TRIBUNAIS DE CONTAS
É necessário estudar o poder cautelar administrativo estatal para evitar votos como o do MS 35.506
Em recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, no MS 35.506, o ministro- relator, Marco Aurélio, analisando as medidas cautelares de indisponibilidade de bens impostas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), afirmou que não compete ao TCU, órgão administrativo que auxilia o Poder Legislativo, o implemento de medida cautelar que restrinja direitos de particulares de efeitos práticos tão gravosos como a indisponibilidades de bens e a desconsideração da personalidade jurídica, que configuram sanções patrimoniais antecipadas.
Apesar de se limitar a analisar as medidas cautelares administrativas emitidas pelo Tribunal de Contas, o que se verifica no voto acima mencionado é que há um “ataque” a toda uma cautelaridade administrativa.
O Estado, de modo a cumprir com suas atribuições constitucionais, conjuga diversas maneiras de agir: uma forma de atuação repressiva, coibindo e sancionando infrações à ordem jurídica; uma atuação de planejamento, pensando nos passos futuros; um comportamento de fomento, incentivando e desestimulando condutas a serem ou não adotadas pela população; uma atividade de cautela, que busca prevenir ou minimizar danos quando se comprove o risco de sua ocorrência ou de sua majoração.
Essa última atividade, que se encerra uma cautelaridade estatal, embora pareça óbvia, ganha mais força, em um primeiro momento, quando começam a se erguer Estados Sociais, em oposição ao pensamento tipicamente liberal, que deseja o Estado afastado o máximo possível das relações privadas.
A intervenção do Estado, a ponto de afetar liberdade e propriedade, como ocorre nos provimentos cautelares, é traço de uma mudança na configuração Estatal que passa a ser determinante na concretização de direitos e, como efeito colateral, impõe um maior número de restrições.
Este mesmo Estado, portanto, passa a se preocupar não só em reprimir condutas e reparar danos já ocorridos, mas sim a evitar que estes venham a ocorrer ou ao menos minimizar os efeitos destes danos. Passa a compor dever estatal a atuação preventiva.
Nesta linha, tem-se que o Estado opta por uma postura mais ordenadora do que prestadora, logo o mínimo esperado pelos administrados é comprometimento e empenho dos administradores em afastar condutas infratoras ou nocivas aos interesses coletivos.
Além disso, possuindo o Poder Público como diretriz a perseguição do interesse público, a sua atuação deve ser voltada a garantir a higidez dos bens e direitos que atendam aos anseios da sociedade, e não a concentração da maior parte de suas ações em medidas de cunho reparador ou punitivo[1].
Apesar desse novo perfil estatal que se constrói, a preocupação acadêmica parece ter fica restrita a cautelaridade decorrente de somente uma das funções estatais, a de cunho jurisdicional.
De fato, é inconteste que os trabalhos versando sobre um poder cautelar jurisdicional já se encontram bem consolidados, embora, mesmo nessa seara, a atividade preventiva nunca foi o foco principal, seja legislativo, seja doutrinário.
O surgimento do processo civil não foi designado para servir de caráter preventivo, sendo projetado, em realidade, para disciplinar a tutela contra o dano, de maneira eminentemente repressiva (caráter esse que ainda hoje acaba estando fortemente enraizado nos bancos da academia e na prática processual, em que pese à existência de uma nova onda processualista que busca mudar aqueles comportamentos).
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart expõem que “o processo civil, no Estado de Direito de matriz liberal, não foi projetado para dar tutela preventiva aos direitos”[2], acrescentando ainda que o Estado, de ideologia liberal, estava preocupado em resguardar o funcionamento dos mecanismos de mercado, razão pela qual uma tutela pelo equivalente ao valor da prestação “mantinha íntegros os mecanismos de mercado, sem alterar sua lógica”.
Não só o processo civil liberal não se preocupava com a cautela de direitos, mas, pelo contrário, os evitava, uma vez que para esse pensamento jurídico liberal “o processo, para não gerar insegurança ao cidadão, deveria conter somente um julgamento, que apenas poderia ser realizado após a elucidação dos fatos componentes do litígio”[3].
Foi a mudança da forma de Estado ao longo dos séculos e seu atuar perante os cidadãos que acabou gerando, como consequência lógica e inarredável, uma mudança na visão processual liberal dominante.
Contudo, na contramão do avanço da cautelaridade jurisdicional, muito pouco se produziu no campo doutrinário acerca dos provimentos cautelares adotados no exercício da função administrativa.
Da mesma feita, no campo legislativo, apesar de uma vasta legislação a respeito (de maneira ilustrativa, além da previsão da Lei Orgânica do TCU, temos o artigo 45 da Lei nº 9.784/99, as diversas medidas administrativas do Código de Trânsito Brasileiro, o artigo 56, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, o artigo 24-A da Lei nº 9.656/98, dentre diversas outras), ela encontra-se difusa, desorganizada e por vezes lacônica.
Essa grave lacuna doutrinária respeitante à cautelaridade administrativa traz resultados perniciosos:
- a) Faz com que se encontre ocasionalmente críticas deferidas contras provimentos cautelares administrativos, ao argumento que estaria havendo uma verdadeira sanção sem que tenha havido o fim de um processo administrativo;
- b) Invoca-se uma sistemática própria e típica da cautelaridade judicial para se resolver questões afetas aos provimentos acautelatórios administrativos, o que gera respostas desajustadas de uma interpretação lógico-jurídica;
- c) Não há sistematização nem coordenação entre a legislação de regência dos diversos provimentos cautelares administrativos, carecendo de enorme desenvolvimento[4];
- d) Há um temor por parte de agentes públicos de se valerem de medidas cautelares administrativas, que trazem consigo um receio de que tais medidas não sejam compatíveis com a ordem jurídica brasileira e acabem gerando consequências a seus utilizadores;
- e) Temáticas correlatas ao aspecto de fundo das medidas cautelares administrativas encontram-se desalinhadas. Tome-se por exemplo o estudo da responsabilidade civil extracontratual do Estado. Saber se e como o Estado pode ser responsabilizado pelo utilização/omissão de provimentos acautelatórios pressupõe uma compreensão prévia e clara da natureza de estruturação dessas medidas, não sendo possível uma adoção homogênea dos panoramas gerais de responsabilidade estatal.
Para agravar esse quadro de desprezo com a cautelaridade administrativa, dos já escassos trabalhos a respeito, como mencionado parte significativa deles tende a simplificá-los no sentido de atribuir a cautelaridade administrativa todos os aspectos e atributos da cautelaridade judicial, remetendo à legislação processual todo o regime a ser aplicável às medidas cautelares administrativas.
Com a devida vênia aos que trilham esse caminho, ele parece demonstrar um descaso com o regime jurídico administrativo e subordiná-lo ao disciplinamento próprio da função jurisdicional. É seguindo este equívoco que se encontram decisões como a do ministro Marco Aurélio que vincula uma medida cautelar de indisponibilidade a uma suposta reserva de jurisdição.
Não se quer olvidar por completo as lições extraídas das inúmeras páginas já escritas sobre a tutela cautelar judicial. De fato, como já abordado, há clara aproximação entre as figuras, inseridas dentro de uma ótica de uma cautelaridade estatal.
Sem embargo, da mesma maneira que se construiu um doutrina ao redor das medidas cautelares emitidas judicialmente, que possuem seu disciplinamento doutrinário e dogmático próprios, não há razão para que as medidas cautelares administrativas sejam lidas exclusivamente à luz daquele preceitos tópicos da atividade jurisdicional, como se fosse um acessório e o poder cautelar do Poder Judiciário fosse o verdadeiro e principal, do qual todos os demais aspetos da cautelaridade precisam se subordinar. Longe disso.
É possível se construir uma base teórica e extraível do direito positivo brasileiro que permite que a cautelaridade administrativa seja tratada de maneira autônoma (sem a pretensão de esgotamento, mencione-se como embasamento a supremacia do interesse público e da eficácia dos processos administrativos[5]), sem a necessidade de uma invocação automática aos artigos relacionados à tutela de urgência do Código de Processo Civil, como faz a maior parte dos escritos pátrios que buscam estudar medidas cautelares administrativas.
Assim, o que se apura é que, apesar de o regime cautelar administrativo se encontrar previsto no ordenamento jurídico brasileiro, muito pouco se sabe ou se estuda a seu respeito. Precisamos, o Supremo Tribunal Federal incluído, trabalhar melhor isso.
[1] MENDES, Humberto Cestaro Teixeira. O Estado Regulador e a Ascensão da Atuação Administrativa Preventiva. Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central, v.9, n.2, p.44-57, dez.2015, p.52.
[2] MARINONI, Luiz Guilherme; CRUZ ARENHART, Sérgio. Curso de processo civil – volume IV – Processo cautelar. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.43.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme; CRUZ ARENHART, Sérgio. Curso de processo civil – volume IV – Processo cautelar. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.50.
[4] Apesar de todo o avanço doutrinário espanhol sobre o assunto, no campo legislativo nota-se uma mesma deficiência e omissão. Segundo Tomás Cano Campos “se hecha en falta, también, una regulación detallada de las medidas provisionales que, además de asegurar la eficacia de la resolución sancionadora, cumpla otras funciones en el procedimiento sancionador como evitar que se repita la infracción o se siga cometiendo o se mantengan los efectos de la ya consumada” (La potestad sancionadora de la administración: uma regulación fragmentaria, incompleta y perniciosa. Documentación Administrativa, n.2, p.1-5, ene./dic. 2015, p.5).
[5] A respeito das medidas cautelares administrativas, confira-se os nossos CABRAL, Flávio Garcia. Natureza jurídica das medidas cautelares administrativas patrimoniais. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura., v.8, p.173 – 201, 2019 e CABRAL, Flávio Garcia. Os pilares do poder cautelar administrativo. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 18, n. 73, p. 115-139, jul./set. 2018.
FLÁVIO GARCIA CABRAL – Pós-Doutor em Direito pela PUCPR; doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP; professor e procurador da Fazenda Nacional.