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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

A Itália não é Cuba – por Sergio Tamer

Entenda o “caso Battisti” e os equívocos do Brasil sobre a matéria…

Por Sergio Tamer

Artigo originalmente publicado em 30/01/2009

Não se pode deixar de dar razão ao judicioso parecer do procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, bem como à fundada manifestação do Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE, ambos favoráveis à extradição do foragido da justiça italiana, Cesare Battisti. A Itália acusa Battisti de participação em atos terroristas e em quatro assassinatos entre 1977 e 1979 e o Brasil tem tratado bilateral de extradição com a Itália desde 1989. O ministro da Justiça, Tarso Genro, contrariando esse entendimento, indeferiu o pedido de extradição formulado pelo governo italiano. Com a negativa, Battisti passou a ser uma espécie de herói internacional das esquerdas, sendo que a sua causa ideológica seria, por si só, capaz de justificar as suas ações, ainda mais que tudo está sendo imputado injustamente ao revolucionário líder. Agora, pelo novo entendimento, Battisti teria cometido “crime político” e nada mais coerente com essa visão que o Brasil concedesse ao acusado pela justiça italiana o status de “refugiado político”.

 Diante dessa polêmica que já toma conta, diariamente, do noticiário nacional, considero importante fazer duas indagações, a título de reflexão: (1) – teria o ministro Tarso Genro cometido um equívoco político e com isso exposto desnecessariamente o Brasil perante a comunidade internacional? O seu ato poderia ser anulado por decisão judicial, como quer a Itália?

 Antes de analisarmos essas questões sob a égide de nossa Carta Política, devemos fazer algumas contextualizações.

 De plano pode-se afirmar que o estado italiano não é governado por um regime ditatorial, ao contrario, tem um parlamento livre, uma imprensa independente, um povo que desfruta de cidadania, e uma justiça de elevada reputação internacional. O fato do criminoso, assim julgado pela Itália, ser um destacado prócer das esquerdas, não poderia levar o ministro a conceder-lhe o beneplácito do refúgio. Haveria, portanto, que levar em conta a análise feita pelo CONARE. Battisti seria extraditado, como é evidente, para um estado democrático e de direito e lá teria todas as garantias constitucionais para demonstrar a sua inocência e a falsidade das acusações. A Itália não é Cuba e com esta em nada se parece. Aliás, em relação ao rumoroso caso dos atletas cubanos, que desertaram da delegação que os trouxe ao jogos Pan-Americanos realizados no Rio, e que pretendiam fugir da opressão do governo ditatorial dos irmãos Castro, a decisão do ministro foi diferente. Os atletas foram entregues com notória impaciência à polícia política cubana sem que pudessem falar com a imprensa brasileira, fato que levou a organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch a interpelar por carta o ministro Tarso Genro, cobrando assim do governo brasileiro uma “investigação completa e imparcial” da ação policial que resultou na deportação dos pugilistas Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, ocorrida em 4 de agosto de 2007. Nesses dois episódios – o primeiro em apoio ao italiano perseguido pela justiça do seu país, e o outro em solidariedade ao regime cubano – o ministro, embora por motivações diferentes, usou de uma prerrogativa que é inerente ao seu cargo e que não se sujeita ao controle da lei mas que deve tão somente conformar-se com os princípios constitucionais.

 O caso vai agora a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e muitos afirmam que poderá provocar mudanças na Lei nº 9.474/97, que trata da concessão de refúgio político pelo Brasil. Sob a ótica desses mesmos analistas, o que está em questão, no julgamento do STF, é se o Ministério da Justiça tem poder para definir se os supostos crimes praticados por Battisti são comuns ou políticos. Em meu entendimento, esse não é o foco da questão. Ora, a Constituição estabelece que “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião” – art.5º, LII. O ato do ministro é um ato político, ou seja, um ato de poder, o qual tem o condão de interpretar diretamente o texto constitucional, dispensando a lei ordinária, diferentemente dos atos administrativos. Assim, o ministro estará ao lado da Constituição e o seu ato ficará intocável se os crimes atribuídos pela justiça italiana ao nosso herói Battisti forem, de fato, crimes políticos; mas poderá ver o seu ato ser fulminado de inconstitucional se o Supremo Tribunal entender o contrário, ou seja, que não tem conotação política alguma o que ele andou aprontando pelo seu país. Portanto, o ministro não precisa de autorização da lei para dizer se o art.5º, LII deve ser aplicado ou não. O que ele não pode – e aí o seu ato seria inconstitucional, é conceder a extradição por crime político ou de opinião ou então, negar a extradição sendo o crime praticado pelo acusado um crime comum.

 A função política – como no caso o ato do ministro com base no texto constitucional – circunscreve-se às opções que envolvam interesses essenciais do Estado-coletividade. Desta forma, o traço característico dos atos políticos – ou atos de poder – é o de serem editados em execução direta da Constituição (infraconstitucional), enquanto que os atos administrativos o são em nível de lei ordinária (infralegal). Ao Judiciário reserva-se a prerrogativa eminente de proceder à revisão judicial das leis e dos atos normativos, diante da Constituição, anulando-os quando com esta incompatível. Mas o ato de poder é insuscetível de controle judicial quanto à valoração dos seus motivos.

 Por fim, reafirme-se que os atos de poder tem a sua controlabilidade decorrente da sua conformidade com a constituição. Por isso, a questão não será de legalidade mas de constitucionalidade. Esses atos não desfrutam de imunidade, por isso são eles cognoscíveis pelo Poder Judiciário, que deve contrastá-los com os princípios e preceitos constitucionais, e verificar se eles foram praticados em atenção à forma, à competência e à finalidade constitucionalmente definidas. A palavra final, nesse sentido, deverá ser do STF.

 Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.