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CENTRO DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS E DE GESTÃO PÚBLICA

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A crise econômica e a intervenção do Estado

Artigo publicado em 07/11/2008 por Sergio Tamer com o tema: A crise econômica e a intervenção do Estado

A CRISE ECONÔMICA E A INTERVENÇÃO DO ESTADO

 

Os fatos da economia real superaram a retórica inicialmente ufanista das autoridades monetárias do governo e, pouco a pouco, descobriu-se que o estrondo provocado pela má aplicação de recursos circulantes no mercado financeiro e especulativo de hipoteca imobiliária, não era um problema somente de Bush e dos americanos, uma vez que os seus efeitos devastadores, como já era previsível, iriam espalhar-se pelos quatro cantos do planeta, com maior ou menor intensidade, conforme as especificidades, o grau de envolvimento e a capacidade de resistência de cada mercado.

 

A crise nos mercados globais e que teve como epicentro uma excessiva concentração de investimentos em ativo imobiliário, com aposta de elevado risco em uma crescente expansão e valorização da atividade, o que acabou não acontecendo, demonstra os erros cometidos pelas instituições financeiras que agiram temerariamente, no limite mesmo da irresponsabilidade, e a falha do Fed em desencorajar as más ações e de puni-las convenientemente(1) . No Brasil a banca, uma das mais lucrativas do mundo, habituou-se a ganhar muito dinheiro, com baixa margem de risco, emprestando maciçamente para o governo, por meio da compra de títulos públicos. Na verdade, ela atua muito aquém do desejado junto às atividades econômicas produtivas. A situação, desta forma, é distinta da dos bancos americanos mas nem por isso estamos imunes à crise instaurada na pátria do capitalismo.

 

As medidas adotadas pelo BC já estão servindo para reforçar o caixa dos bancos enquanto diversos setores produtivos da economia continuam amargando os efeitos da crise.

 

A partir daí ressurge a questão relacionada à intervenção do estado na economia, o seu grau de intervencionismo e a sua legitimidade para operar num sistema cujos ensinamentos clássicos, já testados pela história, indicam que ele melhor funciona quanto mais longe estiverem as ingerências estatais. Não têm faltado, nesse panorama, as vozes saudosistas dos que pregam o retorno da economia estatizante e alguns, até, já falam no “fim do capitalismo”, “fracasso da democracia liberal” e outras estultices agora lançadas pelos regimes ditatoriais de todos os matizes, inclusive pelas republiquetas islâmicas – igualmente tirânicos e repugnantes.

 

Uma das funções primordiais do Estado é a de garantir aos cidadãos os seus direitos fundamentais, valores paulatinamente conquistados pela humanidade e historicamente assentados nas constituições democráticas. Portanto, impedir a quebra do sistema financeiro, e adotar medidas que protejam a atividade econômica e, de modo mais abrangente, a preservação da própria organização social democrática, justificam as medidas intervencionistas, ainda que excepcionais.

 

Tem sido tema recorrente em quase todas as matérias que tratam da presente convulsão americana no setor da economia, o programa de governo denominado New Deal que Roosevelt adotou em 1932. Tratava-se, àquela época, de uma política marcadamente intervencionista visando superar a instabilidade social e amparar milhões de desempregados. Keynes foi seu grande economista e o episódio serviu para revelar ao mundo as deficiências do laissez-faire. José Guilherme Merquior(2) escreveria depois: “se a mão invisível da Providência não mais assegurava por si só a harmonia entre os homens, então alguma medida de intervencionismo estatal se impunha – do contrário, a própria liberdade estaria em perigo.” Até então prevalecia o dogma da não-intervenção inaugurado por Adam Smith, em 1776, com a sua obra clássica de economia política, para quem o Estado deveria ficar longe do mercado. Este é regulado pela especialização de cada um, pelo lucro e pelo egoísmo – jamais por princípios humanitários. O estado, sendo improdutivo, deve apenas assegurar o funcionamento livre do mercado.

 

Não se sabe ainda se a situação atual, por seus efeitos, guarda as mesmas proporções, mas entre 1920 e 1936 a situação conjuntural da economia dos principais países capitalistas era de recessão – ocorrendo até depressão – com enorme desemprego de mão-de-obra e de fatores produtivos, verificando-se ainda vertiginoso declínio da renda nacional. O economista John Maynard Keynes (1883-1946) destaca, então, duas falhas desse sistema de mercado: o desemprego e a distribuição excessivamente desigual e arbitrária da renda e da riqueza. Em seguida, aponta alternativas de ação cuja implementação viria a ser chamada de “revolução keynesiana”. ARAÚJO(3) assinala que sua contribuição foi decisiva não só no campo da teoria econômica, mas também no campo da política econômica, abrindo espaço para a intervenção do estado na economia. KEYNES, em sua “A Teoria Geral” (1936), que representou a ruptura com a teoria econômica até então em voga, viria demonstrar um quadro bem diferente. O mau funcionamento do capitalismo – dizia – estava na “deficiência de demanda” sendo esta uma das características do sistema. Assim, a sua grande contribuição à teoria econômica viria a ser o princípio da “demanda efetiva” muito embora o sucesso de sua obra, para os economistas, seja devido ao instrumental analítico por ele usado. KEYNES conseguiu fixar o princípio de que não existem forças de auto-ajustamento na economia, permitindo, desta forma, justificar o desenvolvimento de uma política econômica estatal. De fato, a coerção estatal não é o único obstáculo à liberdade, pois barreiras econômicas e sociais também o são, o que torna legítimo, para removê-las, o recurso à ação do estado, na visão social-liberal. Para uma outra corrente do liberalismo, a dos neoliberais, o poder público deve permitir o mecanismo livre dos preços mediante a livre concorrência, circunstância que seria indispensável ao correto funcionamento da economia. Sob esta ideologia, a intervenção do estado deve ocorrer para evitar tudo o que possa emperrar o livre funcionamento do mecanismo dos preços, como a formação de cartéis, trustes e monopólios. A nossa Constituição, que é considerada uma síntese social-liberal, nesse sentido adota a tese neoliberal, por meio do seu parágrafo 4º, artigo 173: “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.” Assim, o estado liberal, para os neoliberais, deve ser um estado liberador de todos os obstáculos ao bom funcionamento do mecanismo de preços: sua intervenção será no sentido de fiscalizar o mercado econômico para que disso não resulte, como no passado, a ausência da livre competição.

 

O economista Roberto Campos(4), um liberal insuspeito, dizia que é um engano – ou má-fé – sustentar que os neoliberais acham que o mercado é um critério supremo de distribuição dos bens deste mundo e o caminho da perfeição. E explica suas razões desta forma: “A essência do projeto liberal sempre foi, e continua a ser, a maximização da liberdade individual, sem confundir a economia de mercado com o paraíso terrestre. Herdeiro do humanismo e da tradição religiosa ocidental, ele aceita os deveres fundamentais de humanidade e solidariedade em relação àqueles que não têm como se defender, ou que foram tocados pela desgraça.”

 

A constituição brasileira afasta qualquer possibilidade de retorno a uma economia estatizante, que passou a ser uma exceção, conforme reza o artigo 173: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.” A intervenção no mercado, assim, para proteger os princípios e os fundamentos da ordem econômica capitalista, será sempre circunstancial e notoriamente justificada, não podendo essa intervenção ser confundida com a estatização das atividades econômicas como querem ou desejam de má-fé os regimes totalitários. Note-se que o papel do estado brasileiro, no domínio econômico, tem seus contornos delineados pelo art. 174 da constituição: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”

 

A recente intervenção americana na economia situa-se dentro de uma visão capitalista e objetiva corrigir uma monumental falha do sistema. Essa falha, caso não corrigida a tempo, mediante forte intervenção estatal, poderia criar barreiras econômicas e sociais profundas e ir de encontro ao desfrute da própria liberdade. Mas estamos longe de anunciar o “fim do capitalismo” como trombeteiam as vozes agourentas do totalitarismo. A liberdade política só pode existir onde houver um regime de liberdade econômica. Assim, os direitos de liberdade (direitos civis e políticos) só podem ser exercitados em um regime de livre iniciativa, de economia liberal, embora possa ocorrer o contrário, como na China, onde existem regiões com liberdade econômica sem que haja liberdade política.

 

A crise americana é uma crise econômica de grandes proporções porque chegou a afetar severamente a economia de todos os países, sejam eles capitalistas ou não. O melhor caminho para enfrentá-la não é fazer de conta que ela não existe mas sim ir à luta afastando-se do medo e dos receios de investir e de voltar a empreender, como conclamava Roosevelt durante a primeira grande crise do capitalismo.

 

O que não se pode perder de vista nesse torvelinho criado pela convulsão americana é que a democracia, para existir plenamente, precisa estar acompanhada de vários companheiros de viagem, dentre os quais, como ensina Robert Dahal, estão a cultura política, o desenvolvimento econômico e a modernização social.

 

Referências do texto:

 

(1)Nesse sentido a opinião do economista americano Robert J. Shiller – Veja, p. 118, 15.10.2008

(2)MERQUIOR, José Guilherme. O argumento liberal. Ed. Nova Fronteira, RJ, 1983, p.91

(3)ARAÚJO, Carlos Roberto Vieira. História do pensamento econômico. Ed. Atlas, SP,1988, p.111

(4)CAMPOS, Roberto. Menos estado e mais mercado. Artigo publicado na Folha de São Paulo, 1996

Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.

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