre Ramagem para direção-geral da PF, é sobre desvio de poder. Aliás, como já criticamos as decisões do caso da nomeação de Lula e todas as vezes em que ocorreu esse tipo de fenômeno ativista.

Seguimos, para voltar um pouco, para meados do século 19, quando nasce a concepção de desvio de poder. Teoria quanto aos vícios dos atos da Administração de criação francesa, do Conselho de Estado, um órgão autônomo ligado ao Poder Executivo, mas com competência  para julgar as relações entre Estado e particulares e entre entes estatais.

Os desvios de poder acontecem quando um ato da administração (que pode ser político) se caracteriza pela incompatibilidade entre a finalidade real do ato praticado e a finalidade da competência legal ou constitucional que deveria presidi-lo. Como bem nos ensinou Celso Antônio Bandeira de Mello, há desvio de poder quando o fim buscado não tem compatibilidade com a finalidade estipulada normativamente. É o mau uso da competência, como também ressalta Sílvio Luís Ferreira da Rocha. São desvios de poder atos em que o governante atende não ao interesse público que o ato deveria se destinar, mas a um fim pessoal. A busca real acaba sendo  de  privilegiar ou de prejudicar alguém.

Embora antiga e cediça no direito administrativo e constitucional, a teoria não é tão simples de ser aplicada, especialmente quando se observa o ato objeto da decisão em debate. Isso porque, sendo ato político, a ordem constitucional permite que o governante ingresse com finalidades pessoais em sua prática. A Administração Pública possui uma gama de funcionários públicos, com relação profissional e estável com o Estado com vistas a continuidade dos serviços públicos, mesmo havendo mudança periódica de governantes numa República como o Brasil, mas também cargos de confiança, a serem utilizados para o fim específico de aplicar no exercício do mandato o programa sagrado vencedor pelo voto democrático. Essa outra gama, de cargos de confiança, é fruto, em última instância, da aplicação da soberania popular sobre os rumos da Administração Pública.

Obviamente, é de se esperar que para os postos de maior relevância o presidente busque nomes de confiança. Trata-se de uma garantia de que haverá tentativa de cumprir com o programa eleitoralmente acolhido pela sociedade. Isso significa dizer que a um presidente escolher pessoas de sua confiança, ou de sua relação próxima, não necessariamente implica a intenção que vulnere a Constituição e a lei. O que irá definir se houve abuso, portanto, não é a indicação em si, mas se a indicação não atende ao interesse público para o qual deve se destinar.

Para complicar, se o autor do ato, no caso Bolsonaro, estiver mesmo praticando um desvio de poder, exatamente por se tratar de um elemento fraudulento, a busca será a de conferir uma aparência de legalidade na indicação. A aparência será de atender ao interesse público, mas, na verdade, haverá benefício a um grupo ou alguém.

Até aqui não podemos saber se a indicação de Ramagem constituiu desvio de poder. Isso porque, para se constatar o abuso de poder, é preciso deslocar-se da esfera da escolha pessoal (subjetiva) para a esfera dos desvios de finalidade (objetiva). Só assim será possível tratar da incompatibilidade entre a finalidade do ato e a competência estabelecida na ordem constitucional e infraconstitucional. Relembremos: trata-se de uma análise jurídica e não política ou moral.

Isso significa dizer que o processo de desvio de poder precisa permitir a dilação probatória, ou seja, os fatos que emanam do debate judicial sobre um desvio de poder ou de finalidade quase sempre são controversos. Há uma disputa entre a autoridade e quem busca impugnar o ato em relação à existência de fatos, suas características, grau de envolvimento das partes, enfim, há um universo probatório a ser construído. A verificação da existência de desvio de poder, na grande maioria dos casos, inclusive esse em comento, não se dá de plano, mas pela reconstrução de todas as circunstâncias que envolveram a produção do ato. Em resumo, o desvio de poder se caracteriza a partir da produção de provas.

São nesses fundamentos que residem os problemas técnico-jurídicos que contaminam a decisão do ministro Alexandre de Moraes.

O primeiro problema é justamente restringir a etapa de produção de provas às publicações da mídia sobre o fato e às declarações do ex-ministro Sergio Moro dadas a imprensa. A decisão toma como conteúdo fático aquilo que deveria ser tratado como meras suspeitas. É preciso lembrar que é desconhecido o inteiro teor das conversas mantidas acerca da nomeação de Ramagem, o que se conheceram foram as versões de Moro e Bolsonaro e alguns trechos de mensagens de celular, que passaram sempre pelo crivo editorial de profissionais de imprensa. Pode-se considerar que tais conteúdos são importantes para iniciar uma investigação sobre os atos  mas são insuficientes para saber se houve desvio de poder. Afinal, a mídia não é órgão de investigação do Estado, nem pode ser. Não se pode deslocar para a mídia o papel dos tribunais, é preciso que o fórum adequado realize audiências, oitiva de testemunhas, provas periciais, quebra de sigilos, entre outras medidas.

Se Bolsonaro nega tentativa de usar a indicação como instrumento de interferência, assim o tem declarado ,é preciso que haja apuração dos fatos, não a interferência do Judiciário para sustar ato do Executivo sem que se tenha a oportunidade de produzir provas no procedimento escolhido por quem impugna o ato produção de provas. E isso nos leva ao segundo problema da decisão do ministro Alexandre de Moraes: liminar em mandado de segurança.

Sim, há um problema formal — e direito também é forma — na aceitação do instrumento usado para atacar a nomeação de Ramagem. O Partido Democrático Trabalhista (PDT) ingressou com um mandado de segurança para impedir a indicação. Um mandado de segurança para discutir desvio de poder. Mas o instrumento não conta — como qualquer pessoa na área jurídica sabe ou deve saber — com a chamada dilação probatória, ou seja, não possibilita o debate dos fatos e a produção ampla de provas, o contraditório fático, os fatos têm de ser incontroversos. Quando se discute desvio de poder, é preciso compreender a existência de controvérsia quanto aos fatos, debater uma eventual profusão de indícios e trazer os que foram suprimidos, eventualmente ,pela outra parte.

Um mandado de segurança não comporta isso, é um instrumento sintético, que foi utilizado para intervir e suspender um ato político, de competência da Administração Pública. Ao tomar decisão de conceder o pedido, o ministro do STF obliterou a controvérsia quanto aos fatos.

Pode parecer um debate demasiado formal, mas não é. O efeito político da decisão é preocupante: admitir que as declarações de Moro, as cópias dos diálogos e outros conteúdos veiculados pela mídia refletem fatos  incontroversos. Diga-se, inclusive, que estabelecer a mídia como fórum de julgamentos é um dos mais nocivos equívocos cometidos pela operação Lava Jato, da qual Moro é baluarte. Dinâmica condenatória inúmeras vezes criticada por Reinaldo Azevedo, mas também por estes autores. É preciso que a mídia se mantenha em seu papel imprescindível de investigação e difusão de informações, mas o papel de produzir provas e julgar deve caber ao Judiciário.

Não se sustenta o receio de muitos de que o mandado de segurança evitou um dano que poderia ser irreversível se de fato houve abuso de poder na indicação de Ramagem. Existem alternativas como ação popular com pedido de liminar, ação anulatória de ato administrativo ou ação cautelar. São instrumentos que mantêm o Judiciário como foro e não constituem qualquer ofensa à Constituição. Repetindo: mandado de segurança exige direito líquido e certo. Onde estava esse direito líquido e certo? Além de tudo, há uma questão comezinha em termos de teoria da decisão: em que medida a decisão do ministro pode ser universalizada? Vingando a decisão, o judiciário fará o filtro de todas as decisões de indicação política do Executivo? Como o STF produz precedentes vinculantes, municípios e Estados passarão a ter o controle político de juízes e tribunais? Principalmente em sede de mandado de segurança, que não comporta dilação probatória?

Não há dúvidas de que todo e qualquer ato do Executivo está sujeito ao controle judicial. O problema é saber a medida e forma desse controle judicial, para que o juiz não substitua a figura do governante, configurando ativismo judicial, que implica a substituição da vontade do governante eleito, da soberania popular, pela vontade do juiz togado. O controle judicial deve se dar exclusivamente à esfera jurídica, não sobre a esfera de manifestação da soberania popular.

A única exigência a priori imposta para a nomeação de Alexandre Ramagem foi atendida pelo governo: ser delegado federal de classe especial. O elemento de confiança do cargo dá caráter político à escolha. Ao suspender a indicação, o Judiciário estabeleceu um julgamento moral a priori, acolhendo como verdade suspeitas difundidas por uma das partes do conflito de versões midiáticas e interpretações de declarações do Presidente a imprensa e negando-se a produzir provas objetivas e submetidas ao contraditório do desvio de poder.  E não podemos, como “espalha-rodas” democratas que somos, legitimar uma decisão ativista por concordar com a racionalidade moral que pressupõe. Seria o mesmo que legitimar um Direito filtrado pela moral, o que nos leva à inescapável pergunta: quem vai filtrar a moral? Seria substituir a ética da responsabilidade política de quem decide pela ética das convicções pessoais. A decisão do delegado é ruim? É moralmente não desejável? Bom, quantas coisas não gostamos no plano da moral. Porém, o Direito é mais forte. A própria democracia é filtrada pelo Direito.

Neste momento em que a sociedade ocidental se divide por um ódio político ultra ideologizado e pouquíssimo racional, é de se louvar a atitude democrática de Reinaldo Azevedo, de permitir que possamos trazer essas questões ao debate. Entendemos suas preocupações com a democracia e a preservação da Constituição, que também é a nossa, e concordamos que Bolsonaro tem uma política de Segurança Pública inconstitucional. Mas esse ultimo  é um outro debate.

O que nós democratas estamos buscando são formas de superar esse momento e manter vivas as Constituições e democracias. Tatear no escuro os caminhos que os democratas temos para manter e restaurar, à luz da democracia brasileira e dos princípios constitucionais. Para isso, contém sempre com os constitucionalistas “espalha-rodas”. Enquanto a Constituição for um remédio contra maiorias, seremos contramajoritários. Como dizia T. S. Eliot, em terra de fugitivos, quem anda na contramão parece que está fugindo. É o nosso caso. É o risco da profissão.

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*Espalha-rodas: Pessoa desagradável que ninguém quer ficar perto, arranja mil desculpas para não ter contato. (Nota do CECGP).

[1] Originalmente este artigo foi publicado na Coluna Reinaldo Azevedo, no UOL (4.5.2020), intitulada Dois Constitucionalistas discordam deste jornalista, que fica mais sabido.

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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS) da Unesa (RJ).

Pedro Estevam Serrano é advogado, professor de Direito Constitucional, Fundamentos de Direito Público e Teoria Geral do Direito da PUC-SP, pós-doutor em Teoria Geral do Direito pela Universidade de Lisboa e doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP.