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A era dos direitos (nos 70 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos) – Por Vital Moreira

direitos fundamentais

A Declaração Universal de 1948 continua tão relevante quanto antes no combate pela universalização efetiva dos direitos humanos.

Por Vital Moreira

Comissário para as Comemorações dos 70 anos da DUDH e dos 40 anos da adesão de Portugal à CEDH. É professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

 

Poucos momentos da história são tão merecedores de comemoração como o dia 10 de dezembro de 1948, em que a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH). E poucos foram tão influentes no curso dos acontecimentos desde então. Como o disse lapidarmente, Norberto Bobbio, começou aí a “era dos direitos” em que vivemos desde então.

Declarado como Dia Internacional dos Direitos Humanos logo em 1950, o dia 10 de dezembro tornou-se uma data obrigatória para fazer o balanço dos avanços na implantação dos direitos humanos, mas também de reflexão sobre os défices e carências que subsistem em tantos lugares do mundo.

Uma dupla justificação para comemorar

Portugal tem duma dupla justificação para comemorar este ano a DUDH. Primeiro, celebramos a sua aprovação há sete décadas, junto com as Nações Unidas e com todos os países vinculados à proteção internacional dos direitos humanos; mas, tendo Portugal estado afastado durante a Ditadura da ordem internacional de direitos humanos, comemoramos também a sua adoção tardia entre nós há quatro décadas, depois da revolução de 1974 e do subsequente estabelecimento de um Estado de direito constitucional, na base da Constituição de 1976.

Embora fosse a própria Constituição a referi a DUDH como parâmetro de interpretação e integração do “bill of rights” constitucional, foi somente em 1978 que a Declaração foi oficialmente publicada em Portugal e que foram ratificadas as principais convenções internacionais que lhe conferiram força jurídica, nomeadamente a Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1950, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966 (Nações Unidas).

Além dessa constitucionalização da DUDH desde 1976 – o que, sem deixar de ter paralelo noutras constituições, não é muito frequente –, a CRP exibe outras manifestações de adesão à proteção internacional de direitos humanos, por exemplo quando acolhe expressamente os direitos enunciados em convenções internacionais, que assim completam o elenco constitucional, ou quando determina que a política externa se deve pautar, entre outros princípios, pela defesa dos direitos humanos.

Internacionalização, universalidade e abrangência

Nascida para esconjurar os horrores da barbárie nazi e da II Guerra Mundial e para dizer “nunca mais” a provações semelhantes, há três traços que marcam o lugar singular da DUDH na história dos direitos humanos.

O primeiro é a determinação em tornar obrigação internacional dos Estados o respeito dos direitos humanos, que até então tinham estado confinados ao plano constitucional nacional. Ao conferir direitos aos particulares contra os seus Estados e ao impor a estes uma obrigação de os respeitar, o direito internacional dos direitos humanos, que nessa altura surgiu, constitui uma das grandes transformações nas relações internacionais desde 1945, deixando o desrespeito de direitos humanos de ser uma questão do foro interno, protegida pelo princípio da não ingerência de terceiros Estados nos assuntos domésticos de outros.

O segundo traço é a vocação de universalidade dos direitos humanos, como decorrência de uma universal dignidade humana, deixando eles de ser privilégio dos cidadãos dos Estados que os tinham constitucionalmente assegurados. A universalidade visava tornar como beneficiários dos direitos humanos todo o género humano, independentemente do lugar de nascimento ou de residência e à margem de qualquer distinção de origem étnica, religiosa, etc.

A terceira característica é abrangência do elenco de direitos enunciados na Declaração, que abarca as várias “camadas” de direitos que se foram acumulando sucessivamente desde o século XVIII, ou seja, os “direitos naturais” do jusnaturalismo (direito à vida, a liberdade pessoal, à propriedade e à segurança), os direitos das revoluções liberais (liberdades públicas e direitos políticos), os direitos específicos dos trabalhadores, os direitos sociais gerais. A abrangência do bill of rights de 1948 era tanto mais surpreendente, quanto era certo que, no plano constitucional interno, muitos dos países que aprovaram a DUDH se limitavam a garantir os direitos civis e políticos, sem qualquer referência aos direitos dos trabalhadores e aos direitos sociais.

Os desafios contemporâneos

Setenta anos passados, são indesmentíveis os progressos na afirmação e defesa dos direitos humanos, seja em Portugal, seja na Europa, seja no mundo em geral. Todavia, o ideal de universalidade dos direitos humanos continua longe de ser alcançado, havendo países que continuam sem ratificar os principais instrumentos internacionais que deram força jurídica à DUDH (como a China e a Arábia Saudita, entre outros) e muitos outros que, apesar de os terem ratificado, persistem em ignorá-los de forma mais ou menos sistemática.

Acrescem os desafios contemporâneos aos direitos humanos, ligados à globalização, às guerras regionais e às migrações maciças, ao terrorismo internacional e à sobrerreação securitária, aos movimentos nacionalistas e populistas, às crises financeiras e ao problema de sustentabilidade dos direitos sociais, à digitalização e às ameaças à dignidade e autodeterminação pessoal, etc. Os desenvolvimentos recentes em alguns países mostram que nem sequer podemos dar por adquiridos ou irreversíveis os direitos alcançados.

Por tudo isto, sete décadas passadas, a Declaração Universal de 1948 continua tão relevante quanto antes no combate pela universalização efetiva dos direitos humanos, ou seja pelo direito à vida, à integridade física e moral, à liberdade (pessoal, religiosa, política), a condições de trabalho dignas e a um nível de vida decente e à “busca da felicidade” para toda a gente, em toda a parte.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

 

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