Sergio Tamer
Por recomendação de instituições nacionais e até de organismos internacionais, além da notificação recente de liminares judiciais, o Estado do Maranhão viu-se na contingencia de ampliar o número de defensores públicos, em curto período. Essa era uma antiga reivindicação do defensor público-geral do Estado, Aldy Mello, demanda que agora foi agudizada em decorrência da crise que se abateu sobre o sistema penitenciário e que está a exigir uma atuação em tempo integral da Defensoria Pública.
Não é preciso muito esforço argumentativo para demonstrar a importância do trabalho dos defensores públicos em defesa dos direitos fundamentais dos mais carentes, aqui incluídos cerca de 90% da população carcerária. Nesse sentido, a Constituição Federal estabeleceu o direito fundamental à assistência jurídica em dois artigos. O primeiro, no âmbito dos direitos e garantias fundamentais (art.5º, LXXIV), afirma que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”; o outro, no campo das funções essenciais à justiça (art.134) diz que “a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art.5º, LXXIV.
Dessa forma, a Constituição estabeleceu o direito fundamental à assistência jurídica e nesse passo procurou ajustar-se à Declaração Universal dos Direitos Humanos que no seu preâmbulo, mais precisamente no primeiro considerando, remete a duas importantes noções: uma, jusnaturalista, reafirma que a existência dos direitos humanos independe da sanção estatal, uma vez que eles são inerentes à pessoa, como elementos que definem a personalidade moral do ser humano; outra, remete à ideia de dignidade do ser humano. O terceiro considerando da Declaração Universal afirma ser essencial que os direitos da pessoa sejam protegidos pelo “império da lei”, restando claro que tais direitos são tidos como existentes, ainda que eventualmente não estejam positivados:
“Considerando que é essencial a proteção dos direitos do Homem através de um regime de direito, para que o Homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão.”
A dignidade fundamental do ser humano foi tomada, assim, como paradigma e desde 1948 o Direito Internacional dos Direitos Humanos tem fixado um conjunto normativo que reconhece e dá conteúdo a essa referência. As normas de âmbito global, oriundas das Nações Unidas e as regionais, que proveem de outras Organizações Internacionais, consagram direitos que são tradicionalmente classificados como civis e políticos, de um lado, e econômicos, sociais e culturais, de outro. Esses direitos formam parte de um todo indivisível.
A primeira evidência é que o direito de ser assistido juridicamente insere-se no rol dos direitos econômicos, sociais e culturais, uma vez que corresponde a uma contraprestação ativa por parte do Estado, responsável por prover o serviço público correspondente ou, como ocorre em alguns países, custear advogados privados a quem não possa pagá-los. O professor Carlos Weis, procurador do Estado de São Paulo, diz que curiosamente foi no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos que tal direito acabou reconhecido (Res. n. 2.200-A da XXI Assembleia Geral das Nações Unidas em 16.12.1966 e ratificado pelo Brasil em 24.1.1992).
Ele afirma que a ideia de que todos têm direito a se defender perante um tribunal guarda relação com o estabelecimento do due process of law e suas garantias inerentes, como contrafação ao poder estatal de privar o ser humano de um dos seus mais caros bens, a liberdade de locomoção. Estatuiu-se, assim, uma nova liberdade, a de constituir defensor, com a finalidade de se preservar outra liberdade, a de ir, vir e permanecer. Mas é evidente que o direito a ser defendido por advogado pago pelo Estado é coisa distinta da liberdade individual de constituir defensor.
No entanto, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 14.3.d, vai muito além das previsões tradicionalmente associadas à liberdade de defesa, quando afirma:
“Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (…) a ser informada, casa não tenha um defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, a ter um defensor designado ex offício gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo.”
A obrigação estatal de remunerar o defensor dativo no âmbito criminal tem, portanto, natureza de direito social, embora insculpida no âmbito dos direitos civis e políticos. Essa garantia que visa proteger a liberdade de locomoção do indivíduo em matéria criminal tem abrigo no direito à ampla defesa. Observa-se desta forma que a eficácia plena de um dado direito somente é possível assegurando-se igual eficácia dos demais – seja ou não da mesma natureza que a sua.
Para Carlos Weis, o direito humano à assistência judiciária reveste-se das características dos econômicos e sociais, pois demanda providências do Estado para lhe dar efetividade, nem que seja pelo simples custeio dos serviços da advocacia privada. A Constituição Federal, porém, alargou a garantia judicial até aqui considerada, convertendo-a em instrumento de acesso à justiça. O art.5º, inciso LXXIV, prefere falar em “assistência jurídica integral”, partindo da noção de que o acesso à justiça pressupõe que as pessoas tenham noção de seus direitos ou, numa fórmula consagrada, percebam que tem direito a ter direitos. Por isso o art.134, complementar ao art. 5º, fixa como atribuição das defensorias públicas a orientação jurídica dos usuários desse serviço público.
Citando Cappelletti e Garth, o acesso à justiça integra o acesso à justiça social, uma vez que, indo além de simplesmente prover a paridade de armas no processo, é hoje dever do Estado fazer ver à população que esta possui direitos e instrumentalizar sua realização. A defensoria pública, como é notório, é um dos esteios sobre os quais se assentam a realização dos objetivos fundamentais da República brasileira descritos no art.3º da Constituição:
“Construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
A justiça social pressupõe o conhecimento e realização dos direitos fundamentais pelos seus titulares, sejam tais direitos individuais, coletivos ou difusos. Passou-se da ideia de assistência judiciária para o de acesso à justiça; de assistencialismo público para serviço público essencial; de extensão da advocacia privada aos financeiramente carentes à promoção dos direitos humanos; de mera promoção judicial de demandas privadas à identificação dos direitos fundamentais da população e sua instrumentalização. A Constituição Federal afastou-se, assim, do modelo assistencialista antes existente e passou a ter, com a defensoria pública, um forte instrumento para o acesso à justiça social, especialmente no que diz respeito à orientação jurídica da população. As defensorias públicas são um serviço público essencial, inserindo-se dentre as garantias institucionais dos direitos humanos, vinculando-se ao acesso à justiça e aos objetivos constitucionais do País. A efetivação dos direitos humanos passa, dessa forma, pela plena atuação das defensorias públicas.
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Sergio Tamer
Professor e advogado, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca. Foi Secretário de Direitos Humanos do Estado (2009-2010) e Secretário de Justiça e Administração Penitenciária (2011-2012). É autor de várias obras jurídicas e atualmente é diretor do Centro de Estudos Constitucionais e Gestão Pública do Maranhão – CECGP.